Governadores pedalam? Um esclarecimento

Alípio Ferreira Cantisani | Terraço Econômico “Quebrei o banco, mas fiz meu sucessor”. A frase apócrifa foi atribuída ao ex-governador do Estado de São Paulo Orestes Quércia, e referia-se ao banco estadual paulista, o Banespa. Nos idos dos anos 1990, os bancos públicos estaduais eram instrumentos dos governadores para suas políticas de governo, e um obstáculo à contenção da hiperinflação. Na condição de controladores dos bancos, os governos estaduais tomavam vultosos empréstimos, lastreados amiúde nas receitas tributárias futuras do Estado. O resultado dessas práticas foi que os bancos acumularam em suas carteiras imensas promessas de pagamentos de seus donos, que viciados na facilidade de crédito, endividavam-se além de suas capacidades. Quebraram-se assim tanto os bancos quanto os estados. O governo federal, em 1997, iniciou um programa de reestruturação das dívidas dos governos subnacionais. Os governos municipais e estaduais que aderiram ao programa aceitaram contrair uma dívida junto ao governo federal em condições favoráveis, enquanto este último assumia para si as dívidas que os governos subnacionais possuíam com outras partes. Porém, havia algumas condições para essa ajuda: o comprometimento com regras estritas de responsabilidade fiscal e a privatização de diversos ativos detidos por esses governos. No contexto dessa operação, inúmeros bancos estaduais foram vendidos, entre eles o Banespa. Em 2000, o governo federal selou essa consolidação fiscal do Brasil com a edição da lei complementar 101. Essa pedra angular de nosso equilíbrio fiscal, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, expressamente veda a prática em que se lambuzaram tantos governantes no passado: o empréstimo de recursos de bancos controlados para o pagamento de suas obrigações. Em seu artigo 36, a lei limpidamente declara que :

É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.
Essa regra vale para todos os governantes, mas uma vez que a maioria dos governos estaduais já não dispõe de instituições financeiras sob seu controle, o principal ente vinculado por essa vedação é a União. O governo federal é proibido de tomar empréstimo junto aos bancos federais, como a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil e o BNDES. Mencione-se ainda que essa regra não existe somente no direito financeiro público. A lei 7.492/86, que define crimes contra o sistema financeiro nacional, em seu artigo 17, proíbe que controladores de instituições financeiras tomem, direta ou indiretamente, empréstimos ou adiantamentos das instituições controladas. Aqui, tal como na Lei de Responsabilidade Fiscal, quer-se evitar que o controlador se aproveite de sua posição de poder em benefício próprio e em detrimento da saúde financeira da instituição que controla. É isso que Dilma é acusada de ter feito nas chamadas pedaladas fiscais: os bancos federais usaram seus recursos próprios para pagar contas do governo federal, com a promessa de que este transferiria “um dia” o volume necessário para quitá-las. As pedaladas de Dilma foram muito mais do que uma fricção corriqueira, um atraso derivado de estimativas imprecisas, como pode ocorrer. O que houve foi a prática sistemática e crescente de não transferir a esses bancos os recursos necessários para pagar determinadas contas do governo. Trata-se de um empréstimo oculto, atentando justamente contra o que a lei visa proibir. Isso que o governo federal fez não pode ser feito pelos governadores, simplesmente porque eles não dispõem de uma instituição financeira cujos recursos possam ser utilizados de maneira obscura e fraudulenta. A acusação de que os governadores dos estados, inclusive o atual governador de São Paulo, fizeram pedaladas como aquelas de que Dilma é acusada é simplesmente falsa, e felizmente o é! É assim porque nos anos 1990 houve um programa que permitiu aos governadores trocarem a bancarrota pela responsabilidade fiscal, abrindo mão de empresas e bancos que sugavam o dinheiro dos impostos e arruinavam a economia do País. No caso de São Paulo, vale lembrar que a privatização do Banespa foi feita no âmbito do Programa Estadual de Desestatização, cujo comitê era presidido pelo então vice-governador do Estado, Geraldo Alckmin. (Que o povo paulista nutra eterna gratidão por esses serviços do vice-governador). Relembrar a história nos ajuda a compreender por que o descalabro promovido por Dilma não pode ser aceito. Aceitá-lo seria voltar atrás, seria renegar conquistas importantes realizadas nas últimas décadas pela sociedade brasileira – e não por um ou outro partido, uma ou outra ideologia. Felizmente para o Brasil, houve uma reorganização das contas públicas de todos os entes federativos nos anos 1990, a privatização de inúmeros bancos públicos e a edição de uma lei que pune práticas contra a ordem fiscal. Pois a Lei de Responsabilidade Fiscal diz em seu artigo 73 que as infrações aos seus dispositivos serão punidas, entre outros, pelo Código Penal e pela Lei do Impeachment. Ora, a lei do impeachment só prevê uma punição possível: o impeachment. Logo, é evidente que infrações à Lei de Responsabilidade Fiscal podem e devem ser argumentos para iniciar processos de impeachment, muito embora o julgamento desse processo dependa também de fatores políticos. É possível quebrar um país sem violar a lei? Sim. É possível pôr o país numa recessão sem violar a lei? Sim. É possível ser incapaz de negociar com o Congresso, de escolher um Ministro da Justiça não impedido, de completar uma frase, sem violar a lei? Sim. Dilma foi capaz de tudo isso, mas seu pedido de impeachment se baseia nos créditos suplementares sem autorização do Congresso e nas pedaladas fiscais. O contexto catastrófico engendrado pela petista vai certamente pesar no julgamento que dela farão os congressistas, mas o crime está posto e explicado. Caberá agora aos deputados e senadores, segundo manda as leis desta terra, decidir se essas práticas merecem ser punidas ou se devemos regredir no tempo. alipio     (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

Alípio Ferreira

Formou-se em economia pela EESP-FGV, onde desenvolveu sua paixão por números primos e poesia alemã. Foi editor-chefe da revista Gazeta Vargas, associação cultural formada por alunos das escolas de Administração, Economia e Direito da FGV-SP. Escreveu um artigo sobre plebiscitos suíços no Valor Econômico e foi funcionário público. Almeja glória e poder para todo o sempre. Hoje é mestrando em economia na Universidade de Tilburg, nos Países Baixos. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2014 e 2017.

6 Comentários

  1. Uma pergunta sincera: todos os governos usaram recursos de bancos públicos para pagar contas e depois devolver. FHC o fez, Lula o fez, a própria Dilma já fez e o TCU, os deputados e o povo sempre consideraram que isso não era empréstimo e que não havia crime. Coincidentemente, num momento em que o governo se afunda na crise política e econômica, essa interpretação ganha corpo, depois de tentarem tirar a presidente por corrupção e não terem achado envolvimento pessoal dela. Se essa manobra é crime de responsabilidade, porque a interpretação só surgiu agora, nesse momento tão conveniente, e ainda por cima foi retroativa? Eu sinceramente gostaria de saber sua opinião. Obrigado!

    1. Oi Lelé. A defesa da presidente diz que os saldos negativos nas contas não são ilegalidades em si mesmas, e isso é verdade. O governo faz transferências a essas contas baseado em estimativas que muitas vezes são subestimadas: o saldo fica no “cheque especial” e o governo realiza a transferência o mais rapidamente possível. Porém, o que ocorreu no governo Dilma foi que esses saldos negativos passaram a ser cada vez mais frequentes e apresentar valores cada vez maiores. É isso que configura a acusação de que a presidente estava na prática tomando dinheiro emprestado dos bancos públicos, e que esses saldos negativos não eram simplesmente incidentais. Para uma imagem impactante que mostra como a prática das pedaladas foi diferente no governo Dilma, ver: http://www.contasabertas.com.br/website/arquivos/12059
      Eu também comentei esse assunto num outro artigo para o Terraço: https://terracoeconomico.com.br/nao-ha-inocentes-em-pedaladas
      Esse artigo também comenta o argumento da defesa de que houve uma condenação ‘retroativa’. Na verdade a prática das pedaladas sempre foi ilegal, e não deixa de sê-lo porque o TCU não detectou. O TCU aprovou as contas anteriores da presidente sem apreciar as pedaladas especificamente. Isso não quer dizer que o tribunal aprovou as pedaladas, e o TCU sequer teria o poder de decidir definitivamente se elas constituem crime de responsabilidade ou não. Isso quem julgará será o Senado federal, segundo a lei do impeachment.
      Espero ter respondido a sua questão.
      Abraços
      Alipio

      1. A lei não fala nada sobre “mais” ou “menos” pedalada. É tão somente sobre haver pedalada sim ou não. Tenho o mesmo pé atrás que o Lelé: se sempre foi crime, por que punir somente agora? Até hoje, nada do que li justifica isso a contento.

  2. Artigo esclarecedor. Sem entrar no mérito da questão, achei, porém, um tanto frustrante, porque generaliza para o país o caso de SP
    Há outros estados que ainda têm suas instituições financeiras públicas ou controladas e que, até onde pude saber, utilizaram do expediente das pedaladas.

  3. O atraso no pagamento da restituição da nota fiscal paulista pode ser considerado pedalada?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Yogh - Especialistas em WordPress