O plano que salvou o Brasil (parte 1)

Por Victor Candido

A inflação voltou a ser o palavrão do momento nos noticiários econômicos, é um dos argumentos mais usados por Aécio Neves, enquanto Dilma Rousseff evoca os anos 90 como anos de terror econômico e alto desemprego. Fatos fora de contexto são perigosos, a história não é linear e é irresponsável fazer tal análise fora de um quadro geral. Por isso eu convido você leitor a me acompanhar nessa série em duas partes do plano real: do panorama dos anos 90 e a saga de um país contra um godzilla econômico chamado inflação.

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O Brasil ingressa nos anos 80 já cambaleante economicamente, mesmo com um crescimento de 8% no primeiro ano da década a situação piora rapidamente, com o segundo choque do petróleo e alta dos juros americanos a situação externa se agrava, a dívida explode e a balança de pagamentos soluça. Dentro de casa a inflação dispara passando pela primeira vez na história os 3 dígitos. Passamos a primeira metade da década de 80 arrumando a bagunça externa, fomos ao FMI, mas a crise foi inevitável. O produto recuou na casa dos 5% reais por 3 anos seguidos. Com o setor externo manejado, o problema da metade remanescente da década era a inflação, mesmo com a retraída do crescimento ela persistia e continuava a se acelerar, o que levou a um diagnóstico de uma inflação inercial por causa da forte indexação dos contratos na economia (salários, aluguéis e títulos públicos). Interessante notar que a indexação sofre um efeito que se retroalimenta, quanto mais a inflação cresce mais a economia se indexa.

[caption id="attachment_1924" align="aligncenter" width="660"]Explosão inflacionária na década de 1980. Fonte: IPCA-IPEADATA Explosão inflacionária na década de 1980. Fonte: IPCA-IPEADATA[/caption]

Em 1986 tentou-se o primeiro plano para conter o godzilla inflacionário, optou-se pelo congelamento temporário de preços, afinal de contas se a inflação era inercial e pouco tinha relação com o nível de atividade econômica então congelar os preços conteria seu avanço, ao mesmo se tentaria um esforço de desindexar a economia. Este plano ficou conhecido como plano cruzado. Não funcionou, foi um fracasso retumbante e quando o congelamento acabou os preços foram reajustados para patamares ainda maiores, uma vez que a expectativa de um novo congelamento começou a rondar os agentes econômicos, então por segurança reajustes ainda maiores foram feitos.

Com o fim de década de 80, tem-se início o primeiro governo eleito de forma direta. Fernando Collor de Mello assume o governo executivo e toma medidas liberalizantes como a abertura da economia e o início das privatizações, medidas plausíveis. Entretanto, em relação à inflação, a mais maluca das ideias foi utilizada: um sequestro dos ativos financeiros de todos os cidadãos. Analogamente à uma bomba atômica, a ideia chave por trás de tamanha violência econômica era a seguinte: “se limitarmos o quanto o agente econômico tem disponível para gastar e desindexarmos a economia, quebra-se a inércia”, resumindo é só deixar todo mundo pobre por tabela logo ninguém vai consumir. Fracassou, pois diversas exceções foram abertas e logo o dinheiro fluiu novamente, manchou a credibilidade do governo e ainda matou muita gente do coração, literalmente.

Collor sofre o impeachment e seu vice assume. Itamar Franco traz para o ministério da fazenda o ministro das relações exteriores Fernando Henrique Cardoso. O agora ex-chanceler tinha apenas uma missão: apenas uma acabar com a inflação. A esta altura do campeonato tudo já tinha sido tentado. Atiramos com todas as armas contra o godzilla, inclusive com o armamento nuclear, ele ficou mais forte, e nós mais fracos, quase derrotados. Ainda restava tinha uma arma complexa, nunca testada, chamada LARIDA, batizada em homenagem a seus criadores André Lara Resende e Pérsio Arida. O LARIDA, ou teoria da moeda indexada, era uma engenhosa forma de acabar com a inércia inflacionária criando uma moeda indexada que tivesse seu valor corrigido diariamente em relação à moeda circulante na economia, chegou a ser proposta no plano cruzado, mas foi engavetada por ter grande complexidade.

[caption id="attachment_1926" align="aligncenter" width="500"]etapas Manchete o Estado de São Paulo. Fonte: Acervo Estadão[/caption]

Logo a primeira parte do plano estava completa, derrotaríamos a inércia usando as teses prescritas no LARIDA.

Mas existia ainda um outro problema de caráter estrutural que pressionava fortemente a inflação, o desajuste nos gastos do governo. Até o fim do período militar existiam nada menos do que 3 orçamentos do governo central, o da união, monetário e das estatais. O único aprovado pelo congresso era o primeiro, via de regra superavitário. O segundo era a descoberto – tudo que não fosse colocado no primeiro era jogado no segundo, crédito subsidiado, empréstimos malucos, despesas extraordinárias – tudo era despejado no orçamento monetário. Inclusive existia um cordão umbilical entre o Banco do Brasil e o Banco Central, a conta-movimento, sempre que o Banco Brasil estourava o caixa, o déficit entrava nessa conta, paga pelo Banco Central. E por último, o orçamento das empresas estatais, sempre um terror, sendo que não eram empresas em busca de lucro e sim meros instrumentos de política econômica.

Dado o diagnóstico do parágrafo anterior, é claro ver a loucura geral, completa e irrestrita que era o orçamento federal. Vazava dinheiro por todos os lados, a dívida crescia robustamente ano após ano, e a inflação crescia a base de esteroides. A unificação orçamentária veio no final dos anos 80.

O plano então teria de quebrar a inércia e sanear os gastos do governo. Diferentemente dos outros planos que focavam apenas na primeira parte, o plano real teria esse duplo enfoque, reformaria o sistema monetário e colocaria a política fiscal de volta a patamares civilizados. O primeiro passo foi a criação da URV, a unidade real de valor, uma unidade de conta, indexada ao dólar e seu valor relativo ao cruzeiro mudava diariamente usando a média de 3 índices de inflação (IPCA, IGP-M e IPC), a URV nada mais era que o LARIDA em ação. Quando todos os preços estivessem cotados em URV’s, negociados em relação ao cruzeiro, o governo baixaria uma medida provisória transformando a URV em uma nova moeda, sendo esta a que circularia na economia, o REAL. Uma vez que a reforma monetária estivesse feita era preciso segurar os excessos de demanda criados pela baixa da inflação, então usou-se uma poderosa ferramenta  : A paridade real-dólar. Que privilegiava produtos importados e contribuiria para manter o preço dos similares nacionais em níveis baixos e aumentaria a demanda de bens. Tudo para evitar uma nova aceleração inflacionária.

Se você quer ver se um plano econômico funciona, basta ir à feiras livres, supermercados e farmácias e analisar como a cidadão mediano reage a ele. Rapidamente todos já estavam usando a URV como unidade de conta e, quando o real se tornou meio circulante, tudo continuou bastante estável e a inflação em 1995(primeiro ano do plano) foi de apenas 14,8%, comparada a 1093,8% de 94. A inflação continuou a cair até chegar a incríveis 1,7%, provando a eficiência do plano e que, de fato, conseguimos colocar a casa em ordem.

[caption id="attachment_1925" align="aligncenter" width="660" class=" "]A inflação sobre controle a partir de 1995, o começo da era da estabilidade. Fonte: IPCA-IPEADATA A inflação sobre controle a partir de 1995, o começo da era da estabilidade. Fonte: IPCA-IPEADATA[/caption]

Porém, os últimos 2 anos da década 90 foram de histeria nos mercados internacionais e não passamos ilesos à turbulência. A crise dos tigres asiáticos seguida da quebra da Rússia colocaram em cheque as conquistas dos 4 primeiros anos do plano real. Porém sobrevivemos, com novas e importantes reformas estruturais. Mas isso fica para a nossa segunda parte, que se encontra aqui!

Victor Candido

Mestre em economia pela Universidade de Brasília (UnB). Economista pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Foi economista-chefe de uma das maiores corretoras de valores do país, economista do Banco Interamericano de Desenvolvimento e atualmente é sócio e economista de uma gestora de fundos de investimento. Foi pesquisador do CPDOC (O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da FGV-RJ. Ajudou a fundar o Terraço Econômico em 2014.

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