Folclore econômico: falácias da economia repetidas por aí

O dia 22 de agosto marca a comemoração do folclore nacional, os outros 364 (ou 365, caso o ano seja bissexto) marcam a comemoração do folclore econômico mundial. Foi justamente esse o tema de uma recente publicação de Pascal Boyer e Michael Bang Petersen, intitulada “Folk-economic beliefs: An evolutionary cognitive model”. Nessa publicação, os autores estudam as mais diversas crenças econômicas, populares e explícitas, que influenciam as escolhas e a formação do posicionamento político das pessoas.

Embora essas crenças contrariem alguns dos princípios elementares da teoria econômica, a abordagem utilizada pelos autores não os trata como consequências da ignorância, um desvio em relação aos princípios, porém, como fenômenos explicáveis à luz da evolução da cognição humana. Isso se dá pelo pressuposto de não serem necessariamente diretos ou coerentes, diferentemente de outros domínios de investigação como o da microeconomia, da economia comportamental ou da neuroeconomia.

Obviamente a maioria das pessoas, incluindo o público educado das sociedades democráticas modernas, não pensa tal qual um economista. A visão delas sobre o tema seria, portanto, influenciada pela operação de sistemas de inferência ou reflexão não conscientes, moldados pela seleção natural ao longo da história evolutiva humana. Sendo assim, Boyer e Petersen não pretendem apresentar uma proposta normativa, ou seja, defender uma forma “correta” de avaliar crenças e processos econômicos.

Isso se dá porque i) embora esses fenômenos sejam, em grande parte, descritos na literatura, sua validade ou não é incapaz de explicar sua propagação; ii) Ao implicarem consequências políticas, pode-se dizer o próprio estudo das crenças econômicas é parte de um determinado projeto político. Entretanto, é possível afirmar que indivíduos das mais diversas orientações são susceptíveis a demonstrá-las; iii) Mesmo sendo mal-fundamentadas, pode-se questionar a obtenção de resultados desejáveis para certos grupos sociais através desses fenômenos, porém, o foco do estudo está voltado para a razão de seu surgimento.

8 crenças econômicas populares

Feitas essas considerações, vamos a alguns exemplos das crenças em questão.

Um vilão chamado “comércio internacional”

Neste caso os efeitos do comércio internacional são vistos como negativos, levando à falas como “não temos empregos porque os estrangeiros fabricam aquilo que precisamos”, “não precisamos comprar dos outros se podemos produzir nós mesmos” ou “estamos perdendo para o país ‘x’ porque compramos os produtos deles e eles não compram os nossos”. Essas afirmações são sustentadas pela ideia do comércio internacional enquanto jogo de soma zero, em outras palavras, o ganho de um implica perda do outro.

“Os malditos imigrantes estão roubando os nossos empregos!”

Alguns supostos impactos econômicos negativos da imigração são o ponto central de muitos debates atuais. De forma geral, o raciocínio por trás disso seria que há um número fixo de empregos dividido entre as pessoas em uma economia.

Os imigrantes “se aproveitam” dos sistemas de assistência social

Uma crença praticamente oposta ao exemplo anterior, nela o imigrante é visto como um “sanguessuga” que gera encargos fiscais, portanto, além de “roubarem nossos empregos” eles também são “beneficiados às nossas custas”. Logo, uma relação de causalidade direta entre estresses fiscais e a ocorrência de imigrações acaba sendo erroneamente traçada.

“O programa de assistência social ‘y’ serve para sustentar vagabundos”

Esses programas, como o seguro desemprego, acabam sendo alvo de objeções até mesmo contraditórias. Por um lado, seriam desejáveis quando se considera acontecimentos imprevisíveis. Por outro, incentivam a “vagabundagem” e uma cultura de dependência.

Um monstro chamado mercado

Por trás desta crença está uma concepção do mercado (designada pelo termo emporiofobia) não como o encontro de vendedores e compradores que resulta em benefícios mútuos, mas, como uma luta entre partes cujo respectivo poder de barganha é desigual. Logo, todo tipo de solução de mercado para a alocação de bens (leilões, adoção de crianças ou doação de órgãos) acaba sendo rejeitada e alocações arbitrárias (sorteios ou alocações por ordem de chegada, por exemplo) acabam sendo vistas como alternativas preferíveis nos aspectos de justeza e eficiência.

Os malefícios da busca desenfreada pelo lucro

A obtenção de lucro acaba sendo compreendida como uma tentativa de extração daquilo que está além do considerado “justo” em uma transação. Sendo assim, firmas “orientadas ao lucro” são interpretadas como menos benevolentes em relação às sem fins lucrativos. Inclusive, essa crença pode se manifestar através de versões ligeiramente modificadas como, por exemplo, apontamentos do dito lucro “justo”, “excessivo” ou passível de limitação. Em suma, esse tipo de afirmação sugere que interações baseadas no interesse próprio são incapazes de gerar ganhos de bem-estar.

Se o trabalhador tudo produz, a ele tudo pertence

Ao pressupor que a quantidade de trabalho empregada na produção de um bem é o fator essencial (ou único) na determinação de seu “valor”, afirma-se que uma quantidade (geralmente indefinida) dele não está representado no preço de mercado. Essa proposição sustenta argumentos favoráveis a uma maior remuneração para os empregos cujas atividades são desprazerosas ou fisicamente intensas.

A regulação de preços sempre é benéfica

Em muitos casos os pedidos de regulação de preços assumem que a intervenção desejada conduz a economia aos resultados esperados, protegendo o indivíduo de dinâmicas de mercado perversas.

Heranças evolutivas

A análise das crenças econômicas a partir do modelo proposto pelos autores permite dizer que não se tratam de consequências da ausência de treinamento na disciplina, da persuasão política ou da absorção de valores culturais específicas. Ao invés disso, são efeitos de sistemas intuitivos e reflexivos, passíveis de inconsistências e incoerências, utilizados para a compreensão de um fenômeno persistente e transversal na história da humanidade e sua evolução: a realização de trocas.

As trocas, enquanto um problema de otimização, deixaram de dizer respeito à caça, à busca por um parceiro ou pela obtenção de apoio social. Hoje, estão presentes na vida urbana, cuja rapidez de deslocamento, possibilidades de comunicação e a existência de uma economia de massas não apresentam precedentes. Este último aspecto, inclusive, é uma das diferenças cruciais entre as sociedades humanas do passado e do presente. Antes o aspecto econômico da vida não acontecia de forma emancipada, ou seja, era parte da interação social das pessoas de forma direta e explícita.

Os sistemas cognitivos evolutivamente moldados para lidar com a proto-economia, portanto, acabam gerando contradições e considerando aspectos possivelmente menos relevantes ao serem aplicados no ambiente atual, caracterizado pela racionalização das trocas e pela economia de mercado moderna e impessoal. Ademais, a representação exercida pelas crenças econômicas pode se aproximar da realidade que moldou os sistemas intuitivos e reflexivos, porém, como foi dito, ela já não é mais a mesma.

No passado, a preservação da cooperação entre indivíduos implica no repúdio ao caroneiro, que é o indivíduo que se aproveita dos benefícios gerados a partir da ação de terceiros. A busca por um parceiro, conduz à competição pela cooperação. O estabelecimento de filiações entre indivíduos gera ganhos mútuos dado que há um objetivo comum, assim, a competição passa a ser inter-grupal. Atualmente, o imigrante não é o equivalente ao caroneiro que ameaça a cooperação, assim como a competição entre países no comércio internacional não é equivalente à competição inter-grupal de outrora.

No entanto, os sistemas cognitivos ainda são, em essência, os mesmos. Seus eventuais produtos, as crenças econômicas, acabam sendo reforçadas e propagadas por serem atrativas à mente humana, independentemente de não constituírem uma teoria, pelo contrário, seu conjunto pode ser classificado como uma coleção de ideias consideravelmente voláteis.

O modelo apresentado não pode ser conciliado com o comportamento econômico de maneira satisfatória. Entretanto, sua relevância política é ímpar, afinal, pode-se considerar que o debate público muitas vezes não envolve causas e consequências, mas aquilo que acaba sendo intuitivamente atrativo.

A opinião percorre distâncias maiores, por mais tempo e tange assuntos que muitas vezes não podemos sequer observar diretamente, fazendo com que a experiência própria tenha sua utilidade real, não percebido pela via “sensorial”, reduzida diante da operação do mecanismo “invisível” criado a partir da interação entre pessoas comuns e estudado pelas incomuns, os economistas.

Paulo Silveira

Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e ex-graduando em Economia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trabalha com gestão de produtos digitais em startups brasileiras. Produz conteúdo sobre economia e tecnologia. Foi um dos vencedores do concurso nacional de resenhas organizado pelo Conselho Federal de Economia em 2017, escrevendo sobre a obra 'Princípios de Economia Política e Tributação' de David Ricardo.
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