A universidade vista por seus administradores: o caso da USP

Duas semanas atrás, no dia 23 de março, o reitor da Universidade de São Paulo (USP), Marco Antonio Zago, deu uma entrevista à revista Veja[1] refletindo sobre seu mandato à frente da referida universidade. Trata-se de uma observação pontual, de um reitor de uma das muitas universidades brasileiras, mas que me parece exemplar por alguns motivos: a) a USP é tida como a melhor universidade brasileira, tanto nos (problemáticos) rankings internacionais[2] quanto na maioria das avaliações nacionais[3]; b) as universidades estaduais paulistas gozam de um grau de autonomia financeira relativamente alto, em função do repasses vinculados à arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) recolhidos pelo estado, determinado na Constituição Estadual; c) desde 2014, fala-se em crise sistemática da USP[4], uma crise que, embora não seja exclusiva dessa instituição – vide a atual situação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)[5] -, recebe ampla repercussão na imprensa, quer seja pelo tamanho da USP, por sua relevância nacional e sul-americana ou por qualquer outro motivo.

A pergunta que dirige esse texto é: qual concepção ou visão de universidade se manifesta na fala do reitor Zago? A abertura da entrevista menciona uma crise financeira sem precedentes na USP em 2014, quando Zago assumiu, em conjunção com greves e a perda de posições em rankings internacionais[6] e logo desenha um cenário de avaliação positiva da gestão do reitor: “Quase quatro anos depois, a USP conseguiu aprovar um pacote para reequilibrar suas contas, reformou a avaliação dos docentes e transformou o vestibular, que hoje oferece quase metade das suas vagas para alunos de escolas públicas”.

Essas medidas de reestruturação mencionadas por Zago não ficaram sem resposta contundente da comunidade universitária[7], algo que chamou a atenção da Veja. Ora, se as contas da USP são abertas e públicas, e se está claro que a situação é de penúria, por que então as medidas de “reequilíbrio financeiro” causaram tanto alvoroço? Diz Zago: “Sabíamos quais eram os gastos, mas não tínhamos detalhes de como eram feitos. (…) Eu fazia parte da comissão que aprovava esses salários, mas, como não era um hábito verificar os pormenores, a situação ficou insustentável”. O reitor faz referência ao período de 2011-2013, gestão de João Grandino Rodas, da qual Zago foi Pró-Reitor de Pesquisa[8]. Um alto funcionário da administração universitária admitindo em alto e bom tom que não fazia ideia – não se importava? – de como o dinheiro da instituição era aplicado. As esperanças do atual reitor na (sic.) ‘Lei de Responsabilidade Fiscal’ para a USP são frágeis a ponto de ele admitir a aposta de fé na recuperação econômica do estado (algo nada trivial na atual conjuntura): “Alcançar esse número não me preocupa, pois acredito firmemente que a arrecadação estadual vai aumentar e as contas vão fechar”. O que fazer caso isso não aconteça? Uma questão – dentre muitas – que Zago não se dá ao trabalho de responder.

O que preocupa o magnífico reitor? “O que me tira o sono é que, no futuro, a USP pode deixar de atrair as mentes mais brilhantes e vai ficar com professores e pesquisadores que não conseguiram boas vagas em outras universidades”. Isso ocorreria, segundo Zago, por dois motivos principais: em primeiro lugar, porque a universidade gasta demais com funcionários técnico-administrativos e não “para o que deveria ser o objetivo da universidade: ensino e pesquisa”; em segundo lugar, porque há um limite constitucional para os salários de funcionários públicos estaduais – os vencimentos do governador, ou seja, R$ 21.631,05. O medo de Zago é que os melhores profissionais emigrem para “o exterior”, onde “as universidades contratam pesquisadores e oferecem o salário que acreditam que merecem”, ou então para universidades federais, onde o teto salarial é mais elevado.

Três erros num trecho tão curto!

Primeiro erro: deixar de fora do tripé universitário (artigo 207 da Constituição Federal) a extensão, reduzindo a missão apenas a ensino e pesquisa – uma omissão que poderíamos atribuir ao fato de Zago ter sido (de 2007 a 2010) presidente do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mas não me parece ser o caso. Trata-se de um “erro” estratégico para a visão de Zago, já que abraçar essa terceira missão implica aceitar uma quantidade elevada de funcionários não docentes (que são os que realizam ensino e pesquisa) e assumir altos custos estruturais, como manter hospitais universitários – algo que Zago, embora médico, não está disposto a fazer[9]. Dizer que a universidade se presta apenas à pesquisa e ao ensino é se eximir de prestar mais serviços diretos à sociedade, agravando ainda mais o processo de encastelamento da universidade, que se aliena de seu contexto e permanece trancada na malfadada torre de marfim. Uma universidade autocentrada e autorreferenciada, fechada em si mesma e distante da sociedade que lhe sustenta (inclusive financeiramente): eis a concepção do magnífico reitor.

Segundo erro: projetar – novamente de maneira estratégica – uma visão paradisíaca do mercado de trabalho acadêmico no exterior. Duas considerações a este respeito: 1) está muito bem documentado, em diversos meios de comunicação, o alto grau de saturação de mercados estrangeiros para profissionais da academia[10] – não há espaço nem para pesquisadores formados no sistema, quanto mais para outsiders; 2) essa generalização de que os salários no exterior são mais altos é uma falácia, se compararmos as médias salariais do Reino Unido, França e Alemanha com as perspectivas brasileiras[11].

Terceiro erro: sugerir que a única variável – ou a mais definitiva – na escolha de um posto de trabalho acadêmico é a questão salarial. Naturalmente, a remuneração importa – e muito -, mas é ingênuo dizer que um pesquisador optaria por uma universidade federal com estrutura pior e menos renome do que a USP, por exemplo, apenas com vistas a melhores rendimentos. E a situação de agências de fomento estaduais (pensemos no prestígio da Fapesp)? A quantidade de alunos e a carga horária em sala de aula? O número de convênios internacionais e a participação em pesquisas globais?

Zago constrói um espantalho feito sob medida para sustentar sua visão de universidade: composta por docente, pesquisadores e estudantes, virada de costas para a sociedade que lhe é externa e que ofereça supersalários não só à alta cúpula administrativa, mas a todos (será?) envolvidos na pesquisa e no ensino autorreferenciais.

A entrevista prossegue, tendo como tema o novo sistema de avaliação docente da USP[12]. Paro por aqui, evitando me prolongar e com a promessa de retomar o tema da avaliação no próximo texto, amarrando as pontas com meu último aqui no Terraço Econômico[13].

Notas

[1] http://veja.abril.com.br/complemento/entrevista/marco-antonio-zago.html

[2] https://terracoeconomico.com.br/quem-servem-os-rankings-universitarios

[3] Embora tenha perdido a liderança do Ranking Universitário da Folha para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ano passado: http://ruf.folha.uol.com.br/2016/

[4] O que explica propostas de solução como esta: https://terracoeconomico.com.br/como-fazer-a-usp-lucrar-r-12-bilhao-ao-ano-sem-precisar-vender-tudo

[5] https://educacao.uol.com.br/noticias/2017/02/20/apos-ano-perdido-uerj-em-crise-enfrenta-incerteza-piora-a-cada-dia.htm

[6] Pra variar, essa informação é tomada pelo valor de face, sem reflexão crítica sobre o que, diabos, significam esses rankings e a que(m) servem.

[7] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/03/1864385-protesto-contra-teto-de-gasto-na-usp-termina-em-confusao-com-a-policia.shtml

[8] http://www.reitoria.usp.br/?page_id=8

[9] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/usp-viola-estatuto-pra-se-desfazer-de-hospital-802.html

[10] Para ficar em dois exemplos, recomendo o site Chronicle of Higher Education e o blog Impact of Social Sciences da London School of Economics, recheados de matérias sobre o assunto.

[11] https://www.timeshighereducation.com/news/french-professors-fall-short-in-global-salary-comparison

[12] http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/02/09/engrenagem-em-movimento/

[13]  https://terracoeconomico.com.br/quem-servem-os-rankings-universitarios

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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