Honestidade intelectual

Honestidade intelectual. Nenhum avanço é possível, parece-me, sem a presença dessa virtude. Com isso quero dizer que se trata de uma condição necessária, porém não suficiente para concretizar qualquer tipo de melhora almejada.

Não me refiro aqui a alguma espécie determinada de honestidade, um caso particular do conceito geral, que supostamente pertenceria a ou se manifestaria exclusivamente em “intelectuais” (o que quer que isso signifique e a quem quer que o termo diga respeito) ou num “ambiente intelectual” (idem) – e muito menos acadêmico. Faço menção a uma postura ou atitude nos seguintes contornos gerais: reconhecer o status de tudo o que se diz e se pode dizer; reconhecer de onde parte e aonde pode chegar cada “discurso” ou “ato de fala“.

Algo que me incomoda profundamente (com uma frequência provavelmente superior àquela que seria considerada psiquiatricamente aceitável) é a precariedade de nossa (minha, sua, de qualquer ser humano) experiência de mundo. Somos seres finitos, confinados à nossa respectiva existência individual, feitos de um aglomerado razoavelmente organizado de matéria (e algo mais, talvez?) e que estão – esses seres – “aí no mundo“, interagindo em sociedades mais ou menos semelhantes, complexas e dinâmicas (não é a minha intenção me alongar nesse ponto sobre o qual não possuo o menor domínio, apenas delinear um esboço minimamente aceitável para o que se segue).

Aceitar essa (tosca) caracterização do “ponto de partida” é a base sobre a qual pretendo tecer algumas (pobres) conjecturas sobre o “ponto de chegada” (ou, pelo menos, sobre a estrada) que me parecem ter algum valor:

1. Esse “aprisionamento em primeira pessoa” – a impossibilidade, em última análise, de “ver o mundo com os olhos de outra pessoa” – não implica a subjetividade absoluta. Não quer dizer que as experiências, opiniões, crenças e postulações individuais sejam “pessoais e intransferíveis” como um documento de identidade, dizendo respeito apenas a seu “titular” ou “proprietário” e não possuindo sentido senão para aquela pessoa que as “possui“. Não significa, tampouco, que essas experiências, opiniões, enfim, não possam ser transmitidas (explicadas e compreendidas) a terceiros, nem que seja impossível “pensar” (imaginar, representar, teorizar, elucubrar) senão nos limites de sua própria caixinha (não está epistemologicamente interditado o bom e velho “se eu fosse você, ele, ela, x, y…“). Isso se dá devido ao fato de compartilharmos um bocado de aspectos com todos os outros seres humanos (pelo menos com todos os existentes até o presente momento e levando em consideração o que se tem notícia de nossos antepassados – mas essa é uma ressalva que será melhor explicada no item 2). Para ficar em apenas dois exemplos: todo ser humano existe em (alguma forma de) sociedade e lança mão de (alguma forma de) linguagem – isso para não entrar na questão da semelhança de base genética da espécie e como/se/até que ponto ela influi em todo o resto. Em suma, nosso status existencial de base não redunda na universalização do “Essa é sua opinião, apenas e tão somente a sua opinião, nem melhor, nem pior que qualquer outra coisa que se diga; e ela não me concerne nem tem validade pra mim“. Mas, sim: há limites.

2. Aquele mesmo “aprisionamento“, ao mesmo tempo em que não exclui devaneios extra-personalíssimos, lhes impõe restrições: somos seres humanos, e sentimos o que isso significa. Isso nos capacita a imaginar como era ser humano em tempos passados ou em outros lugares e culturas, fazendo adaptações com base nas informações que nos chegaram de outros contextos temporais, geográficos e culturais. Não nos permite, em contrapartida, falar com a mesma segurança sobre o futuro, visto que isso depende da disposição de dados/informações que não existem, simplesmente porque o futuro ainda não aconteceu. Sendo assim, não podemos afirmar categoricamente que algo é, sempre foi e sempre será de uma determinada maneira: o espaço para a contraprova está sempre lá (ops, traído pelo “sempre“?). O falibilismo – a possibilidade de estar errado – é uma das decorrências dessa existência para nossos “discursos” ou “atos de fala“, e a história da humanidade é riquíssima em exemplos disso (basta dizer que um dia um grupo de pessoas acreditou – alguns ainda acreditam – que nosso planeta era plano e eram capazes de apresentar boas razões para tanto). Ou seja, se por um lado o relativismo ou “subjetivismo radical” não parece razoável, a busca por uma (só uma?) “verdade objetiva“, atemporal, necessária e pronunciada “desde lugar nenhum” parece ser ainda mais inócua.

Esse longo (e assumidamente falível) texto para dizer algo tão simples: é necessário descermos do pedestal e renunciarmos à pretensão de sermos portadores d’A Verdade Universal, ao mesmo tempo em que precisamos elevar nosso nível de consideração pelo que os outros falam, levando-os a sério. Todos nos beneficiamos com debates abertos e honestos, principalmente se não estivermos mais preocupados em “ganhá-los” – como se isso fosse possível.

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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