Cobrar ou não cobrar mensalidade? Essa NÃO é a questão!

Um dos assuntos que sempre se faz presente nas discussões sobre o ensino superior público no Brasil é a possibilidade de cobrança de mensalidades (ou alguma outra forma de pagamento por parte dos estudantes), revertendo o padrão atual de gratuidade da educação superior pública no país. A rodada mais recente dessa discussão se deu na Câmara dos Deputados, com a rejeição de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que autorizaria a cobrança de mensalidade em cursos de pós-graduação lato sensu e de extensão oferecidos por instituições públicas de ensino superior[1].

São dois os grandes argumentos a favor da cobrança: 1) o sistema de educação superior é financiado por impostos regressivos, que sobrecarregam os mais pobres – tanto na esfera federal[2] quanto nas esferas estaduais[3]; 2) as instituições de ensino superior públicas são elitistas e seu alunado é composto majoritariamente por egressos das classes mais altas da sociedade. Se o financiamento é injusto e a instituição é excludente, concluem os defensores dessa posição, está justificada a cobrança de mensalidades e o fim da gratuidade. Isso porque as camadas que mais contribuem (proporcionalmente) para o financiamento do sistema são precisamente aquelas que são dele excluídas.

O que sustentarei aqui é que a decisão de cobrar ou não cobrar mensalidades dos estudantes é uma questão secundária, cuja resposta não ataca os reais problemas que visa solucionar. Curiosamente, as duas questões centrais que surgem nos argumentos em defesa da cobrança estão listados acima, mas não são devidamente tratadas na resolução apontada.

De saída, não devemos fetichizar o caráter gratuito de universidades públicas. Ao redor do mundo, diferentes países implementam cobrança em distintos níveis de educação superior nas instituições públicas: alguns apenas na graduação, outros apenas na pós-graduação stricto sensu, outros apenas na pós-graduação lato sensu, há os que cobram em todos os níveis, há os que não cobram em nenhum[4].

O simples oferecimento gratuito de um serviço público nada diz sobre sua justiça. Há que se fazer sobretudo duas perguntas: a) quem subsidia essa gratuidade? – qualquer serviço público gera custos, e se eles não são repassados aos destinatários da prestação desse serviço, certamente são cobertos por alguma fonte alternativa; b) a quem se destina o serviço? – a justiça ou injustiça de uma cobrança (ou de sua ausência) diz respeito, por exemplo, ao grupo de pessoas a quem ela se aplica, e aqui pensamos em dados como capacidade contributiva, grau de distribuição (ou concentração) de renda na sociedade, etc.

Imaginemos que o Estado brasileiro decida oferecer clubes de campo gratuitos para usufruto de ex-Senadores aposentados da política. Mais: que esses clubes sejam financiados por uma contribuição obrigatória, descontada do salário de trabalhadores do serviço de limpeza urbana. Não parece justo que o Estado subsidie o ócio de ex-membros da elite política (e, no mais das vezes, também econômica), e é ainda mais absurdo pensar que tal luxo ou privilégio seja financiado por setores vulneráveis da força de trabalho nacional.

Pois bem, apliquemos as mesmas exigências ao sistema de educação pública superior. A quem ele se destina? Defendi, num texto publicado aqui no Terraço Econômico, que a universidade não é para todos, ela é para qualquer um: embora ela não deva acolher todos os diversos projetos de vida possíveis numa sociedade livre e democrática, ela deve estar de portas abertas para qualquer pessoa que esteja de acordo com seus propósitos e ideais, independentemente de gênero, raça, condição econômica, etc[5] – na prática, não é assim que funciona: quanto melhor a situação socioeconômica de um(a) candidato(a), maiores as chances de ingresso numa universidade pública (ainda que essa tendência venha sendo reduzida nos últimos anos por mecanismos como cotas sociais). Como ele é financiado? Por meio de um sistema tributário marcadamente regressivo, que sobrecarrega os mais pobres e alivia, proporcionalmente, os mais ricos – especialmente pelo peso atribuído a impostos indiretos[6].

Trata-se de um sistema perverso e distorcido, precisamente como apontado no início deste texto: as camadas que mais contribuem (proporcionalmente) para o financiamento do sistema são precisamente aquelas que são dele excluídas. No entanto, surge a questão: de que maneira a cobrança de mensalidades (na graduação, na pós, nos cursos de extensão, tanto faz) resolve essa situação?

A resposta: de maneira nenhuma. A cobrança teria como consequência direta trazer um alívio à penúria orçamentária que muitas das nossas instituições públicas de ensino superior enfrentam[7] (isso se não provocasse a um sentimento de desobrigação por parte do poder público e uma redução dos repasses orçamentários), mas não corrigem as distorções do financiamento nem as injustas barreiras de ingresso.

Por isso, a cobrança é uma questão secundária. Uma reforma tributária, que implementasse um sistema progressivo e uma reforma dos mecanismos de seleção têm premência com relação às mensalidades. Ainda que a situação financeira/orçamentária das universidades públicas seja grave, sua solução não resolve os problemas estruturais que impedem que a universidade seja uma instituição verdadeiramente democrática e republicana.

Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico

Observação: a imagem destacada é um frame de um debate realizado pela TV Folha sobre esta questão. Este debate pode ser visto integralmente aqui neste link: https://www.youtube.com/watch?v=KPYPfzP_s90

[1] http://g1.globo.com/educacao/noticia/camara-rejeita-cobranca-de-pos-graduacao-em-universidades-publicas.ghtml [2] http://www.andifes.org.br/wp-content/files_flutter/Biblioteca_001_Financiamento_da_Educacao_Superior_Publica_Federal.pdf [3] http://www.ppe.uem.br/xxivuniversitas/anais/trabalhos/e_1/1-010.pdf [4] http://g1.globo.com/educacao/noticia/gratuito-ou-pago-veja-quem-paga-a-conta-do-ensino-superior-publico-nos-eua-reino-unido-franca-e-mais-17-paises.ghtml [5] https://terracoeconomico.com.br/universidade-e-universalidade-universidade-nao-e-para-todos-e-para-qualquer-um [6] https://www.cartacapital.com.br/economia/o-regressivo-sistema-tributario-brasileiro http://www.conjur.com.br/2014-nov-06/efeito-perverso-regressividade-sistema-tributario-brasileiro [7] http://g1.globo.com/educacao/noticia/2016/02/nove-universidades-federais-somam-deficit-de-r-400-milhoes-em-2015.html

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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