A insustentável dureza do regime previdenciário brasileiro

Em um fim de tarde em São Paulo de uma sexta-feira nublada, com a chuva ameaçando a cidade, o trânsito se avoluma rapidamente na Avenida Paulista. Ainda que comum na região, o congestionamento está pior por uma manifestação que paralisa parcialmente uma das vias de maior fluxo da metrópole. Bloqueando os carros estão algumas centenas de manifestantes, gritando palavras de ordem contra a controvertida reforma da previdência, em tramitação no Congresso Nacional. Boa parte dos presentes no ato é formada por jovens, na faixa dos 20 a 30 anos, denunciando o que classificam como “o fim da previdência pública no país”.

Se a manutenção do esquema de aposentadorias no país fosse a motivação, no entanto, deveriam estar justamente defendendo a reforma, que pode representar a diferença entre o governo ter ou não a capacidade de pagar aposentadorias. Conforme visto no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul — até hoje pagando salários e aposentadorias com atrasos — o dinheiro pode simplesmente acabar.

Em 2016, o déficit no agregado das contas de aposentadoria de servidores públicos de todas as esferas e funcionários da iniciativa privada atingiu incríveis R$ 360,7 bilhões, somando servidores dos estados e da União, e o INSS. Este número, que indica a diferença entre as receitas de contribuições à previdência e os gastos, teve de ser coberto com impostos de toda a população.

O regime é visivelmente insustentável. Nosso país gastou, ano passado, cerca de 9,5% de toda a produção aqui gerada somente com aposentadorias (sem contar estados e municípios), superior a países com proporção muito maior de idosos, como Japão, Itália ou Alemanha. Isto se traduziu em 57% do orçamento federal destinado à previdência, deixando menos espaço para gastos com investimentos, saúde, educação ou segurança.

Nas contas do banco francês BNP Paribas, com a reforma aprovada — considerando as últimas alterações feitas pelo relator do projeto, deputado Arthur Maia (PPS/BA) — a economia, nas contas do governo federal, deverá ser de cerca de 1.2 ponto percentual do PIB, em 2027. Poderia chegar a 2 p.p. caso fosse aprovado o texto conforme foi enviado aos deputados.

[caption id="attachment_9852" align="aligncenter" width="600"] Extraído de publicação Brazil: Testing the limits on social security reform, por BNP Paribas, com dados do Ministério da Fazenda e Paulo Tafner, e projeções do BNP.[/caption]

O número em 10 anos, na verdade, importa menos; o ponto crítico da mudança é que ela permite alguma estabilização do gasto com a previdência pública, no médio prazo, atenuando o forte viés de alta com esta conta. Isto é importante porque o Brasil irá passar por uma estrutural mudança demográfica, com rápido envelhecimento da população, motivado pela combinação da redução do número de filhos por mulher — que caiu de cerca de 4 em 1980 para 1,5 em 2010 — com a elevação da expectativa de vida — em 2013 de 81,9 aos 60 anos de idade, de acordo com as tábuas do IBGE. Isto leva, sozinho, a uma pressão de crescimento em cerca de 9% ao ano na faixa etária apta a se aposentar, que cai para 4% com a reforma.

Caso não seja alterada a trajetória, a previdência deverá consumir já 90% dos gastos do governo em menos de dez anos, ou, por outra ótica, exigirá cortes ao redor 12% em gastos não-obrigatórios a cada ano, para cumprir a regra de teto no crescimento dos gastos como proporção do PIB, supondo crescimento próximo de 2,5% do país todos os anos (suposição otimista, considerando os números recentes), em projeções do BNP.

Mesmo com a reforma, o corte teria que ser próximo de 5% cada ano, o que já será um grande desafio para a política fiscal nos próximos anos. No Brasil, cortes no orçamento são especialmente difíceis, considerando que próximo de 90% dos gastos com a máquina pública são engessados, não suscetíveis a mudanças na canetada. Mesmo itens considerados discricionários não são passíveis da tesoura, como parte do orçamento ligado a saúde e educação.

Outros efeitos de segunda ordem também fazem da reforma uma crítica para o futuro do país. O Brasil convive, há décadas, com juros reais muito elevados. Volta e meia o assunto volta a atiçar a opinião pública, que tende a culpar a banqueiros inescrupulosos.

Em diferentes estudos, no entanto, as razões por trás da alta Selic apontam para questões de ordem mais estrutural. Uma destas é a dívida do país, em especial sua dinâmica de crescimento. Como a trajetória é claramente explosiva sem mudança nas regras de aposentadoria, conforme exposto, uma mudança nestas políticas é chave para viabilizar uma queda duradoura nos juros, abrindo espaço para uma Selic estruturalmente menor.

Os membros do Comitê de Política Monetária, inclusive, vem ressaltando, em seus últimos comunicados, a importância das reformas de cunho fiscal no país, sobretudo a da previdência. As decisões de cortes, inclusive, vem sendo motivadas, em parte, pelo andamento dessas mudanças, iniciadas no novo regime fiscal (ou a regra do teto de gastos).

Para a redução ser sustentável, no entanto, é preciso que os juros de equilíbrio sejam mais baixos — do contrário, muito possivelmente a esperada queda para um dígito na Selic será passageira, dado a expansão fiscal esperada.

Além disso, os juros pagos pelo Tesouro Nacional para rolar ou tomar dívida tinham tido uma queda sensível desde o anúncio das mudanças. Isto é motivado por uma percepção de risco de insolvência ou moratória, muito mais alta no caso de continuarmos a trilhar o caminho atual de explosão nos gastos com aposentadoria. Uma menor conta de juros tem efeitos benéficos tanto no orçamento federal (que, desde março de 2016, teve queda de 3 pontos do PIB nos gastos com juros) quanto nos juros de equilíbrio do país, que caem com perspectivas de pressões menos intensas nos gastos.

Ainda que a opção de aumentar impostos esteja sempre sobre a mesa, já estamos num patamar muito elevado para países de estrutura socioeconômica similar — a carga tributária aqui já é 6 pontos percentuais mais elevada que a média da América Latina, por exemplo. Mais impostos poderiam também dificultar a atividade econômica no país, asfixiando a iniciativa privada — e, por sua vez, diminuindo a arrecadação potencial pelo governo, e o emprego, que engordam as contas de seguridade social.

A reforma talvez não seja a dos sonhos — deixa de fora militares e concedeu, na tramitação, regras mais favoráveis a professores, mulheres e policiais civis — corrige importantes distorções. Segundo o deputado Arthur Maia, atualmente há mais de 90 regimes especiais de previdência pública no país, custeados com recursos da seguridade social.

As regras atuais são especialmente generosas com servidores públicos, muitos dos quais tem paridade com o último salário, chegando a embolsar cifras ao redor de R$ 30 mil ao mês, como juízes e políticos — incluídos na reforma enviada pelo governo, que sujeita todos os aposentados ao teto do INSS, hoje ao redor de R$ 5,5 mil. A continuidade desses privilégios acentua a tendência explosiva nos gastos.

Os jovens na Paulista, talvez, sejam apenas desinformados nesses pontos. Há um ditado que diz que ignorância é uma bênção — mas, neste momento, ignorar a absoluta insustentabilidade da previdência social significa decretar, em alguns anos, o país a um completo colapso em suas contas públicas, potencialmente interrompendo o pagamento a aposentados, gerando dívida, inflação, e juros mais altos. Significa que as aposentadorias, em especial desses jovens, correm sério risco, e uma reforma será feita, de uma forma ou de outra.

Luiz Eduardo Peixoto Graduando em economia pela FEA-USP

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