Sobre a Chapecoense e outras tragédias: o que é o price gouging, e por que ele não deve ser coibido

Na quarta-feira de nove de maio, disputou-se na cidade colombiana de Medellin uma das partidas de futebol mais aguardadas do ano. Mais de cinco meses após a tragédia aérea que vitimou 76 pessoas, dentre as quais figurava a delegação do clube de futebol mais querido do Brasil, a Chapecoense e Atlético Nacional finalmente se encontraram no Estádio Atanásio Girardot, em jogo válido pela Recopa Sul Americana. A emoção era latente, especialmente tendo em vista a presença dos quatro sobreviventes brasileiros da tragédia (os jogadores Alan Ruschel, Neto e Jackson Follman, e o jornalista Rafael Henzel).

A tragédia que chocou o Brasil em novembro passado despertou reações emotivas das mais diversas, entre a tristeza pelas vidas ceifadas, a raiva pela negligência da empresa aérea LaMia, e a solidariedade ímpar demonstrada pelo povo colombiano. No meio deste turbilhão de emoções, porém, um episódio em particular gerou fortes reações. Poucas horas após a tragédia, diversos internautas brasileiros que acessaram o site da Netshoes em busca da camisa da Chapecoense constataram que o preço do produto havia sofrido um forte acréscimo de preço após o acidente, saltando de R$129 para R$249. Vários internautas mostraram-se indignados pelo que seria, em sua visão, uma prática imoral – a busca do lucro perante tragédia alheia.

Esta “prática imoral” na realidade é um fenômeno bem conhecido e estudado no campo da ciência econômica, e é conhecido em inglês como price gouging. Este termo – de conotação bastante pejorativa – evoca tudo que o sistema capitalista aparenta ter de pior: a busca incessante e desenfreada pelo lucro a todo custo, a imagem de um executivo de colarinho branco explorando desavergonhadamente os mais vulneráveis. Não à toa, não são infrequentes as tentativas de diversos governos (tanto de esquerda como de direita) de coibir esta prática.

O conceito do price gouging é simples: uma tragédia ou algum outro evento de natureza extraordinária gera um súbito e inesperado aumento na demanda por determinado bem ou serviço; em resposta, os provedores dentro do respectivo mercado elevam seus preços de maneira substancial, de maneira que sua margem de lucro líquida por unidade aumenta em conjunto.

O price gouging é mais frequentemente observado após desastres naturais, quando a demanda por bens de consumo ou serviços escassos sofre alta súbita, e a oferta não consegue acompanhar. Um exemplo notório recente ocorreu em 2012, nos estados americanos de Nova York e Nova Jersey, após o devastador furacão Sandy. Na ocasião, o procurador-geral de Nova Jersey recebeu reclamações de aumentos abusivos de preço de produtos e serviços, que iam do litro de gasolina a serviços de limusine, passando por quartos de hotel, geradores elétricos e produtos de supermercado. Até o governador Republicano Chris Christie fez questão de ir a público declarar que “price gouging durante um estado de emergência é ilegal”.

Nem o Uber escapou das acusações nos dias que sucederam a tragédia. O serviço, por sinal, dificilmente escapa deste tipo de crítica – especialmente quando há greve nos sistemas de transporte municipais. Seja durante a paralização do metrô de Londres, seja durante a greve geral em São Paulo, uma coisa é certa: não faltarão reclamações relativas ao sistema de tarifa dinâmica do serviço. Muitos argumentam, inclusive, que a tarifa dinâmica nada mais é do que a oficialização do price gouging.

Tendo tudo isto em vista, o price gouging parece ser uma prática indefensável para todos se não os mais árduos defensores do capitalismo selvagem e imoral, não? Entretanto, como tudo no campo da economia, a realidade não é tão simples assim. O primeiro problema em tentar coibir o price gouging é um tanto óbvio: o que exatamente constitui a prática? Seria um aumento de 5% abusivo? E 10%? 25% seria demais? Traçar esta linha não é tarefa fácil, pois é uma questão completamente subjetiva. Na visão de alguns, qualquer aumento, não importa quão pequeno ele seja, em situação de emergência, constitui prática abusiva. Neste cenário, qualquer aumento de preços seria uma prática ilegal, o que poderia até facilitar a vida de um inspetor do governo, mas acaba criando um novo problema: e se a alta dos preços for decorrente de um aumento exógeno dos custos de produção, sobre o qual o comerciante não tem controle algum? Especialmente em situações extraordinárias, a exemplo do furacão Sandy, este aumento dos custos podem ser inclusive produto da própria situação – pense, por exemplo, em produtos de supermercado que são transportados por um caminhão que acaba tendo a circulação prejudicada por bloqueios e medidas de evacuação emergenciais. Neste caso, o transporte da mercadoria sofrerá um aumento, que o comerciante será forçado a repassar ao consumidor. Será possível diferenciar isso de uma prática abusiva de price gouging?

O segundo problema é menos conceitual e de cunho mais prático. Como o Pedro Mota e o Rubens Terra demonstraram em artigo recente para o Terraço, as leis da oferta e demanda não cessam magicamente de existir apenas porque houve um choque exógeno.

Como o conhecido gráfico de oferta e demanda nos mostra, um choque exógeno gera um deslocamento à direita na linha que representa a demanda, representando um aumento na procura pelo produto ou serviço em questão. Isto faz com que o ponto de equilíbrio de mercado sofra um deslocamento vertical, resultando em um preço maior. Caso o preço seja mantido no mesmo patamar de forma coercitiva – por exemplo, através de leis contra o price gouging – passa a haver um descompasso entre oferta e demanda, representando situação de escassez. No gráfico acima, a linha vermelha representa este fenômeno.

Saindo do economês e voltando ao mundo real, o que isto significa na prática para a vida das pessoas? Que aquela bem-intencionada lei que visava proteger o consumidor de aumentos abusivos de preço nos momentos de maior necessidade acaba por gerar uma situação em que há falta generalizada destes mesmos produtos.

É aqui que chegamos ao coração do problema das leis contra o price gouging. No seu fundo, este tipo de política pública parte de uma premissa muito simples: como sociedade, de forma geral, nós aceitamos as leis de oferta e demanda que regem as nossas trocas voluntárias, formando a base do sistema capitalista – exceto em situações excepcionais. Dentro desta visão, a lógica fria e objetiva das leis de mercado ganharia um tom especialmente imoral perante uma situação de tragédia, emergência ou desastre. Neste contexto, seria necessário coibir os excessos do mercado de forma a preservar valores básicos da dignidade humana.

O problema desta lógica é que ela ignora um fato fundamental: não só as leis de mercado não deixam de existir em situações excepcionais, como elas se fazem ainda mais importantes neste contexto. Fundamentalmente, o estudo da economia visa encontrar a alocação de recursos mais eficiente possível, em um mundo onde impera a escassez. Em circunstâncias extraordinárias, quando um choque exógeno gera um aumento na demanda, essa escassez se torna ainda mais aguda, tornando a eficiente alocação de recursos ainda mais necessária.

É justamente através do ajuste de preços que esta readequação é feita. Na prática, a alta dos preços – o infame price gouging – tem dois efeitos, atuando tanto do lado da oferta quanto da demanda. Do lado da oferta, a alta dos preços incentiva mais produtores a desviarem seus recursos para a produção deste bem que está em situação de escassez, cobrindo assim a nova demanda que surgiu. Do lado da demanda, os preços mais salgados geram um desincentivo para a compra daquele item, fazendo com que apenas as pessoas que realmente o necessitem estejam dispostas a pagar o novo valor. Desta forma, a demanda tende a regredir de volta ao ponto de partida, retomando o equilíbrio inicial.

Remetendo tudo isto que abordamos de volta ao exemplo inicial, é evidente que o exemplo da camisa da Chapecoense na Netshoes não é o melhor exemplo dos problemas das tentativas de coibir o price gouging ­– afinal, conseguir comprar uma camisa de futebol está longe de ser uma situação de vida ou morte. O importante aqui, entretanto, é que o conceito é exatamente o mesmo do aumento da gasolina em Nova York após o furacão Sandy, ou do multiplicador do Uber no dia da greve geral. Aquele preço mais salgado que você viu no posto de gasolina ou no aplicativo pode parecer um tanto intragável – e é justamente este o objetivo. Mais do que apenas aumentar a oferta destes produtos, ele garante que a limitada oferta será direcionada a quem mais sente necessidade.

São as leis de mercado fazendo exatamente aquilo que tantos governos tentam desastradamente fazer: ajudar os mais necessitados. De repente, o price gouging já não soa tão cruel, não é?

Beni Fisch – Formado em ciência política e história pela Universidade McGill, e  mestre em Economia Política Internacional pela LSE 

Notas:

http://exame.abril.com.br/negocios/netshoes-esclarece-dobro-no-preco-da-camisa-da-chapecoense/

http://www.infomoney.com.br/negocios/grandes-empresas/noticia/5878682/apos-rumores-que-teria-aumentado-preco-camisa-chapecoense-netshoes-pronuncia

https://hbr.org/2013/07/the-problem-with-price-gouging-laws

http://www.cbsnews.com/news/post-katrina-price-gouging/

http://www.slate.com/articles/business/moneybox/2012/10/sandy_price_gouging_anti_gouging_laws_make_natural_disasters_worse.html

http://business.time.com/2012/11/02/post-sandy-price-gouging-economically-sound-ethically-dubious/

https://www.forbes.com/forbes/welcome/?toURL=https://www.forbes.com/sites/jeffreydorfman/2016/09/23/price-gouging-laws-are-good-politics-but-bad-economics/&refURL=https://www.google.com.br/&referrer=https://www.google.com.br/

http://www.cbsnews.com/news/after-sandy-allegations-of-price-gouging/

https://terracoeconomico.com.br/uber-tarifa-dinamica-e-o-livre-mercado

Beni Fisch

Formado pela Universidade McGill, no Canadá, onde fez graduação dupla em Ciência Política e História, seguiu seus estudos acadêmicos no Reino Unido, onde se formou Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics and Political Science. Trabalhou na área comercial e econômica do Consulado Britânico, e se envolveu com o braço de consultoria econômica da LSE durante sua passagem em Londres. Atualmente trabalha no departamento de comércio internacional da União Europeia. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2016 e 2018.
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