Crise do financiamento imobiliário e poupança bancária

“Quando a música parar, em termos de liquidez, as coisas vão se complicar. Mas enquanto a música estiver tocando, nós temos que nos levantar e dançar.  E nós ainda estamos dançando”

Charles O. Prince III, ex-presidente do Citigroup

A velha senhora.

De longa data, atravessando gerações, a caderneta de poupança existe na realidade dos brasileiros desde a formação do sistema e mercado financeiro brasileiro. Sua história se confunde com a dos grandes bancos nacionais (Caixa, BB, Bradesco, Itaú, Unibanco), estes originários das casas bancárias e também das caixas econômicas coloniais.

A poupança é considerada a forma mais básica e popular de se acumular recursos, lembrando que os valores ali alocados já foram – e são – utilizados como instrumento de política econômica em diversos momentos, como por exemplo, intermediar políticas de desenvolvimento habitacional, garantia de direito trabalhistas e também na tentativa de combate à hiperinflação. Recentemente, sua regra de rentabilidade foi alterada de acordo com o patamar da taxa de SELIC, na tentativa atabalhoada do governo em forçar a derrubada da taxa de juros básica da economia.

Pois bem, aparentemente a senhora voltou aos holofotes.

É sabido – principalmente pelos agentes dos mercados – que com a nomeação da nova equipe econômica do Dilma II ocorreu uma guinada à ortodoxia.  A palavra de ordem rapidamente tornou-se a implementação (ou a tentativa) de um profundo ajuste fiscal nas contas públicas, visto que estamos assistindo uma dura empreitada na aprovação de maiores equilíbrios nas receitas e despesas governamentais, com provável aumento de impostos, envolvendo grandes negociatas políticas nos escritórios de Brasília. O alinhamento com as exigências das agências de risco internacionais e o realismo fiscal, com reajuste no preço da água, gasolina, energia (este com aumento de 60% nos últimos 12 meses) e transporte público completam o pacote de “maldades” necessário para a normalização dos fundamentos econômicos.

No turbilhão de tais acontecimentos, o nível da poupança bancária nos primeiros seis meses de 2015 acompanhou o movimento de retração em que a economia e a renda estão trilhando, movimento este nunca visto desde a estabilização econômica em 1994, com o plano Real.

Esta realidade pode ser acompanhada de forma mais clara no Gráfico 1.

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Fonte: BACEN, elaboração Terraço Econômico (dados até 15/06)

Segundo dados da série histórica disponibilizada no site do Banco Central, a caderneta de poupança vem registrando mês após mês em 2015 recordes de saques, conforme registrado no Gráfico 2. A poupança já acumula R$ 36,6 bilhões em saques (considerando os dados até 15/06), sendo o resultado de março/15 o pior desde o início da série em 1995.

A grande questão é que o cenário no curto prazo para a economia não deve registrar grandes alterações, lembrando que os choques de juros do BACEN, com as constantes aumento da taxa (a Selic se encontra atualmente em 13,75%, podendo atingir 14,0% conforme aponta o último boletim Focus) favorecem a alocação em fundos de investimentos de renda fixa.

Segundo dados atuais, a caderneta consegue superar a rentabilidade de fundos apenas quando a taxa de administração destes supera 3% ao ano (taxa considerada relativamente alta para um fundo de investimento comum). Portanto, dada a difícil competição da caderneta com os fundos, fica mais clara a compreensão da forte transferência dos recursos de um para outro.

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Fonte: BACEN, elaboração Terraço Econômico, dados até 15/06

As explicações por parte economistas quanto a este fluxo são diversas. Entretanto, há um certo consenso de que, mesmo com o maior gasto das famílias brasileiras no início do ano (especialmente com tributos como IPVA, IPTU, matrícula e material escolar), o movimento é extremamente atípico, levando grandes instituições bancárias a promoverem estratégias para impedir maiores saídas.

O país convive em um ambiente de baixo crescimento econômico desde 2014, situação agravada neste ano. Em 2015, consideramos os seguintes elementos de uma tempestade perfeita:

  • Expectativas de inflação extrapolando os limites civilizados (acima dos 8,0%),
  • Aumento da taxa de desemprego (que passou de 4,3% em dezembro de 2014 para 6,2% em março).
  • Restrição crescente do crédito direto ao consumidor

Assim, fica mais fácil compreender o movimento de retiradas nas cadernetas, portanto, ao se levar em conta o maior custo do dinheiro na economia e o aumento do endividamento das famílias, a demanda por consumo diminui. Em outras palavras, o brasileiro médio, em tese, considera mais eficiente utilizar seu pequeno fundo de reserva para honrar seus compromissos do que se alavancar do mercado de crédito.

Mas, afinal, qual é o verdadeiro problema desse fenômeno?

A caderneta de poupança é o principal instrumento de funding para o credito imobiliário, lembrando que as instituições precisam direcionar ao menos 65% das captações para tal fim, conforme artigo 1º da Resolução 3932 do Banco Central do Brasil. É evidente, se a demanda por crédito habitacional cresce a taxas maiores do que as captações da poupança, em algum momento essa conta não irá fechar (funding insuficiente). Nesse sentido, o cenário forçou os bancos a adotarem outros instrumentos para captação mais custosos, diminuindo, a princípio, seu spread.

Porém, como não existe almoço grátis, recentemente a Caixa Econômica Federal (instituição referência em crédito imobiliário subsidiado) e também o Banco do Brasil anunciaram o aumento em suas taxas de juros de balcão e, ainda, elevaram o percentual mínimo de entrada exigido para o processo de financiamento (apenas 80% do valor do imóvel).

O Itaú diminuiu o percentual máximo de financiamento para 70% do valor do imóvel.

O Bradesco, por sua vez, aumentou as taxas de balcão para operações de 9,6% a.a. para 9,8%a.a.

O Santander aumentou de 9,6% a.a. para 10,1% a.a.

As complicações também se estendem para o ambiente rural, pois parte dos recursos da caderneta também são direcionados para créditos de pré-custeio e custeio de safras. Dados recentes do BB demonstram a disponibilidade de apenas R$ 4 bilhões para tal finalidade, valor bem abaixo da demanda esperada de R$ 7 bilhões em 2015, resultando novamente na necessidade de buscar novas fontes de financiamento, consequentemente aumento no custo de captação e claro, maiores taxas de juros para os produtores rurais.

Em todo caso, as formas alternativas de financiamentos nos quais os bancos estão se apoiando são: emissão de LCI (Letra do Crédito Imobiliário) e LCA (Letra do Crédito Agrícola) [1]. Tais operações são mais custosas em sua captação em comparação a caderneta, sobretudo pela necessidade operacional de ofertar o produto no mercado, a sua capacidade de remunerar o capital investido acima de 100% do CDI e também a existência benefício fiscal (isenção de imposto de renda). No entanto, aparentemente o produto está sendo bem aceito, o número de aplicadores nas letras, passou de 540 mil em 2013 para 1 milhão em 2014, segundo o FGC (Fundo Garantidor de Crédito).

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Fonte: BACEN e CETIP (dados até 12/06), elaboração Terraço Econômico.

Tal movimento pode ser visto no Gráfico 3, em uma análise dinâmica do Sistema Financeiro Nacional, a relação da depreciação no saldo total das aplicações convencionais (caderneta de poupança e o CDB – Certificado de Depósito Bancário), vis-à-vis a notável elevação dos saldos das letras, também ajuda a explicar o fenômeno dos saques. O fato coloca as instituições em um certo dilema estratégico, pois precisam ofertar cada vez mais letras para atender seus limites de funding, retroalimentando o movimento de resgate existente.

Na outra ponta temos as construtoras e incorporadoras, segundo um escritório especializado, nas quais já se registram o aumento de 60% de ações de distrato nas aquisições de imóveis na planta [2], entre o primeiro semestre desse ano e do ano passado, aumentando ainda mais a insegurança e instabilidade do setor. Esse fenômeno retroalimenta o processo de demissões, tendo em vista que o setor de construção civil é um dos que mais emprega no país e que apresenta rigidez baixa (flexibilidade de contratos), ou seja, a taxa de desemprego irá aumentar. Podemos também indicar que índices de vacância (imóveis vazios) vêm subindo há alguns meses, sobretudo nos grandes centros urbanos, alinhado ainda a expectativa de queda real no valor dos imóveis.

Para dimensionar a crise, no Gráfico 4, analisamos o Índice FIPE ZAP nas grandes capitais brasileiras [3], o indicador de maior confiança do mercado imobiliário brasileiro, notamos após janeiro de 2015, valorização abaixo da IPCA, ou seja, descontada a inflação, os preços médios dos imóveis apresentaram desvalorização relativa, fato muito relevante e que refuta a atratividade do setor, sobretudo por parte de grandes investidores e fundos de investimentos especializados.

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Fonte: ZAP Imóveis e IBGE

Por fim, para completar o cenário, no início de 2015, rondava no mercado a possibilidade de que o -ministro da fazenda, Joaquim Levy, iria implementar a tributação de imposto de rendas sobre as LCI e LCA para aumentar a arrecadação da máquina estatal, diminuir a atratividade do produto e por consequência, reduzir a fuga de valores da poupança. A discussão, aparentemente, foi rapidamente arrefecida dado a complexidade da conjuntura atual, embora não tenha sido completamente descartada.

Observado o prelúdio de uma crise sistêmica, o Banco Central e CMN (Conselho Monetário Nacional), muito a seu contragosto, decidiu liberar R$ 25 bi dos compulsórios da poupança [4], o que em certo sentido irá irrigar o ambiente financeiro com liquidez imediata, porém apenas cobrindo o rombo de R$ 36,6 bi acumulado no ano.

É valido lembrar também que, apesar do grande boom recente das operações com crédito imobiliário, o Brasil ainda apresenta apenas 9,7% de participação em relação ao PIB [5], bem abaixo de padrões internacionais, como EUA, Reino Unido, Alemanha e Chile, ou seja, ainda há espaço para crescimento, considerando principalmente a carência habitacional do país.

A simplória caderneta de poupança, assim demonstrado neste artigo, é uma de nossas jabuticabas e está claramente conectada por todo o sistema de financiamento da economia, e tem impactos reais, sobretudo em um setor ainda mais importante que é o credito imobiliário e por sua vez, no mercado imobiliário.

O setor imobiliário passou por sua belle époque recentemente, porém se no curto e médio prazo as expectativas da economia não são as melhores, é bom que ele se acostume com os novos ares vindos dos mercados.

PEDRO (1)

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*Versão estendida do artigo publicado na revista Markets st  http://www.marketsst.com/

[1] http://www.infomoney.com.br/lci-lca [2] http://www.tapaiadvogados.com.br/noticias/web/crise-economica-leva-a-aumento-de-60-nas-acoes-de-distrato-de-imoveis [3] http://www.zap.com.br/imoveis/fipe-zap-b/ [4]http://www.valor.com.br/financas/4083206/bc-atende-o-planalto-na-liberacao-de-compulsorios [5]http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2014/12/operacoes-de-credito-do-sistema-financeiro-crescem-em-novembro

Pedro Lula Mota

Economista pela UNICAMP, como passagem pela Universidade do Porto - Portugal. Admirador da arte da fotografia, principalmente de lugares extremos e excêntricos.

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