Sobre sondas, fé e economia: a era da pós-verdade

The problem with faith, is that it really is a conversation stopper. Faith is a declaration of immunity to the powers of conversation. It is a reason, why you do not have to give reasons, for what you believe.”

-Sam Harris[1]

Eu, Rafael Kasinski, tenho uma sonda alienígena no meu reto. Nunca tornei essa fato público, por medo das ameaças dos Ezbrugåls (povo alien que instalou a sonda), mas não aguento mais guardar esse segredo; o mundo deve saber, no melhor estilo Oprah, o que fizeram comigo.

É uma tecnologia avançadíssima: se você for tentar observar a sonda[2] via colonoscopia, a sonda percebe o ato observatório e consegue se camuflar. Se você tentar fazer uma biópsia, a sonda foge do bisturi. Na verdade, o objeto vive num estado de limbo quântico, com a solução sempre sendo que a sonda não existe. Contudo, lá está ela, emitindo sinais, informando os Ezbrugåls a respeito da minha dieta irregular e não particularmente saudável. Também não ajuda que causa tremendo desconforto, em especial quando assisto a filmes-cabeça em cinemas sem ar-condicionado. É como uma hemorróida localizada mais adentro, com tecnologia do século XXV.

Suponho que o leitor mais contemporizador há de me indicar a necessidade de buscar segundas e terceiras opiniões. Talvez sugira que eu busque mais evidências da existência da sonda (através de uma entrevista filmada junto a minha querida Xclasuí). Talvez o leitor sugira que o mínimo necessário para alguém começar a acreditar em mim seja demonstrar a existência dos Ezbrugåls. Se o leitor demandar qualquer um desse itens, poder-se-á dizer que é no mínimo cético.

Verdade seja dita: quem não exigir evidência da sonda (ou dos Ezbrugåls); quem não exigir que eu comprove em absoluto que realmente tenho um objeto alienígena no meu reto; quem, enfim, acreditar[3] piamente no que eu disser, é uma anta. Quem acreditar não na sonda, mas que eu, Rafael, fiz contato com alienígenas sem que eu apresente provas disso, é muito, muito burro. No mínimo, tal pessoa é profundamente ingênua. Tal falta de atributos intelectuais não apresentar-se-ia apenas em relação ao mal que me acomete: é a mesma coisa para o Saci Pererê, a Fada Madrinha e o Mundial de 2000 do Corinthians. Esse comportamento – de aceitar de cara qualquer proposta absurda sem exigir evidência de sua veracidade – talvez seja a faceta mais duradoura do ser humano desde que esse se conhece por gente.

É também uma das mais presentes; o mundo de hoje é prova disso (mas quando é que não o foi?). Se o examinarmos desde 2000, depararemo-nos com uma cornucópia de asneiras nas quais muitos acreditam de maneira cega, pia. Vamos a uma breve lista:

  1. As elites dominantes propositalmente engendram no sistema econômico mundial a impossibilidade de pobres subirem na vida.
  2. Nunca houve tanta pobreza no mundo.
  3. Nunca houve tanta violência no mundo.
  4. Qualquer governo pode gastar qualquer quantia de dinheiro durante o tempo que quiser sem que haja consequências mais graves.
  5. A CLT é melhor que sua ausência.
  6. Nunca houve tanto crime nas cidades estadunidenses.
  7. Todo homem é um estuprador em potencial/ todo homem é treinado para ser um estuprador.
  8. O homem branco é a fonte de todos os males do mundo.
  9. Deepak Chopra tem algo a dizer.
  10. Minorias são a fonte de todo o bem e sabedoria da humanidade.
  11. O Povo é a força motriz da História, cujo fim não só está próximo como prenunciará o Paraíso na Terra.
  12. Mercados solucionam absolutamente qualquer problema; se não soluciona, é porque o problema não existe.
  13. O Islã é uma religião de paz.
  14. O impeachment de Dilma foi golpe.
  15. Como regra, O Povo sabe votar de maneira inteligente e racional.
  16. Homeopatia funciona.
  17. Donald Trump foi eleito porque todos seus eleitores são preconceituosos.
  18. Religião é a única fonte possível de moralidade.
  19. Todos os seres humanos são cooperativos por natureza/todos os seres humanos são egoístas por natureza.
  20. Deus, como descrito na Bíblia ou no Alcorão, existe.

O ponto em comum entre todos os itens listados acima é um: fé (em alguns casos, trata-se de uma fé que aceitamos não criticar para poder haver uma melhor convivência entre as pessoas). Alguns itens da lista carecem de base empírica (7, 8, 10 e 20, por exemplo), enquanto outros possuem uma base empírica que os desmentem (2, 3, 4 e 18, por exemplo). Contudo, isso não importa para uma pessoa de fé, pois esta já é o suficiente não apenas para acreditar em uma ou mais das propostas acima listadas, como também para chegar às conclusões lógicas delas.

Por exemplo, crime nas cidades dos EUA. Durante sua campanha, em comícios, propagandas e debates, Donald Trump afirmou categoricamente que o crime em cidades americanas nunca esteve tão alto. Isso não é apenas errado: é uma mentira deslavada, cuja desonestidade pode (e deve) ser provada em cinco minutos[4]. Muitos eleitores seus, contudo, mostraram-se desinteressados na verdade e mais interessados naquilo que sentiam sobre crime. A mesma coisa valeu para as afirmações de Trump a respeito de imigração de mexicanos, assim como suas posições a respeito das intervenções americanas na Líbia e no Iraque. É desalentador verificar que o presidente-eleito pode mentir categórica e sequencialmente a respeito de números e de suas posições e não apenas continuar na corrida presidencial, como também ganhar uma fatia enorme do voto popular. É uma atitude na qual eleitores fingem que ele fala a verdade (ou ignoram que ele está mentindo) porque creem que ele é um candidato mais adequado, ou porque creem que ele representa uma mudança necessária e aceitável.

A mesma coisa aconteceu no Brasil nas eleições presidenciais de 2014. Dilma Rousseff, que disse que “[Pode-se] fazer o diabo quando é hora de eleição […]”[5], mentiu e enganou sem pudores durante toda sua campanha. Prometeu mundos e fundos para educação, saúde, lazer, cultura e programas sociais mesmo sabendo – fosse por meio de ministros, acadêmicos e especialistas – que a gastança que ela prometia promover seria um desastre épico para o País. Muitos de seus eleitores escolheram acreditar piamente nela, já que acreditavam que ele fosse a candidata menos pior (ou, de fato, a mais preparada). São pessoas que acreditaram que ela era boa gerente e gestora porque seu mentor, Lula da Silva, assim lhes disse. Escolheram acreditar, apesar de toda evidência contrária, que Dilma sabia fazer política. Não havia (não há até hoje) qualquer migalha de base empírica para ter acreditado, fosse em 2010 ou 2014, que Dilma servisse para ser síndica de prédio de meio andar, mas foi reeleita presidente. É tanta fé que faria Deus dizer, “Menas, gente, menas”…

A fé, para funcionar, exige que o crente ignore a realidade; em algumas ocasiões, o crente deve rejeitá-la. Parece ser o caso com eleitores de Trump e Dilma: são candidatos que vivem em realidades próprias, que deturpam a verdade (ou mentem) na cara dura (no caso de Trump, é evidente que ele é 171). Como oferecem possibilidades que as pessoas gostariam que fossem verdadeiras, eles conseguem tornar-se chefes do Executivo. Parece surreal, mas só parece: esse comportamento é tão antigo quanto a humanidade.

Desde sempre aceitamos explicações e propostas absurdas para nos sentirmos em paz. Quantos brancos na África do Sul da época do Apartheid não aceitaram a proposta de sua superioridade racial? Quantos alemães não aceitaram essa mesma proposta nos anos 30 e 40? Quantos latino-americanos não aceitam a proposta de igualdade econômica como remédio para todos os males do mundo? Quantos universitários americanos não acreditam que raça, origem e orientação sexual são a questão política mais importante do nosso tempo? Quantos árabes não aceitam que todos os judeus devem morrer? Quantos judeus não aceitam que os árabes são intratáveis? São sempre questões de fé, que carecem de evidência para sustentá-las, mas o comportamento permanece inalterado e bilhões de seres humanos continuam a acreditar nas maiores lorotas possíveis e imagináveis.

Nenhum comportamento tem maior histórico de aceitar artigos de fé sem pedir evidência de sua veracidade que a fé em poderes divinos. Tanto faz se estamos falando de poli- ou monoteísmo, o comportamento é o mesmo: há algum fenômeno que desconhecemos e nossa tendência maior é aceitar argumentos que expliquem o dito cujo de maneira que nós nos sintamos mais aliviados. Alguém morreu depois de beber água do poço? Foram as bruxas, ou talvez os judeus! Minha filha casou-se sem o hímen? É porque é uma vadia! Minha situação econômica tá um lixo? É culpa dos kulaks, ou dos mexicanos! Terroristas destruíram as torres gêmeas? É um castigo divino pela aceitação do ‘homossexualismo”. Não há absolutamente nada que vingue tais crenças, a não ser fé. Nada. Porra nenhuma. Contudo, aceitamos que alguns desses artigos de fé permaneçam intocáveis, porque ofende as sensibilidades alheias, ou porque talvez não queiramos que nossos próprios artigos de fé sejam criticados.

Defrontamo-nos com dois comportamentos aqui -ambos inaceitáveis, se pretendemos um mundo são e saudável: aceitamos verdades infundadas, que não são falseáveis; e não podemos questionar essa cega aceitação porque fere os sentimentos alheios. Na busca ocidental por tolerância, permitimos que verdadeiros absurdos sejam aceitos por um enorme número de pessoas com resultados que, apesar de apresentarem diferentes facetas, são sempre indesejados.

Se tomarmos crentes[6] como exemplo, temos os dois comportamentos ilustrados em toda sua majestade. Para a pessoa acreditar que o que está escrito na Bíblia é ou a Palavra, ou palavras inspiradas no que disse Deus, essa pessoa, pelo menos em 2016, precisaria oferecer sólida evidência do que acredita ser a realidade (mais ou menos como eu deveria provar que tenho uma sonda no meu reto). Contudo, poucos são os crentes que se sentem na obrigação de fazer isso: a maioria contenta-se em dizer que Deus está no coração, ou que ele, o Crente, tem fé, ou qualquer outra bobagem similar. E ponto final. Experimente, caro leitor, pedir ao crente que este produza a prova sobre o que afirma a respeito do universo do mesmo jeito que ele, o Crente, esperaria que eu produzisse provas sobre a sonda alienígena no meu ânus. Boa sorte.

Boa sorte também para você, leitor, que for pedir evidência (ou o fez em 2014) aos eleitores de Dilma, demonstrando que ela era boa gestora. Aproveite e dê uma passada em Ohio para perguntar a eleitores de Donald Trump o que os fez acreditar que ele é menos medíocre e mais honesto do que Hillary Clinton. Pergunte aos pracinhas de São Paulo o que os fez tanto amar Paulo Maluf durante tanto tempo. Pergunte ao católico praticante porquê uma mulher manter relações sexuais com outra é errado. A falta de evidência empírica para as afirmações que você ouvirá estará presente em todas as respostas.

Se fosse apenas este o problema, estaríamos bem na fita, mas o pudor que sentimos em criticar diversos artigos de fé é o que permitiu que Dilma Rousseff fosse presidente, e que permite que crentes atuem, muitas vezes com sucesso, para que a Lei não valha para LGBTQs como vale para heterossexuais. Com certa restrição em insultar nossos conterrâneos, aceitamos que preconceitos infundados (sexo entre homens é abominável, mulheres devem se vestir de maneira “modesta”, ateus não são confiáveis) corram soltos, e esses preconceitos têm consequências. Que o digam mulheres afegãs, ou lésbicas em Uganda, ou albinos na Tanzânia e no Malawi, ou judeus na França (de 2016!). Nossa relutância em não tolerar bobagem significa que temos que depois amargar leis e atos que pioram a vida de muitos (como as de muçulmanos nos EUA, que hão de piorar bastante nos próximos anos, ou a de brasileiros, que arcam com as consequências de políticas econômicas da esquerda desenvolvimentista).

Vai chegar o momento em que o bem estar de uma população vai depender de não mais aceitar a estultice alheia. Não será um trabalho fácil, já que a fé, que nos acompanha desde sempre, é central à existência de bilhões de seres humanos. Aceitar as crendices dos outros, sejam eles judeus, cristãos, muçulmanos, positivistas, comunistas, objetivistas, racistas, classistas, socialistas ou fãs de Star Trek, não pode mais, hoje em dia, trazer bons auguros. Ou crentes se encontrarão numa posição de ter que explicar suas posições (sob a pena de serem sumariamente ignorados), ou todos continuaremos a ter que forçadamente lidar com as consequências de suas ilusões.

Rafael Kasinki, é músico formado na Berklee College of Music, paga de entendido e tem 35 anos.

Notas

[1] Ver https://www.youtube.com/watch?v=06pSJJaoEsQ

[2] Objeto 31-B, segundo Xclasuí, minha amante alien, que faz parte do underground Ezbrugål.

[3] Há uma diferença entre acreditar na sonda e acreditar que o sol nascerá amanhã. A sonda exige que você aceite minha palavra; se o sol em algum momento não tivesse nascido, eu não estaria escrevendo esse artigo que você está lendo.

[4] Aqui vai um de vários exemplos: http://www.politifact.com/truth-o-meter/statements/2016/aug/30/donald-trump/donald-trump-wrong-inner-city-crime-reaching-recor/

[5] Ver http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/03/04/podemos-fazer-o-diabo-quando-e-hora-de-eleicao-diz-dilma-com-aliado-de-eduardo-campos-na-pb.htm

[6] Entendemos “crentes” como sendo pessoas que acreditam em Deus, a Histórias, deuses, O Mercado e afins -todos objetos cuja existência não é falseável.

Rafael Kasinski

Formado em composição popular pela Berklee College of Music, Boston, EUA, é produtor musical, vocalista, locutor e ex-baterista. Está atônito de ainda poder publicar no Terraço Econômico. Interessa-se principalmente pela (falta de) racionalidade no discurso público e na vida individual das pessoas. Deu aula durante anos e ficou muito mal impressionado com as decisões que cidadãos tomam, ou deixam de tomar. Ocasionalmente discute música, em especial Prince e King Crimson e a importância de dançar.
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