Voto em Lista fechada: maior transparência e accountability ou mais uma artimanha para se livrar das garras da Lava Jato?

Accountability: palavra da língua inglesa sem tradução oficial para o português. Pode ser traduzida como prestação de contas por alguém que desempenhe funções de importância na sociedade e/ou cargos eletivos. A obrigação de prestar contas é tanto maior quanto a função é pública, ou seja, quando se trata do desempenho de cargos pagos pelo dinheiro dos contribuintes.

Dentre tantas reformas em discussão no momento, com a previdenciária tomando conta dos holofotes do noticiário econômico devido à urgência e importância do tema, quase passam despercebidos detalhes de outra relevante proposta de mudança do arcabouço institucional brasileiro: a reforma política.

Tendo como relator o deputado Vicente Cândido (PT-SP) e apresentada recentemente à Câmara (dia 4 de abril), ela não se resume apenas à discussão de incluir ou não a tipificação do crime de Caixa 2 (que, após muitas idas e vindas foi retirada do projeto final), também inclui propostas para o fim da reeleição para cargos executivos, o fim de coligações para eleições proporcionais [1], a criação de um fundo eleitoral de R$ 2,1 bilhões abastecido com recursos públicos e a implementação do não tão conhecido voto em lista fechada para eleições do legislativo. É este último o tema do presente artigo.

Atualmente, a eleição para o poder legislativo no Brasil (abarcando, portanto, deputados federais, senadores, deputados estaduais e vereadores) se dá por meio do voto proporcional em lista aberta. Tal modelo prevê que eleitores possam votar diretamente no candidato de preferência ou na legenda (ou seja, no partido), sendo as vagas de cada casa legislativa preenchidas de acordo com o número de votos recebidos pelo partido ou coligação (seja via votos diretos em candidatos ou na legenda). Tal divisão é feita a partir de um cálculo, chamado quociente eleitoral, baseado nos votos válidos. A partir desse cálculo, são estipuladas as vagas a que cada partido (ou coligação) tem direito – os candidatos do partido ou da coligação com mais votos ficam com as vagas [2]. O impacto deste sistema é o conhecido “voto do Tiririca”, conhecido palhaço profissional cujos votos para deputado federal em 2014 levaram outros dois deputados de seu partido (PR) para o Congresso.

Já no sistema de lista fechada, o eleitor vota em uma relação de nomes previamente determinada pelos partidos, e as vagas destinadas a determinada legenda são preenchidas pelos candidatos na ordem em que aparecem na lista. É chamado de lista fechada justamente pelo fato de o eleitor não pode escolher a ordem que cada partido ou coligação dará a seus candidatos para preencher as vagas conquistadas. No caso da lista aberta (vigente hoje), a mesma lista existe, mas sua ordem é formada de acordo com os votos recebidos por cada candidato do partido ou coligação.

Defensores deste modelo de lista fechada, que é adotado em 29 países do mundo como Portugal, Espanha e Argentina, argumentam que ele possibilita o fortalecimento de partidos políticos de uma maneira positiva, ao dar maior coerência ideológica à atuação dos parlamentares e dirimir os riscos associados à personalização do voto – na qual o eleitor é atraído por características de candidatos menos democráticas e passíveis de accountability, como simpatia, charme e até aparência física. De acordo com tal linha de argumentação, a lista fechada pode representar a possibilidade de o eleitor ter mais clareza de qual partido efetivamente corresponde ao que ele aspira, ao que ele quer na política. Diferente da lista aberta, em que o voto raramente está relacionado ao programa de partidos [3].

No debate brasileiro atual, proponentes da mudança (incluindo o relator da proposta) defendem que o voto em lista fechado tornou-se necessário por ser a única maneira de tornar campanhas mais baratas e mais fáceis de fiscalizar, tendo em vista a recente mudança de legislação proibindo doações privadas às campanhas eleitorais [4]. Além disso, a proposta institui o sistema distrital misto a partir das eleições de 2026, segundo o qual metade das vagas é preenchida por lista fechada e o restante a partir do voto direto em candidatos distribuídos em distritos a serem definidos. Em teoria, outra mudança que visa a aumentar a transparência e aproximar o candidato do eleitor.

A discussão no Congresso dos últimos dias, entretanto, ganhou certo fervor especial devido ao suposto uso do modelo como atalho para livrar políticos das garras de Sergio Moro e seu julgamento no âmbito da operação Lava Jato. Ocorre que muitos especialistas (e claro, opositores da medida do Congresso) destacam o importante ponto de que a discussão da proposta nesse momento acaba por parecer mais uma “estratégia de autodefesa” do que uma tentativa sincera de se aperfeiçoar o sistema eleitoral do país [5].

Seguindo essa linha de raciocínio, com uma lista determinada previamente por partidos, estes podem optar por colocar em primeiro lugar (priorizar) candidatos mais próximos às teias da Lava Jato, garantindo-lhes o foro privilegiado. Em outras palavras, a lista fechada será usada como ferramenta para usar as cadeiras do Congresso como bote salva vidas de políticos já na mira da investigação e risco de condenação mais célere em primeira instância (fora do STF). De fato, parlamentares já se movimentam na direção de priorizar na lista políticos que já tenham mandato vigente em detrimento de novos [6]. Além disso, um modelo em que o eleitor vote apenas no partido pode também garantir a eleição de políticos que, agora impopulares, temem a perda do tão almejado foro privilegiado ao não alcançarem a reeleição.

Em forte editorial, o jornal Folha de São Paulo já se posicionou perante o tema: sem afigurar-se como antídoto contra a corrupção, dada a impossibilidade de fiscalizar todos os gastos de campanha, o modelo acalentado pelos deputados apenas distanciaria os representados de seus representantes. Dado seu descrédito crescente, só estes terão a ganhar com essa espécie de estatização das eleições [7]. O debate continua. E sua opinião, qual é?

 

Notas

[1]Nesse sistema, a representação política é distribuída proporcionalmente entre os partidos políticos ou coligações concorrentes; no caso da Câmara dos Deputados, o número de deputados federais é teoricamente proporcional à população de cada Estado – com mínimo de 8 e máximo de 70 de deputados por Estado.

Referências

[2]http://g1.globo.com/politica/noticia/relatorio-da-reforma-politica-preve-fim-dos-vices-e-voto-em-lista-veja-propostas.ghtml

[3]http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39323432 [4]http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Agosto/doacoes-de-pessoas-juridicas-estao-proibidas-nas-eleicoes-2016 [5]http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39323432 [6] http://www.blogdokennedy.com.br/lista-fechada-e-escudo-para-politicos-encrencados-na-lava-jato/ [7]http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/04/1872413-eleicao-estatizada.shtml

Rachel de Sá

Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics, mestranda em Economia, Desenvolvimento e Políticas Públicas pelo IDP, e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Idealizadora do canal do Terraço Econômico no Youtube, acredita que educação financeira é para todos, e sempre busca explorar a linha tênue entre ciência política e economia.
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