Questões centrais – e não debatidas – sobre a reforma da Previdência

Em tempos de PEC 287 – da reforma da previdência –  a estridência dos discursos antagônicos vem ocupando parte relevante do debate, obstaculizando em grande medida o entendimento sobre a previdência e seus desdobramentos. No intuito de lançar alguma luz a este tão importante assunto, devemos entender, além dos números e da dinâmica das regras e diretrizes que regem a cartilha das aposentadorias administradas pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), algumas questões subjetivas que determinam a aposentação.

Devido ao ciclo orgânico humano, nosso tempo de vida é dividido, a grosso modo, em três fases: infantilidade, adultice e vetustez. A despeito das evoluções culturais e sociais que mudam a dinâmica e o próprio tempo de cada uma dessas fases, em síntese, precisamos arranjar meios pecuniários de sustento em cada uma destas fases.

A hipótese do ciclo de vida, de acordo com Dornbusch e Fischer (1993), focaliza indivíduos, planejando seu comportamento de consumo e poupança no decorrer de longos períodos com a intenção de alocar seu consumo da melhor maneira possível por toda a sua vida. Dessa forma a poupança é apenas a forma de viabilizar o consumo futuro. Portanto, como geralmente concentramos o labor em nossa idade adulta, já que na velhice nossa constituição física e mental é gradativamente debilitada, devemos durante a primeira juntar recursos para subsistir na segunda.

A hipótese da renda permanente de Milton Friedman (1957) nega o conceito de John Maynard Keynes (1936) de relacionar o consumo diretamente ao valor da renda corrente e trabalha com a ideia de que o consumo é definido a partir do que se espera no longo prazo.

Para ilustrar, imaginemos um cidadão que tenha um trabalho fixo e que aufira R$1.000,00 por mês. Considere que, além desta atividade regular, ele execute serviços esporádicos e obtenha, além da remuneração mensal, uma média de R$250,00 por mês por estes serviços. Assim, sua renda total mensal média é R$1.250,00. Contudo, sabemos que ele pode prestar em uma mês serviços no valor R$750,00 e no outro mês, não prestar nenhum, pelo caráter oscilante de sua atividade laboral secundária. Desta forma, ele pode auferir R$1.750,00 em um mês e apenas R$1.000,00 no outro. Friedman advoga que esse indivíduo calcula seu consumo – despesas, investimentos, gastos gerais – com base nos R$1.250,00, que é sua renda esperado de longo prazo.

Keynes, por usa vez, afirmava que o indivíduo gastaria conforme a renda, atitude quantificável e denominada propensão marginal a consumir, baseada na sua renda corrente. Independentemente da teoria adotada, na prática, nossa renda laboral corrente oscila durante nosso tempo de vida chegando muito próximo de zero na vetustez. Assim, nesta época, nosso consumo deve ser financiado de alguma forma.

A primeira grande questão sobre a aposentação diz respeito ao seu modelo de financiamento. De modo geral, temos duas opções. Podemos ter um modelo de capitalização individual, no qual as pessoas poupam e usufruem dessa frugalidade na época que precisarem; ou o modelo adotado hoje, um sistema de compartilhamento onde há a transferência de parte dos proventos dos ativos – o desconto do INSS em folha, a contribuição compulsória das empresas ou a contribuição voluntária dos autônomos ou microempreendedores ao instituto – que, em última análise, formam o montante que financia a renda dos inativos. No primeiro caso, obrigamos o cidadão a buscar informações, entesourar seus recursos e aplicar no longo prazo, com todos os riscos – e benesses – econômicos aí decorrentes; no segundo, compartilhamos os ônus e imprimimos um caráter socializado, mas aqui, com perigosos riscos políticos. Um modelo híbrido,  em que é garantido um mínimo para que todos façam parte, seria um caminho do meio e talvez o mais adequado.

A segunda grande questão é sobre se deveria haver classes diferenciadas pela natureza mais ou menos insalubre do trabalho desempenhado. A legislação hoje traz inúmeras diferenciações, notadamente para os servidores públicos, e a reforma da previdência, quando proposta pelo governo, previa um regime geral e único. Os militares eram a única classe não enquadrada, pois não pertencem a nenhum regime previdenciário, mas sim a um sistema de proteção social custeado pelo Tesouro Nacional. Deste sistema saíram os recursos para o pagamento de militares ativos e inativos que, em 2016, somaram R$ 20,23 bilhões e R$ 18,59 bilhões, respectivamente.  Independente disso, a reforma proposta pelo governo já passou por um processo de desidratação no Congresso Nacional.  O presidente acabou anunciando a exclusão dos servidores municipais e estaduais. De acordo com ele, essa atitude é um respeito ao pacto federativo, na medida que os estados e municípios tem autonomia sobre suas finanças e deveriam versar sobre elas. Na realidade, houve pressão política exercida pelos deputados federais, já que esses recebem constrição direta de grupos organizados nos seus estados. Após a avaliação dos efeitos danosos dessa atitude, o planalto anunciou que dará 6 meses para os estados e as assembleias legislativas definirem suas próprias reformas, sob pena de, após esse lapso temporal, integrarem nas novas regras adotadas pela União.

 Na verdade, a maior parte do debate concentra-se nesta arena, já que como estamos mudando as regras do jogo e não começando do zero, as escolhas terão perdedores. Diferentemente do que se advoga, serão os integrantes da alta camada estatal os maiores atingidos. De modo geral, os diferentes setores e classes laborais concentram-se em avaliar e repudiar as propostas, arregimentar congressistas, protestar em redes sociais, pressionar seus políticos em Brasília, a fim de não estarem dentro das mudanças.

 A terceira questão é a avaliação da pirâmide etária brasileira e como será o país em termos demográficos daqui a cinquenta anos. A forma gráfica piramidal da nossa população aos poucos está sendo substituída pela figura do trapézio, onde teremos uma grande parte da população sexagenária e uma camada menor de jovens e adultos:

 Não é preciso explicar muito para entender que, sendo a nosso regime compartilhado, com poucos jovens pagantes, teremos que direcionar cada vez mais recursos para os aposentados, sobrando muito pouco para as outras áreas públicas. Em  2016, o Brasil gastou R$ 818,6 bilhões com aposentadorias e pensões, ou 13% do PIB. Isso é semelhante ao que o Japão dispende. Aqui vale lembrar que a esperança de vida dos brasileiros chegou a 75,5 anos, em média, de acordo com informações das Tábuas Completas de Mortalidade de 2015. São 71,9 anos para a população masculina e 79,1 para a população feminina.

Entretanto, essa análise deve ser pormenorizada e refinada. A rigor, a esperança de vida não deveria ser a variável quantitativa chave nessa análise, mas sim uma derivação sua, a denominada sobrevida média da população. E os dados, quanto avaliados por essa ótica, tendem a intensificar o problema. De acordo com o IBGE, o Estado com a maior expectativa de vida ao nascer é Santa Catarina (78,7 anos), que também apresentou a maior esperança de vida para os homens (75,4) e para as mulheres (82,1). Agora, a expectativa de sobrevida – quanto as pessoas viverão depois dos 60 anos – é, em Santa Catarina, 20,8 anos. Em síntese, adicionamos quase três anos em média à balança da previdência, já que seus cidadãos que atingem 60 anos viverão, em média, até quase 81 anos. Os outros estados apresentam números semelhantes.  Alexandre Schwartsman, Fábio Giambiagi e outros importantes economistas vêm escrevendo sobre essa questão.

Independentemente de como respondermos às questões acima, o debate sobre aposentação diz muito sobre o inconsciente coletivo de uma sociedade. Enquanto o debate restringir-se ao litígio de estar ou não dentro das mudanças e for balizado pela ampla gama de desinformação sobre os temas, ou ainda, por uma suposta rigidez das regras acordadas há trinta anos quando a sociedade era virtualmente diferente, não chegaremos a uma conclusão positiva para o Brasil, e mais uma vez, perderemos uma grande oportunidade.

Fausto Cheida Curadi – Economista pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Especialista em Finanças e Controladoria pelo Instituto Nacional de Pós-Graduação (INPG) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional de Blumenau (PPGDR-FURB).

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