Não há inocentes em pedaladas

O pedido de impedimento de Dilma Rousseff acusa a presidente de ter cometido vários crimes, dois dos quais justificariam a cassação do seu mandato: aumentos no orçamento sem autorização do Congresso, e empréstimos fraudados junto a bancos públicos, estes últimos apelidados de “pedaladas”, explicadas de forma didática por minha colega Rachel Sá[1]. Ambas práticas são expressamente proibidas por lei. O governo defende-se dizendo que os tais “decretos de abertura de crédito suplementar” não comprometeram o atingimento de metas fiscais, e logo não contrariaram a lei. As pedaladas, por sua vez, não configurariam empréstimos. O relator do impeachment, deputado Jovair Arantes, rebateu essas duas teses, orientando o Congresso a votar pelo impedimento. Cabe agora aos congressistas, segundo manda a lei, julgar.

É de admirar que, depois de Mensalão, Petrolão, venda de MPs, Aloprados, Rosemary, Erenice, Delcídio e companhia, sejam duas faltas na administração orçamentária e financeira a pôr em risco o governo do PT. Não são menos legítimas, nem menos nocivas à democracia e à saúde do Estado, mas certamente menos acessíveis ao cidadão comum. O caso das pedaladas é particularmente acintoso, principalmente porque a argumentação petista insiste em jogar fumaça nos olhos dos incautos, levando-os a crer que 1) não houve empréstimo dos bancos públicos ao governo, 2) os governos anteriores faziam a mesma coisa, e 3) fez-se tudo isso em nome das conquistas sociais desses governos maravilhosos que se sucedem desde 2003. Esse último argumento mal merece consideração: se era tão imprescindível realizar os gastos feitos com dinheiro das pedaladas, o governo deveria ter retirado de outras áreas do orçamento, e não do caixa dos bancos públicos.

E quanto à ilegalidade? A lógica governista do momento é a mesma lógica que protegia os mensaleiros: somente na presença de uma prova indiscutível seria possível caracterizar uma conduta criminosa. Para o PT, o crime tem que ser sempre organizado contabilizado e documentado, senão não é crime… É verdade, seria tão mais fácil se as pedaladas fiscais fossem um contrato de empréstimo explícito, com assinatura do presidente da Caixa e da presidenta da República! Mas se os fatos são muito mais sutis, nem por isso são menos claros.

Ponham-se por um momento nos sapatos de Dilma Rousseff em seu primeiro mandato, com um governo quebrado, com sua incompetência proverbial, protestos inéditos nas ruas e uma reeleição ameaçada. Brilhante ideia emerge das trevas: usar dinheiro dos bancos públicos para pagar as obrigações do governo, liberando o orçamento para outros gastos e não aumentando a dívida pública. É impossível pegar dinheiro emprestado desses bancos, já que tal prática é expressamente vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, justamente para evitar que governos irresponsáveis dilapidem instituições públicas. Porém, é possível “forçar” tal situação, deixando que os bancos públicos paguem as contas do governo sem realizar as transferências necessárias para saldar essas operações. Em outras palavras, é possível deixar uns bilhões pendurados por meses a fio, alegando-se sempre que não se trata de um empréstimo!

É evidente que governo nenhum, por mais inepto e contraventor que seja, cometeria a estupidez de assinar um contrato de operação de crédito com um banco público. Mas alegar que um contrato explícito é a única circunstância capaz de caracterizar a conduta vedada pela lei é um atentado à inteligência.

No caso das pedaladas, o governo ainda pôde contar com uma ambiguidade que certamente joga a seu favor: as contas utilizadas pelos bancos públicos para realizar pagamentos em nome do Tesouro apresentaram saldos negativos em diversas circunstâncias no passado, como durante os governos Lula e Fernando Henrique Cardoso. Isso é verdadeiro, e como corretamente afirmado pela defesa da presidente, a existência de saldos negativos nessas contas é corriqueira e legal, pois o governo realiza transferências baseadas numa previsão de despesas, e frequentemente essa transferência é insuficiente. Porém, o fato de a existência de saldos negativos ser tolerada não autoriza que o governo transfira aos bancos públicos a responsabilidade de quitar suas despesas de forma sistemática, como de fato fez, segundo atestam diversas análises[2] e o julgamento do TCU. De forma cada vez mais intensa e frequente, o governo transferia muito menos do que os valores dos pagamentos feitos pelas instituições públicas em seu nome, deixando-as arcar com a salgada fatura.

Outro argumento, mui garboso, apresentado pelo defenestrado Ministro da Justiça e atual Advogado Geral da União, é o de que o TCU mudou de ideia sobre as pedaladas: julgava-as regulares até 2013, e em 2014 considerou-as um crime. Para o governo, a prova disso é que o TCU aprovou as contas do governo anteriores a 2014, mesmo havendo pedaladas. Ao aprovar as contas de 2013, em que as pedaladas ocorriam a todo vapor, o TCU teria aprovado por via tácita a própria prática das pedaladas fiscais! Um argumento temerário. Terá o TCU o condão de legitimar a prática de pedaladas fiscais pela via tácita? Poderia o TCU desfazer um dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal? Infelizmente para o governo, em que pese o Tribunal de Contas da União ter seu papel e importância na nossa democracia, não creio que esteja arrolado entre seus poderes a capacidade de descriminalizar tacitamente uma conduta vedada por lei, sem sequer mencioná-la!

No entanto, em defesa do TCU, é preciso ainda lembrar que as tais pedaladas não eram registradas nos relatórios do governo como dívida do governo junto a seus bancos. E nem poderiam sê-lo, já que admitir dívida com uma entidade controlada seria confissão de crime. Sim, o TCU aprovou as contas de Dilma, mas tratavam-se de contas que escondiam o desvio de recursos de empresas públicas para o pagamento das contas do governo.

As pedaladas foram operações feitas na surdina, nos bastidores da contabilidade do governo. Mas são muito mais do que simplesmente uma irregularidade contábil, tratando-se de uso de recursos públicos sem autorização. Como é possível, ó céus, afirmar de boa-fé que as pedaladas não atentam contra a Lei de Responsabilidade Fiscal ou que não fraudam a administração financeira? Como imaginar que a prática de “pendurar” R$ 50 bilhões por meses a fio não representa o uso direto de recursos dos bancos públicos, expediente que a Lei corretamente proíbe? Como acreditar que o uso indevido dos recursos da Caixa, do Banco do Brasil, do BNDES e do FGTS (!!!!!!!!) possa ter passado despercebido pela presidente da República, beneficiária direta dessa prática, que lhe rendeu dividendos eleitorais e alimentou suas mentiras de campanha?

Quem defende as pedaladas de Dilma tem todo um leque de chicanas a seu favor: diga que não havia um contrato explícito de operação de crédito, diga que saldos negativos existiram previamente, diga que era primordial o governo realizar aquelas despesas mesmo não tendo o dinheiro para tal! Mas não diga que é legalista. Não se apresente como defensor do bom uso do dinheiro público, das políticas sociais e da democracia. Já que somos um país livre, cada um pode defender a abobrinha que quiser. Mas a essa altura do campeonato, não dá para defender as pedaladas mantendo a inocência.

alipio       [1] https://terracoeconomico.com.br/pedaladas-fiscais-destrinchando-contabilidade-criativa [2] Ver, entre outros: http://www.valor.com.br/pedaladas, http://economia.estadao.com.br/blogs/joao-villaverde/o-governo-dilma-cometeu-um-erro-em-sua-defesa-das-pedaladas/, https://mansueto.wordpress.com/2015/04/18/pedaladas-fiscais-desde-sempre-nao/  

Alípio Ferreira

Formou-se em economia pela EESP-FGV, onde desenvolveu sua paixão por números primos e poesia alemã. Foi editor-chefe da revista Gazeta Vargas, associação cultural formada por alunos das escolas de Administração, Economia e Direito da FGV-SP. Escreveu um artigo sobre plebiscitos suíços no Valor Econômico e foi funcionário público. Almeja glória e poder para todo o sempre. Hoje é mestrando em economia na Universidade de Tilburg, nos Países Baixos. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2014 e 2017.

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