As razões econômicas por trás do separatismo catalão

A Catalunha, uma das 17 comunidades autônomas da Espanha, tem vivido dias de muita tensão política. Os jornais estão recheados de notícias sobre a região, detalhando os eventos que se desenrolaram nos últimos meses. Mas fazem falta, até onde pudemos apurar, artigos que elucidem as razões mais pragmáticas do movimento separatista. A língua e a cultura catalã são motivos de orgulho para os cidadãos da região, é claro. Porém, o nacionalismo e a necessidade de reconhecimento da identidade catalã, sozinhos, não explicam a escalada independentista: também devemos olhar para as questões econômicas.

Nesta sequência de dois textos, o Terraço apresenta os bastidores econômicos da crise política na Espanha. Após uma breve apresentação do contexto atual, vamos analisar com cuidado as condições econômicas da Catalunha e o que afirmam os economistas que são a favor da independência. No próximo texto, examinaremos os possíveis cenários caso a região se separe da Espanha e mostraremos como tem sido a reação dos mercados às recentes manifestações pró-independência.

Os acontecimentos das últimas semanas

O separatismo catalão é um movimento político que remonta à década de 1920. Suas raízes estão ligadas aos sentimentos nacionalistas que, em sua forma moderna, começaram a aflorar na Catalunha no século XVIII, como uma reação aos esforços centralizadores da coroa espanhola. Mesmo após três séculos, os independentistas não perderam o fôlego: a mais recente onda de separatismo teve origem em 2006, quando o governo espanhol revogou grande parte do Estatuto de Autonomia, um agregado de leis aprovadas pelo Parlamento da Catalunha que buscavam ampliar a capacidade de autogoverno da região.

De lá pra cá, o movimento conseguiu reunir dezenas de protestos e os conflitos com o governo central endureceram. No último 1º de outubro, o governo regional da Catalunha (Generalitat) levou a cabo um polêmico referendo – considerado inconstitucional pelo Estado espanhol – conclamando os catalães a votarem “sim” ou “não” pela independência da região. Caso o “sim” saísse vitorioso, o presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, prometeu declarar a independência em dois dias. Talvez por força da repressão da polícia espanhola, menos de 40% da população da Catalunha compareceu à votação, mas o “sim” ter saído vitorioso foi considerado suficientemente legítimo pela Generalitat, que no dia 1º de outubro anunciou unilateralmente que a Catalunha era um novo país.

A Espanha logo interveio e dissolveu o parlamento regional, tomando para si o controle da região, prendendo várias de suas lideranças políticas e marcando novas eleições para o próximo 21 de dezembro. Certamente, as reviravoltas não pararão por aí. A turbulência política persiste e discussões sobre as vantagens e desvantagens econômicas de uma Catalunha independente ou mais autônoma são férteis e, em geral, inconclusivas. Vejamos o porquê.

A economia da Catalunha e os efeitos da crise de 2007

Antes da crise financeira que abalou o mundo em 2007, a economia da Catalunha vinha muito bem. Durante os anos de 2000-2007, a Espanha como um todo se beneficiou da entrada na União Europeia, em particular da adoção do Euro, da credibilidade do Banco Central Europeu (BCE) na condução da política monetária e das exigências de responsabilidade fiscal do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), que prevê o controle rigoroso das contas públicas para que o país possa fazer parte do bloco europeu.

A combinação de baixas taxas de juros e inflação reduzida (ambas direcionadas pelo BCE), déficit fiscal controlado (determinado pelo PEC) e ausência de risco cambial (uma vez que o Euro é seguro) fizeram a economia da Espanha decolar. O crescimento da Catalunha, especificamente, foi em média de 3.7% anuais no período (2000-2007) [1], 0.2% acima do restante da Espanha e 1.4% maior que a média da UE [2]. A estabilidade macroeconômica também atraiu uma ampla oferta de mão de obra: entre 2000-2007 uma onda de imigrantes fez com que a população catalã crescesse cerca de 18% no acumulado, um número espetacular para uma região onde as taxas de natalidade são baixas e a população envelhece. Esse bônus populacional sustentou o crescimento observado no período.

Nos anos pré-crise, os fluxos de comércio da Catalunha eram bastante dependentes da Espanha. De 2000 a 2008, sua balança comercial com o resto do mundo foi negativa (de -3.9% do PIB da região), mas positiva em relação ao restante da Espanha (10% do PIB catalão). Isso se explica pelo fato de que as compras externas (“importações”) da região vieram principalmente de fora da Espanha, enquanto que as vendas (“exportações”) foram em sua maioria destinadas às demais regiões espanholas.

Com a chegada da crise internacional e o default da dívida soberana, todo o cenário mudou. Primeiro, ficaram evidentes as fracas bases nas quais o crescimento dos anos anteriores havia se amparado. Assim como em muitos países que cresceram durante a próspera primeira década do século XXI, a expansão da economia espanhola foi baseada no estímulo ao consumo interno e no endividamento das famílias [3]. A contribuição do setor externo no crescimento do PIB foi negativa, o que ampliou o déficit em transações correntes. Ao mesmo tempo, houve uma pressão sobre os salários e praticamente todo o ganho de produtividade do período recaiu sobre o aumento do emprego. O resultado foi a perda de competitividade das empresas do país no mercado mundial e uma marcante fragilização do sistema financeiro espanhol.

Em segundo lugar, o impacto da crise de 2007 na configuração do comércio exterior da Catalunha foi bastante significativo. Conforme a demanda agregada se enfraquecia, as importações catalãs, originadas tanto das outras regiões da Espanha quanto do resto do mundo, diminuíram. Paralelamente, a combalida demanda espanhola reduziu as exportações da região autônoma. O mesmo ocorreu com a demanda de países europeus, que foram muito afetados pela crise. Motivadas por essas mudanças, as empresas catalãs adotaram estratégias de diversificação e aumentaram as exportações para fora da União Europeia.

Como consequência, o déficit comercial com o resto do mundo se transformou pouco a pouco em um superávit de 5.6% em 2015, movimento ilustrado pelo gráfico acima. Isso significa que as exportações catalãs passaram a depender menos do restante da Espanha. De fato, o peso do mercado espanhol nas exportações da Catalunha decresceu cerca de 26% nos últimos 20 anos. Mesmo que a Espanha ainda seja o principal destino das exportações da região, representando 37.4% do total, a forte tendência negativa indica uma mudança estrutural que não pode ser ignorada.

O comércio exterior (com a Espanha e com o resto do mundo) é um dos fortes da economia da Catalunha. Em 2016, as exportações perfizeram 38% do PIB da região, enquanto que as vendas para o restante da espanha foram de aproximadamente um terço do PIB [4]. Portanto, caso nada mudasse, o peso das exportações em uma Catalunha independente seria superior a 65%, o que caracterizaria o novo país como uma economia bastante aberta. A título de comparação, a média de exportações mundiais, segundo o Banco Mundial, é da ordem de 58% do PIB [5]. Além disso, os fluxos de capital externo para a Catalunha são vigorosos, um dos maiores da Zona do Euro, e há um grande número de multinacionais atuando na região.

O setor de serviços domina a composição do PIB catalão, como acontece na maioria das economias desenvolvidas. Isso se dá principalmente por conta dos fortes incentivos do turismo: Barcelona, a capital da Catalunha, é um dos destinos favoritos dos turistas que vão à Europa, por exemplo. O tradicional setor industrial da Catalunha também não deixa a desejar, tendo um peso um pouco inferior a 17% no PIB regional (na Espanha, o peso é cerca de 13%).

Por tudo isso, a Catalunha é hoje uma das regiões mais ricas da Espanha em termos de renda per capita, 8.8% na frente da média dos 28 países da União Europeia, o que coloca a região em 4º lugar entre as 17 autonomias do país ibérico [6]. Já o PIB em termos absolutos é o maior da Espanha, contribuindo com 18.9% do PIB total, uma proporção maior que a representada pela população catalã, que é cerca de 12% da espanhola.

No entanto, o desemprego ainda é muito elevado. A Espanha como um todo demorou muito para se recuperar da crise, apresentando crescimento próximo de zero até 2013. Como resultado, foi um dos países onde o desemprego atingiu os níveis mais altos, chegando a um máximo de 26.2% em 2013 e perdendo apenas para a Grécia. A taxa de desemprego hoje está por volta dos 15% na Catalunha, muito acima da média europeia de 7.7%. As consequências para a desigualdade de renda são graves. De acordo com o coeficiente de Gini, a Catalunha é uma das regiões mais desiguais da Europa.

O que alegam os economistas independentistas

Atualmente, a maioria da população catalã apoia a independência, como confirmam diversas pesquisas de opinião publicadas em relatórios de bancos internacionais [7]. A insatisfação com a distribuição de renda e o desemprego crônico e elevado certamente tiveram efeito de inflar os sentimentos nacionalistas. Mas há uma outra razão mais sutil.

Como dissemos, está em curso um processo de maior inserção da Catalunha na economia global, que parte, aliás, de uma região com elevado nível prévio de abertura comercial. Diversos estudos [8] relacionam esse tipo de movimento à emergência de novos Estados nacionais. Portanto, é possível que o aumento do apoio à independência tenha ligação com a diminuição da dependência da Catalunha em relação ao mercados espanhóis, uma mudança estrutural a que demos destaque nessa análise.

Dentre os cidadãos pró-independência, há economistas que argumentam que a Catalunha seria um lugar melhor sem a Espanha. O raciocínio parte, naturalmente, do alto PIB per capita da região, que teria condições de ser mantido e, até, de crescer. Veremos no próximo texto que essa é uma afirmação muito controversa. Por ora, apenas chamaremos a atenção para o fato de que a renda per capita da Catalunha é calculada sem levar em consideração que o custo de vida na região é mais elevado que a média europeia, e isso pode levar a uma sobre-estimação do agregado. A Catalunha talvez não seja tão rica quanto parece.

Entretanto, a prosperidade da economia catalã não é o único argumento dos economistas separatistas. Para eles, a questão central é como se dá a redistribuição dos impostos recolhidos por Madrid. O déficit fiscal anual de Catalunha, isto é, a diferença entre o que Madrid recebe de impostos dos cidadãos catalães e o que gasta na região, seria da ordem de 8% do PIB. Este déficit é considerado excessivo e teria forte impacto negativo no PIB regional, além de implicar em um setor público reduzido que prejudicaria os indicadores sociais da Catalunha.

Concluir que aumentar o peso do setor público melhoraria as condições da assistência social na região é bastante questionável, mas não trataremos dessa discussão aqui. Em vez disso, futuramente colocaremos o foco sobre a metodologia usada para calcular o déficit fiscal, que poderia ser bem menor, entre 3% e 5% do PIB. De todos os modos, há um ponto levantado pelos economistas independentistas que é incontroverso: a Catalunha é a segunda região que mais contribui com impostos, mas é apenas a décima em gastos do governo central, isto é, em termos de reaplicação do dinheiro dos contribuintes.

Isso acontece porque Madrid opta por gastar mais em regiões mais pobres, num esforço para melhorar a distribuição de renda no país. Economistas que são a favor de mais autonomia alegam que isso prejudica o dinamismo das regiões mais ricas da Espanha e propõem que se coloque um limite à solidariedade inter regional. A ideia é aplicar o que chamam de princípio da ordinalidade: se a Catalunha é a segunda região onde mais se recolhem impostos, então ela deve ser a segunda em aplicação de gastos públicos, ainda que a soma desses gastos permaneça inferior às contribuições tributárias totais da região. Se um acordo deste tipo com Madrid é factível ou não, discutiremos no próximo texto.

Talitha Speranza – Editora do Terraço Econômico

[1] Instituto de Estatística da Catalunha (Idescat). Disponível em https://www.idescat.cat/. Os dados específicos à Catalunha, quando não indicado, provêm das bases da Idescat.
[2] Eurostat. Disponível em http://ec.europa.eu/eurostat. Os dados referentes à União Europeia, quando não especificado, foram retirado das bases da Eurostat.
[3] Estudo de Xavier Cuadras-Morató, professor associado do Departamento de Economia da Universidade Pompeu Fabra. Este estudo orientou muitas das ideias contidas neste post. Disponível em http://www.case-research.eu/uploads/zalacznik/2017-05-26/The_Catalan_economy_Crisis,_recovery_and_policy_challenges.pdf
[4] Analisis del Comercio de Cataluña. Disponível em
http://files.convivenciacivica.org/Analisis%20del%20Comercio%20de%20Catalu%C3%B1a.pdf
[5] World Development Indicators, Banco Mundial. Disponivel em http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=world-development-indicators
[6] Instituto Nacional de Estatística (INE). Disponível em http://www.ine.es/prensa/cre_2016_1.pdf
[7] Credit Suisse, por exemplo.
[8] Ver, por exemplo https://scholarship.law.duke.edu/djcil/vol24/iss1/2/
[9] Estudo de Miquel Puig Raposo, Vice-Presidente Executivo do Consorci de Serveis Universitaris de Catalunya. Disponível em https://www.forodeforos.org/uploads/debate/d7aa5be87445973b3486a250f58b6aa4073f1458.pdf

Talitha Speranza

Mestre em Economia pela Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha), Mestre em Engenharia Elétrica e Bacharel em Engenharia de Computação pela PUC-Rio. Foi pesquisadora na FGV-IBRE e professora na FGV Management (Big Data e Data Science). Tem passagem pelo mercado financeiro (onde programava trading robots) e pela IPADE Business School (Cidade do México). Atualmente, está viajando pelo mundo e descansando da vida acadêmica.
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