Ensino superior universal e desigualdade econômica: uma resposta a Leonardo Siqueira

Na última segunda-feira, o editor e co-fundador do Terraço Econômico, Leonardo Siqueira, escreveu um comentário a propósito do cancelamento do ano letivo de 2017 pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), no qual aproveitou para tecer comentários mais gerais sobre o ensino superior público no Brasil. O texto foi republicado na página do Terraço, à maneira de um editorial. Você pode ler ele aqui: https://goo.gl/7WR5yF

Nele, Siqueira argumenta que, dado o caráter elitista das universidades públicas brasileiras, o cancelamento do ano letivo afetará essencialmente pessoas de classe média e média-alta – apenas em casos excepcionais, afirma o autor, pessoas provenientes das camadas mais pobres da população acessam essas instituições de ensino (especialmente aquelas de excelência e nos cursos mais tradicionais, como engenharia, direito e medicina, por exemplo). A crueldade dessa distorção é ainda maior, lembra-nos Siqueira, porque as universidades são financiadas principalmente – em termos proporcionais – por aqueles a quem seu acesso é negado: a maioria dessas instituições compõe seu orçamento a partir de impostos indiretos sobre o consumo, que são regressivos (recaem mais pesadamente sobre aqueles com menor renda).

Como se isso não bastasse, as pessoas oriundas das classes sociais menos favorecidas acabam em instituições privadas de ensino, o que implica um duplo gasto – para financiar as instituições públicas às quais não têm acesso e para bancar sua própria instrução superior. Em suma, conclui Siqueira, o subsídio da educação superior gratuita produz efeito diametralmente oposto àquele concedido à saúde pública: neste caso, todos pagam pelo serviço por meio de impostos, mas são os mais pobres a maioria dos beneficiários – já que os mais ricos pagam planos de saúde privados –, gerando transferência (indireta) de renda e redução da desigualdade; naquele caso, tem-se o contrário, já que todos contribuem para o financiamento das universidades – e o mais pobres, proporcionalmente anda mais –, mas os mais ricos constituem a maioria dos beneficiários, o que gera uma transferência (indireta) de renda para o topo da pirâmide e o aumento da desigualdade.

O diagnóstico do nosso economista é incontestável, descrevendo com precisão a situação atual do sistema de ensino superior público no Brasil. Diante dele, o que fazer? Siqueira se resume a dizer que são necessárias mudanças, mas não chega – dada a restrição de tamanho de um texto dessa natureza – a indica-las. Pois bem, tenho algumas sugestões para o prognóstico.

Antes de mais nada, deixo claro que concordo com a análise de Siqueira, e, com ele, afirmo que os dois principais problemas do nosso sistema de ensino superior público são: 1) seu caráter elitista, com barreiras de acesso aos mais pobres que fazem com que, na prática, a maioria dos estudantes venha dos estratos mais privilegiados da sociedade; 2) seu financiamento regressivo, resultado de uma arquitetura tributária que distribui os ônus desigualmente, sobrecarregando os mais pobres. A questão é, portanto, como corrigir essas distorções? Deixo duas sugestões a respeito.

Quanto ao primeiro desafio, superar ou reverter o caráter elitista das universidades públicas brasileiras, uma experiência tem sido posta em prática por muitas instituições nos últimos anos: a adoção de cotas sociais e/ou raciais. Por meio de diferentes mecanismos de compensação, tem-se buscado alargar a porta de entrada dessas universidades para aqueles a quem o acesso foi historicamente negado. Há diversos debates interessantes acerca do tema, como sobre a adequação – ou não – de critérios raciais, a autodeclaração, o desempenho dos estudantes cotistas ao longo da graduação (e da pós-graduação), a necessidade – ou não – de oferecer formação complementar (um tipo de “nivelamento”) a esses alunos, etc. Longe de ser uma medida consensual, as cotas alimentam controvérsias e discussões riquíssimas, tanto na esfera econômica quanto para além dela.

Quanto ao segundo desafio, há o que tem assumido a forma de um emplastro milagroso para o Brasil nos últimos anos: uma reforma tributária que institua a progressividade do sistema. Trata-se de garantir que as camadas mais ricas – num certo sentido, privilegiadas – da sociedade contribuam proporcionalmente mais com o montante de impostos que as camadas mais baixas. Esse sistema de transferência forçada de renda por meio de tributos seria uma forma de reconhecer distorções na distribuição de oportunidades e bens públicos e procurar, na medida do possível, corrigi-la – ou, ao menos, mitiga-la. Assim como no caso anterior, não se trata de uma medida consensual, e muito menos simples – entre apoiá-la, concebê-la e aplicá-la há, sempre, o abismo do real e da prática.

Das distorções – muito bem diagnosticadas por Siqueira – do sistema de ensino superior gratuito tal como ele existe hoje, não se infere necessariamente que ele deva ser abolido – assim como das injustiças do sistema tributário atual não se infere que imposto seja roubo. É possível, sem dúvida, chegar a ambas as conclusões, mas elas requerem mais passos argumentativos no percurso, envolvendo uma interdisciplinaridade e uma abertura para perspectivas e pontos de vista muitas vezes conflitantes.

As questões sociais complexas não se prestam a simplificações, a caricaturas anedóticas nem a reducionismos, como Siqueira tem muito bem demonstrado nos seus anos de articulista aqui no Terraço. Nenhum dos grandes problemas receberá uma solução exclusivamente da economia, da ciência política, da sociologia, da engenharia, da psicologia (clínica ou social), do urbanismo, da pedagogia, etc, etc, etc.

Certamente, o ideal seria investir consistentemente no ensino básico (infantil, fundamental e médio) público, gratuito e universal, de modo a oferecer educação de qualidade a todos e permitindo que o acesso ao ensino superior seja distribuído de maneira menos distorcida entre a população. No entanto, como tal revolução requer mais de uma década, impõe-se a questão do que fazer com as gerações de jovens nesse intermédio –uma questão que não justifica desistir desse investimento a médio-longo prazo, mas impõe a necessidade de ações simultâneas de efeito mais imediato.

Há muitas respostas e soluções possíveis para esses desafios, e nenhuma delas pode se pretender a única certa ou digna de mérito. Por isso, esse texto é menos uma resposta no sentido de uma refutação e mais uma resposta no sentido de abertura e convite a um debate, a uma reflexão, a uma elaboração mais detida. Partilhando do diagnóstico preciso de Siqueira, puxo uma cadeira para que conversemos – ele, você e eu – sobre esse tema que me é tão caro e que é tão relevante para o presente e o futuro de nosso país.

Podem pedir uma cerveja, a primeira rodada é por minha conta. E vamos ao debate!

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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