Complexo de vira-lata e o lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho intelectual

O ano de 2017 promete ser, em pelo menos um aspecto, idêntico a 2016: longe de termos vislumbrado qualquer plano de fuga da atual situação de instabilidade política e econômica, é bastante provável que passemos grande parte do ano buscando soluções, ajustes e reformas urgentes e emergenciais que possibilitem ao país desenrolar o impasse corrente. Esse quadro gera duas consequências relevantes para a discussão que proponho aqui: por um lado, há o estreitamento do leque de temas que ocupa a pauta da agenda pública, limitada, em tempos de crise, ao que se considera o mínimo essencial – questões que não podem ser deixadas de lado em nenhum momento da vida social (saúde, educação básica, segurança pública, emprego, etc.); por outro lado, observa-se o travamento de propostas de investimento público na maioria dos setores da economia e da sociedade em prol de uma reorientação em torno de cortes de gastos, despesas e déficits.

A educação superior não figura no rol de temas prioritários ou emergenciais do Brasil contemporâneo. É preciso reconhecer esse fato antes de seguir adiante com qualquer discussão – independentemente de valorações ou reações a ele. Nesta primeira reflexão do ano, à qual darei o tom prospectivo e propositivo, preciso conciliar duas realidades conflitantes: o referido papel de coadjuvante da educação superior no xadrez político-econômico-social do país e a centralidade do tema no espaço da minha coluna. Fazer aqui propostas que impliquem grandes alocações de recursos no setor seria inócuo, seria ignorar o momento e o cenário nacional. No entanto, creio que um dos mais graves problemas que acometem a ciência, a cultura e a educação brasileiras é de tal natureza que seu combate não depende – principal e exclusivamente – de mais recursos.

O termo complexo de vira-lata é peça-chave no vocabulário sociológico nacional. Cunhado por Nelson Rodrigues para caracterizar o trauma causado pela derrota da seleção brasileira de futebol para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950 – evento que passou à história como Maracanazzo, a tragédia da qual o 7×1 para a Alemanha em 2014 foi a atualização farsesca –, o termo tem aplicação que transcende seu contexto social e histórico de origem, servindo de categoria de análise para a campanha realizada por alguns cientistas brasileiros contra o agraciamento a Carlos Chagas com o Prêmio Nobel de Medicina no ano de 1921.

Subvalorizarão e auto-sabotagem são fenômenos comuns em nossa cultura e ciência. É compreensível que não consigamos atingir padrões mundiais de excelência em áreas que demandam investimentos pesados, equipamentos de última geração e grandes contingentes de profissionais altamente qualificados. No entanto, por que o mesmo acontece em setores da produção intelectual que não dependem (tanto) de (tantos) recursos? Por que não somos capazes de gerar grandes narrativas sociológicas, de contribuir com avanços em matemática pura e física teórica, de reorganizar dados macroeconômicos em um novo modelo generalizável ou propor uma abordagem original para a teoria da interpretação de obras literárias? O que nos impede de sentar à mesa com as grandes nações produtoras de conhecimento científico e exportadoras de cultura?

Em princípio, a resposta tentadora é: nada. Nossas universidades vêm sendo cada vez mais reconhecidas em avaliações internacionais e nossa produção artístico-cultural é fonte de admiração nos quatro cantos do mundo. Contudo, não é tão simples assim.

 O complexo de inferioridade que acomete nossa sociedade se manifesta nos círculos acadêmicos através de uma série de mecanismos de controle: a própria maneira como quantificamos a qualidade da produção acadêmica de uma pessoa ou instituição é por ele determinada – mais vale um artigo publicado na Nature organizando uma controvérsia de notas de rodapé sobre hábitos alimentares na América do Norte do que uma sistematização revolucionária de doenças equatoriais. Somos convidados a participar como observadores externos de debates que não nos pertencem ou, na melhor das hipóteses, a testar modelos teóricos estrangeiros com nossas evidências nacionais. Será que aquela teoria alemã do romance se aplica a Grande Sertão: Veredas? A teoria da desigualdade de Thomas Piketty está de acordo com a trajetória econômica do Brasil nos últimos dois séculos? O modelo de regimes pluviais concebido em uma universidade na Califórnia é capaz de lidar com as variações observadas no Vale do Ribeira entre 1990 e 2000? Qual dentre três intérpretes franceses de Jean-Jacques Rousseau tem razão? Quais resultados um protocolo clínico da Johns Hopkins University gerou em quinhentos pacientes de um hospital público de Recife?

Some-se a isso pressões políticas por resultados imediatos na pesquisa científica e obtenha-se a receita para a mesquinhez e a pequenez intelectuais. No ano passado, por exemplo, o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, repreendeu a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – um dos principais órgãos de fomento do país – por gastar dinheiro com teses de doutorado em sociologia em vez de financiar a produção de vacinas contra o zika vírus. Para além da falácia da falsa dicotomia – como se fosse necessário escolher um em detrimento de outro (um dado: ciências humanas e sociais recebem avassaladores 2% do orçamento da Fapesp) –, há na fala do governador um imediatismo de resultados com o qual a produção científica não pode conviver. Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro: países como Coreia do Sul e Índia produzem inovações tecnológicas de aplicação imediata e geram patentes, mas continuam dependendo de países onde há produção sólida e consistente em ciências básicas, dos quais importam modelos teóricos e para os quais enviam seus profissionais para que sejam treinados – no mais das vezes, às custas do país de origem.

Trata-se, portanto, de uma conjunção de fatores psicológicos, políticos, institucionais e estruturais que impedem o florescimento da produção acadêmico-científica no Brasil e nos mantém em posição subalterna, periférica e dependente na divisão internacional do trabalho intelectual. Para que superemos esse quadro, é necessário não um processo de terapia coletiva da comunidade acadêmica, mas uma reorientação dos critérios de avaliação de qualidade, de cobrança político-institucional e de alocação dos recursos já existentes para o financiamento de pesquisas, de modo que seja concedido espaço a iniciativas originais e inovadoras que sejam capazes de impactar um campo de estudos e cujos frutos só serão colhidos a médio-longo prazo.

Se, por um lado, esse prognóstico não oferece uma saída de emergência para o caos no qual o país está embebido, por outro lado ele lança as bases para que não sejamos novamente pegos numa turbulência tão grave – ou ao menos não estejamos tão despreparados para quando ela vier. O que está em jogo é a saída do nosso país da menoridade intelectual – para tomar emprestado um termo do filósofo alemão Immanuel Kant – e a transformação de nossos excelentes trabalhos atuais em regra, não em exceção.

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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