Eleições americanas: é hora de abolir o Colégio Eleitoral

Beni Fisch

É oficial: a partir do próximo 20 de janeiro, Donald Trump será o novo presidente dos Estados Unidos. Não obstante, até a manhã desta segunda-feira, a contagem oficial conferia ao candidato Republicano 60.072.551 votos, contra 60.467.601 de sua adversária Democrata, Hillary Clinton.[1] Ou seja: uma vantagem de mais de 200.000 votos para a ex-Secretária de Estado. Pela quinta vez na história americana – a segunda em menos de duas décadas – será eleito o candidato com o menor número de votos país afora. A explicação disto? O famoso Colégio Eleitoral.

Este sistema de eleição indireta teve suas origens na Assembleia Constituinte que, em 1789, ratificou a Constituição que perdura até hoje. Numa época em que os EUA não eram tanto o país coeso de atualmente, mas sim uma aglomeração das ex-colônias inglesas que haviam se unido contra o inimigo comum na Guerra de Independência, havia a necessidade de equilibrar os interesses federais com os de cada estado. Também era necessário balancear os interesses dos estados mais populosos com os de menor população.

Desta forma, chegou-se ao consenso que estabeleceu o Colégio Eleitoral: um grupo de eleitores selecionados por cada estado que seriam responsáveis por votar para a Presidência. Cada estado recebeu um número de eleitores igual ao total de sua representação no Congresso – ou seja, a soma de seus Deputados e Senadores. Como a representação na Câmara é proporcional à população de cada estado, enquanto no Senado impera a igualdade entre os estados, este foi considerado um acordo que conciliava bem os interesses de todas as unidades federativas.

Outro motivo pelo qual o acordo foi considerado adequado para a época foi a questão do sufrágio. Numa época em que apenas uma parcela muito pequena da população tinha direito ao voto (predominantemente homens brancos donos de propriedade), a Constituição delegou aos estados a responsabilidade de determinar quem teria o direito ao voto. Com o Colégio Eleitoral, alguns estados com sufrágio mais amplo tinham maior participação popular na seleção de seus representantes no Colégio Eleitoral. Em outros estados, os representantes no Colégio Eleitoral eram selecionados pela Assembleia Legislativa do estado, sem participação popular direta.

Na prática, porém, a evolução histórica dos EUA como país fez com que o Colégio Eleitoral jamais funcionasse da maneira que havia sido idealizada pelos Pais Fundadores. O primeiro problema foi que, conforme a população americana foi crescendo, cresceu também o número de cadeiras na duas casas do Congresso – porém não de maneira igual. Para se ter noção: a primeira Câmara dos Deputados, eleita em 1788, tinha 59 membros, enquanto o primeiro Senado teve 26. À época, isso significava que, no Colégio Eleitoral, os estados maiores detinham a maioria dos representantes, mas que os estados menores teriam um número de representantes além de seu tamanho. Hoje em dia, essa realidade é bem diferente: a Câmara americana atualmente elege 538 deputados, enquanto o número de Senadores é de 100. Ou seja: enquanto a proporção de Deputados para Senadores era de 2.27 em 1788, atualmente ela está 5.38. Em outras palavras: uma das principais razões de ser do Colégio Eleitoral – estabelecer uma overrepresentation dos estados menores de forma a preservar seus interesses – foi bastante enfraquecida com o passar do tempo.

Outro golpe à ideia do Colégio Eleitoral foram as emendas constitucionais que expandiram o Sufrágio: a 15ª emenda, de 1870, que estendia o sufrágio aos homens negros, após o fim da escravidão; e a 19ª emenda, de 1920, que concedeu o direito ao voto às mulheres. Como a participação popular direta na seleção do Colégio Eleitoral em cada estado aumentou muito, a maioria dos estados que ainda o fazia deixou de usar suas Assembleias Legislativas no processo. Desta forma, passou a fazer menos sentido cada estado ter regras individuais na eleição do Colégio Eleitoral.

Finalmente, há a questão da expansão da atuação do Governo Federal e a maior coesão dos Estados Unidos como país atualmente. Se em 1788 os EUA ainda eram um país extremamente fragmentado, mais um coleção de estados semi-independentes ligados por um fraco elo federal, hoje em dia há um sentimento muito mais forte de nação. Por consequência, impera menos a ideia de que o Governo Federal seja apenas um conciliador entre os interesses de cada estado, e cresceu a ideia de uma Presidência que vise servir aos interesses nacionais, de todos os americanos de costa a costa, como um todo.

Existe mais dois bons motivos para se pensar na abolição do Colégio Eleitoral. O primeiro é o fato de, ainda hoje, haver discrepância nas regras estaduais do sistema. Mais especificamente: dois estados – Maine e Nebraska – diferem do resto ao distribuir seus votos do Colégio Eleitoral com base na votação em cada um dos distritos eleitorais dentro do estado, ao invés de utilizar o sistema “winner takes all” dos outros estados. Isso significa que estes dois estados podem dividir seus votos do Colégio Eleitoral entre o candidato Republicano e o Democrata, como ocorreu em Nebraska em 2008, quando o estado concedeu quatro votos do Colégio Eleitoral ao Republicano John McCain e um ao Democrata Barack Obama; ou ainda este ano, quando Maine distribuiu três votos a Hillary Clinton e um a Donald Trump. Convenhamos: em pleno século XXI, em uma eleição que contempla o país inteiro, que visa eleger aquele que será Chefe de Estado de mais de 320 milhões de americanos pelos próximos quatro anos, o mínimo que se espera é que as regras do jogo sejam uniformes. Não faz sentido elas variarem dependendo da parte do país onde você mora.

O último motivo, por fim, nos traz de volta ao ponto inicial deste texto. E este é o fato de esse sistema deixar aberta a possibilidade de o candidato com menor número de votos país afora conseguir uma maioria no Colégio Eleitoral, corrompendo assim o princípio mais básico da democracia, que é a prevalência da vontade da maioria.  Até recentemente, isto havia ocorrido apenas três vezes na história americana, todas no século XIX: John Quincy Adams em 1824, Rutherford B. Hayes em 1876, e Benjamin Harrison em 1888. Apenas desde a virada do ano 2000, contudo, isto já ocorreu duas vezes: naquele mesmo ano, quando o Republicano George W. Bush chegou à presidência ao derrotar o Democrata Al Gore, apesar de este último haver obtido a maioria do voto popular; e, é claro, esta semana, quando Donald Trump derrotou Hillary Clinton mesmo sendo a escolha de um menor número de americanos. Em um clima político cada vez mais polarizado entre os dois grandes partidos, no qual a chance de haver eleições decididas por margens ínfimas do voto popular é cada vez maior, a ocorrência deste fenômeno pode vir a se tornar algo frequente. E existe apenas uma solução: descartar o Colégio Eleitoral de uma vez por todas para as páginas dos livros de história.

Beni Fisch Formado em ciência política e história pela Universidade McGill, e  mestre em Economia Política Internacional pela LSE 

[1] Para atualização em tempo real da contagem dos votos remanescentes: http://www.politico.com/2016-election/results/map/president

Beni Fisch

Formado pela Universidade McGill, no Canadá, onde fez graduação dupla em Ciência Política e História, seguiu seus estudos acadêmicos no Reino Unido, onde se formou Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics and Political Science. Trabalhou na área comercial e econômica do Consulado Britânico, e se envolveu com o braço de consultoria econômica da LSE durante sua passagem em Londres. Atualmente trabalha no departamento de comércio internacional da União Europeia. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2016 e 2018.
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