Universidade e tecnocracia: o caso japonês

A Gazeta do Povo noticiou semana passada que o governo japonês começou a colocar em prática o plano de enxugar ou simplesmente cortar cursos de ciências humanas nas universidades do país[1]. O movimento vem de dois anos para cá, seguindo uma orientação do governo de Shinzo Abe de concentrar os investimentos na produção de conhecimento científico alinhado com as demandas mais imediatas da sociedade.

Das mais de cinquenta universidades japonesas que contavam com departamentos de ciências humanas, pelo menos vinte e seis (26) fecharam os cursos ou pelo menos reduziram o corpo docente. O Ministro da Educação, Hakubun Shimomura, publicou uma nota, em 2015, sugerindo que as universidades “tomem medidas para abolir organizações de ciências humanas ou convertê-las para servir a áreas que atendem melhor às necessidades da sociedade”. Foram pelo menos dezessete (17) universidades a simplesmente cancelar processos seletivos de alunos para os cursos de ciências humanas e sociais; dentre elas, a Universidade de Osaka – maior do país – foi uma das que mais entusiasticamente apoiou a diretriz: seu reitor, Nishio Shojiro, cobrou proatividade aos administradores universitários na readequação de suas estruturas para responder às demandas sociais – algo que fugiria, segundo o reitor, à vocação dos cursos de humanidades.

Desde então, rareia no Japão a oferta de vagas em cursos de história, direito e economia. Para Abe, primeiro-ministro, trata-se de um esforço de evitar o aprofundamento em pesquisas acadêmicas excessivamente teóricas e reorientar o foco da educação japonesa para o treinamento prático e vocacional. O plano de Abe é, com essas e outras medidas, colocar pelo menos dez universidades japonesas entre as cem melhores do mundo na virada da década – uma lista na qual figuram, hoje, apenas duas: as universidades de Tokyo e Kyoto.

Essa história poderia ser publicada não só na seção de educação de um jornal, mas também num jogo dos sete erros de política, educação e – por que não? – economia. Foquemos nos principais.

Antes de mais nada, a concepção de educação de Abe e Shimomura é explícita e declaradamente utilitarista – no pior sentido da palavra. Os altos representantes japoneses não conseguem ver valor em nenhum estudo, formação e pesquisa universitários que não estejam em perfeita harmonia com as demandas atuais e imediatas da sociedade. Não faz sentido, para eles, sequer imaginar e projetar demandas futuras, que ainda não existem – ora, não é esse um dos motores principais da inovação e do empreendedorismo, tão cultuados como fatores de desenvolvimento econômico? Focar exclusivamente o imediato implica sacrificar o futuro e, com isso, ficar constantemente na perseguição daqueles países que souberam imaginar o inexistente, criar e inovar – como nós, brasileiros, bem sabemos.

Ainda nesse ponto, sobre o utilitarismo dos cursos universitários: por que não ser mais radical? Por que parar nos cursos de ciências humanas e sociais e não avançar, por exemplo, sobre a matemática e a física? Por que não extinguir as áreas da biologia e da química que não são de aplicação imediata? Por que, enfim, não acabar com toda a ciência básica e concentrar os esforços na pesquisa aplicada? Essa, aliás, é uma postura comum entre os políticos brasileiros, como já mostrei aqui no Terraço Econômico[2] – pelo menos nesse assunto, podemos nos reivindicar tão desenvolvidos (ou atrasados) quanto os japoneses, que maravilha! [Atenção: contém ironia]

De fato, a (relativa) timidez revelada na (falta de) amplitude dos cortes é expressão de um segundo problema: a estreiteza da concepção de demandas sociais expressa pela política em questão. Dizer que cursos de ciências humanas e sociais não atendem a demandas sociais implica dizer que não existe demanda da sociedade por literatura, teatro, cinema, comunicação, entretenimento, administração patrimonial, administração da justiça e de conflitos, análises econômicas, etc. Chega-se ao ponto em que se faz necessário perguntar aos idealizadores dessa política japonesa: afinal, o que conta como demanda social? Parafraseando Os Titãs, no caso japonês: a gente não quer só robô, a gente quer robô, diversão e arte!

O projeto japonês repousa sobre uma confusão também já explorada aqui no Terraço, entre utilidade e relevância[3]. De fato, há pesquisas que são inúteis – no sentido de não possuírem aplicação prática imediata – e mesmo assim são bastante relevantes, merecendo apoio e financiamento. Reduzir todo o espectro de relevância à mera utilidade é sintoma de uma sociedade que se deixou encantar pelo domínio (nesse caso, absoluto) da técnica, algo que provoca um achatamento da riqueza e complexidade da experiência humana no mundo, diagnosticado há quase um século por filósofos tão distintos quanto Martin Heidegger e Herbert Marcuse, por exemplo – são certamente exemplos ruins, já que seus trabalhos claramente não responderam, não respondem e provavelmente jamais responderão a qualquer demanda social. [Atenção: contém sarcasmo]

Obviamente, o ensino voltado para a técnica científica é extremamente importante, e isso em diversos níveis de educação[4]. No entanto, seria um equívoco reduzir todo ensino ao técnico – que deveria ser uma entre várias possibilidades de formação. Se não é desejável uma sociedade composta apenas e totalmente de filósofos, poetas e economistas – francamente, não sei qual hipótese é a mais assustadora! –, tampouco o é uma sociedade composta exclusivamente de técnicos, engenheiros, etc.

Por fim, o equívoco clássico de tomar, sem mais, rankings internacionais como critério de qualidade do ensino superior[5]. Bastante distintos entre si, do ponto de vista de suas metodologias e, consequentemente, de seus resultados, esses rankings tendem a refletir modelos universitários que podem não fazer sentido em determinados contextos sociais. É preciso, portanto, posicionar-se criticamente com relação a eles, aceitando ou recusando seus critérios e suas métricas em função dos objetivos do sistema educacional do país – e não o contrário. Não deixa de ser irônico que as universidades japonesas que mais resistiram à orientação de Abe foram justamente aquelas melhor ranqueadas, a exemplo da Universidade de Shiga – cuja reitora denunciou o anti-intelectualismo e o atraso da medida.

Além de todos os problemas aqui listados, vale ressaltar o caráter autoritário da política sugerida: forçar o direcionamento da formação universitária de gerações por meio da restrição de possibilidades de escolha não parece ser o caminho mais democrático para fomentar o desenvolvimento econômico, tecnológico e social de uma nação. Tudo somado, talvez seja o caso de reconsiderar a medida. [Atenção: contém eufemismos]

  Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico   Notas [1] http://www.gazetadopovo.com.br/educacao/por-que-o-governo-japones-esta-fechando-cursos-de-humanas-eg6kr3nk619a18tylf3aso9um?utm_source=facebook&utm_medium=midia-social&utm_campaign=gazeta-do-povo [2] https://terracoeconomico.com.br/sentidos-de-relevancia-justificativas-para-o-financiamento-de-pesquisas-universitarias [3] https://terracoeconomico.com.br/sentidos-de-relevancia-justificativas-para-o-financiamento-de-pesquisas-universitarias [4] https://terracoeconomico.com.br/hora-e-vez-ensino-tecnico-no-brasil [5] https://terracoeconomico.com.br/quem-servem-os-rankings-universitarios

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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