O trem passou e você nem viu, a loucura do trem bala tupiniquim

Por Victor Candido

[caption id="attachment_2677" align="aligncenter" width="660"]O bonitinho mas ordinário trem bala. O bonitinho mas ordinário trem bala.[/caption]

Passado o susto do apagão aéreo em 2006, novas alternativas começaram a ser pensadas sobre como transportar pessoas pelo país com mais eficiência. Nesse conjunto de ideias surgiu o TAV – Trem de Alta Velocidade – no melhor estilo europeu, o Brasil ganharia seu primeiro trem bala, ligando as duas maiores regiões metropolitanas do país, a um custo de R$ 36 bilhões de reais[1], a obra mais cara prevista no PAC. Mas será que fazia sentido tal obra? Era de fato uma prioridade para o crescimento do país? É justificável do ponto de vista econômico ou era um devaneio político? Após ler um estudo crítico feito pelo economista Marcos Mendes, consultor legislativo do Senado Federal, o qual alimentou boa parte dos dados aqui presentes, decidi investigar melhor a literatura especializada e resumir os principais pontos apresentados nos dois longos estudos de Mendes.

De forma bastante ingênua o trem bala até que faz sentido, afinal, as duas maiores zonas metropolitanas do país estão em seu trajeto, que prevê a ligação de Campinas ao Rio de Janeiro, passando por São Paulo e São José dos Campos. Existe um fluxo considerável de pessoas se deslocando nesses corredores. Basta ir à rodoviária do Tietê ou no saguão do aeroporto de Congonhas para notarmos o movimento entre as cidades. Mas quando pegamos papel e lápis a coisa muda completamente. É um projeto enorme. Envolve obras e uma tecnologia que o Brasil não domina. A própria prioridade do projeto pode ser colocada em cheque quando voltamos a analisar o que existe hoje ligando as duas cidades. Os dois principais aeroportos da ponte aérea ficam em áreas centrais, o que torna os seus voos rápidos ainda mais atrativos, sem contar com os aeroportos de Viracopos, Guarulhos e Galeão. Para aqueles que preferem gastar menos, existe um serviço com ótimo custo benefício, que são os ônibus com pontualidade e conforto. Logo, o TAV teria de ter uma passagem a um preço competitivo, o que provavelmente não aconteceria com os enormes custos operacionais e de capital que o mesmo teria de pagar ao longo dos anos.

Analisando diversos projetos desse tipo ao redor do mundo, chega-se à conclusão que os custos de construção ficam entre US$35 milhões/km e US$ 70 milhões/km[2]. Segundo o estudo de viabilidade, o TAV ficaria em torno de US$ 33 milhões/km. Porém o projeto tupiniquim tem tudo que faz a construção de um trem bala ficar ainda mais custosa. Tais projetos, devido à sua enorme complexidade técnica, tem um custo efetivo no caso de projetos ferroviários 45% superior do que o originalmente planejado, fora que 39% do trajeto previsto no Brasil passa por pontes, tuneis e viadutos. Tudo que só faz o custo crescer ainda mais.

[caption id="attachment_2676" align="aligncenter" width="660"]Tabela retirada do estudo de Mendes[2] Tabela retirada do estudo de Mendes[2][/caption]

Segundo a literatura especializada, um sistema de trens de alta velocidade deve ter no mínimo 20 milhões de usuários por ano, apenas para cobrir despesas operacionais. Já para fechar a conta do investimento o número dever ser o dobro, enquanto a demanda atual no corredor SP-RJ é em média 6,4 milhões. Segundo o estudo de viabilidade, foi estimada uma demanda de 35 milhões de passageiros/ano. Opa, já temos uma divergência séria por aqui. Nessa conta, assume-se que o TAV teria 53% do mercado, reduzindo a ponte aérea que tem 68% do mercado para 32%, carros de 16% para 7% e ônibus de 15% para 7%. Esse número de 53%[2] claramente jogou para escanteio a questão de que passageiros de ônibus são sensíveis aos preços, as companhias aéreas provavelmente baixariam os preços, o avião faria em 40 minutos o que o trem faria em duas horas e usuários de carros privilegiam a mobilidade dentro da cidade, e ambas as estações tanto no Rio quanto em SP não possuem conexões com as linhas já existentes de metrô/trem.

O governo divulgou amplamente que o projeto seria financiado e executado pela iniciativa privada; logo, não haveria risco fiscal, ou seja, o governo não estaria se comprometendo na casa dos 35 bilhões e arcaria apenas com uma fração do valor. É claro que essa obra poderia e custaria bem mais caro que o planejado e que a demanda do projeto está superestimada. Não serão discutidas aqui as minúcias de como o financiamento foi pensado, mas boa parte dos recursos advém de bancos públicos, BNDES principalmente. O ponto é que a experiência internacional mostra que sistemas TAV operados pela iniciativa privada parecem não ter muito sucesso. No Japão, por exemplo, a empresa estatal que administrava o sistema faliu; Taiwan vem tendo problemas com seus operadores desde a implantação e a Itália acabou por estatizar todo o sistema de trens após severas dificuldades financeiras das empresas. Importante lembrarmos, também, do Eurotúnel, uma tragédia econômica que até hoje precisa de pesados subsídios para manter sua operação, uma vez que o projeto custou muito mais que o planejado e as companhias aéreas se uniram para detonar a possiblidade do trem superar os aviões no trajeto.

O risco é imenso para o governo e para a iniciativa privada, visto que diversas vezes os leilões foram cancelados, pois não existiam interessados na obra. Se para pagar o investimento a demanda tem de ser de 40 milhões passageiros/ano e temos apenas 6,4 milhões, é bem provável que o TAV vire um TAVBRÁS após alguns anos de funcionamento. Como já foi dito acima, a obra envolve diversos fatores de engenharia que encarecem – e muito – o projeto. Outro poderoso agravante é que o TAV passa pelas regiões mais densamente povoadas do país, o que geraria um custo elevadíssimo de desapropriações e embates públicos que poderiam se arrastar por anos na justiça. Estudos mostram que 1 ano de atraso em obras desse tipo aumentam em 4,64% o custo total, se o custo fosse de 35 bilhões, cada ano de atraso custaria 1,6 bilhão, é comum obras desta magnitude atrasarem. Além do fato de que, a cada bilhão que aumenta, o risco do projeto naturalmente cresce como um todo. E quem é o garantidor de última instância, quem injetaria dinheiro em uma emergência, é o governo. Em resumo: O TAV seria too big to fail.

Obras grandiosas como esta, que fazem pouco sentido econômico, mas que carregam enorme capital político. Já aconteceram na história do Brasil e algumas chegaram a sair do papel. Como opera o governo nessas situações? O cientista político Sérgio Praça diz o seguinte:

“A dimensão político-eleitoral de qualquer política pública será sempre relevante; isso é praticamente incontestável (exceto em tempos de graves crises), um bom exemplo recente é o da Grécia – um governo populista de esquerda acabou de assumir e está tomando posições arriscadas fiscalmente (mas desejadas pelos eleitores), então o tom geral da política é ineficiência e desinformação técnica. Surpreendentemente, o trem bala deu errado, não houve lobbies poderosos o suficiente, talvez porque o projeto fosse arriscado demais para a iniciativa privada, mesmo com as diversas garantias do erário.”

Felizmente o projeto foi descontinuado e está engavetado (ufa!,) mas mostra uma certa irracionalidade ou total despreparo do governo em eleger o que é importante. A tabela abaixo mostra o quanto o TAV é mais caro que obras indiscutivelmente mais importantes.

[caption id="attachment_2675" align="aligncenter" width="660"]Tabela retirada do estudo de Mendes[2] Tabela retirada do estudo de Mendes[2][/caption]

Com o dinheiro do trem bala dá pra construir quase duas Belo Monte, 5 ferrovias norte-sul e dezenas de transposições do rio São Francisco. Portanto, existe um misto de ingenuidade, loucura política e desinformação técnica que acomete o governo federal quando se trata de decisões de investimentos prioritários, custosos e com enorme risco fiscal de longo prazo. Contas de padaria não podem ser feitas – já basta a refinaria de Pasadena – ou simplificações de que um trem bala seria legal, quando se trata de investimento em um país com uma defasagem bizarra em sua infraestrutura que impede o crescimento econômico sustentável.

Existem obras muito mais importantes e com custo muito mais baixo e com relações risco versus retorno bem mais conservadoras. Marcos Mendes cita em seu estudo que obras como saneamento básico seriam uma excelente alocação de investimento público, uma vez que pouco mais de 50% das residências brasileiras possuem água e esgoto canalizado. Investir nisso gera empregos pois são obras com mão de obra intensiva e colaboram para o desenvolvimento econômico e no longo prazo reduzem gastos de saúde. O TAV não beneficiaria em nada as camadas mais pobres da sociedade, pois prestaria um serviço apenas às camadas médias e alta da sociedade, além de retirar recursos de investimentos mais importantes, como já discutido. Um projeto insano em um país louco por infraestrutura útil que gere crescimento econômico e não em algo quase que decorativo, um apetrecho estético para engrandecer o ego de políticos. Felizmente, optou-se pela razão. Por enquanto.

Notas:

Os dois estudos mais completos sobre o projeto do TAV, como já dito são do economista Dr. Marcos Mendes, que é consultor legislativo do Senado Federal. Para os interessados lá estão todos os dados aqui citados e ainda existem estudos detalhados sobre os possíveis riscos fiscais que o erário poderia incorrer caso o projeto de fato fosse materializado.

[1]: http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-77-trem-de-alta-velocidade-caso-tipico-de-problema-de-gestao-de-investimentos/view

[2]: http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-82-trem-de-alta-velocidade-novas-informacoes-para-debater-o-projeto/view

Victor Candido

Mestre em economia pela Universidade de Brasília (UnB). Economista pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Foi economista-chefe de uma das maiores corretoras de valores do país, economista do Banco Interamericano de Desenvolvimento e atualmente é sócio e economista de uma gestora de fundos de investimento. Foi pesquisador do CPDOC (O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da FGV-RJ. Ajudou a fundar o Terraço Econômico em 2014.

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