O destino da Europa novamente nas mãos da França

Neste domingo, quase 73 anos após o desembarque das forças aliadas nas praias da Normandia, naquele que ficaria conhecido como o Dia D, o futuro do continente europeu estará novamente selado ao destino da França. Após o primeiro turno da eleição presidencial, disputado no último dia 23, os franceses voltarão às urnas para decidir quem comandará seu país ao longo dos próximos cinco anos. E a ocasião será histórica: pela primeira vez na história da 5ª República, estabelecida em 1958 por Charles de Gaulle, nenhum dos dois candidatos a disputar o segundo turno de La Présidentielle pertence aos dois partidos tradicionais – o Partido Socialista, representando a centro-esquerda, e os Republicanos, representando a centro-direita. [1]

De um lado, há Emmanuel Macron: um ex-banqueiro que entrou na política há pouco mais de três anos para ser Ministro da Fazenda do impopular governo socialista de François Hollande, e que abandonou o posto há pouco mais de um ano para fundar seu próprio partido centrista, En Marche! (“Marchemos!” ou “Adiante!” em tradução livre). Do outro lado há Marine Le Pen, candidata pelo partido de extrema-direita Front Nationale (Frente Nacional), que até hoje teve seu melhor resultado nas urnas em 2002, quando Jean Marie Le Pen, pai da atual candidata, chegou ao segundo turno do pleito, perdendo então por uma margem de 82% a 18% para o candidato de centro-direita, Jacques Chirac.[2]

O ânimo nos mercados internacionais é de êxtase – a começar pelo fato de o pior cenário possível ter sido evitado: um possível segundo turno entre Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon, candidato do partido de extrema-esquerda La France Insoumise (A França Insubmissa). Mélenchon, que já havia se candidato em 2012 e ficado na quarta colocação, concorreu sob uma plataforma considerada economicamente irrealista até por setores tradicionalmente da esquerda francesa, que incluía um aumento de gastos de €173 bi ao longo dos cinco anos de mandato, redução da idade mínima de aposentadoria de 62 para 60 anos, redução da jornada de trabalho de 35 para 32 horas semanais, estabelecer uma alíquota de IR de 100% sobre rendimentos acima de €33.000 mensais, além do abandono por completo do uso da energia nuclear, que atualmente corresponde a 75% do uso no país.[3] Além disso, Mélenchon defendia uma política externa demasiado parecida com a de Le Pen (e de Donald Trump, diga-se de passagem), incluindo a retirada francesa da OTAN, uma “reavaliação” do papel do país na União Europeia, e uma aproximação com a Rússia cada vez mais autoritária e anti-liberal de Vladimir Putin. Mesmo com esta plataforma radical, inicialmente descartada por analistas por não ser realística para uma eleição presidencial, Mélenchon obteve uma alta vertiginosa nas pesquisas na reta final do primeiro turno, impulsionado por bons desempenhos nos debates televisivos, e terminou o pleito em quarto lugar, com quase 20% dos votos – não muito atrás dos líderes.[4]

Para atrás no primeiro turno também ficaram os candidatos dos partidos tradicionais da esquerda e direita francesa. François Fillon, conservador do partido Os Republicanos, era inicialmente apontado como favorito na corrida presidencial, concorrendo sob uma plataforma de oposição às políticas de elevação de gastos públicos do governo socialista de Hollande, e se declarando abertamente um admirador da ex-premiê conservadora britânica Margaret Thatcher. A candidatura de Fillon começou a descaminhar em janeiro, quando foi implicado em um escândalo de nepotismo e cargos fantasmas, no qual sua esposa teria sido paga €831.400 para desempenhar um cargo inexistente.[5] Em março, pouco mais de um mês antes do pleito, Fillon foi colocado sob investigação formal pelas autoridades francesas, e acabou terminando a eleição na terceira colocação.[6] Já Benoit Hamon, candidato da ala mais à esquerda do Partido Socialista, não conseguiu emplacar sua tática de “guinada à esquerda” para superar a impopularidade de François Hollande, e terminou o pleito em um distante quinto lugar, com pouco mais de 6% dos votos.

Agora, entrando na reta derradeira do segundo turno, às atenções do mundo voltam-se a Macron e Le Pen – dois candidatos que dificilmente poderiam ser mais antagônicos em suas posições, e que representam ao pé da letra o embate que a revista britânica The Economist definiu em 2016, pouco após o referendo britânico do Brexit e ainda antes da eleição de Donald Trump, como “o novo abismo político” mundial: não mais a tradicional divisão entre esquerda e direita, mas sim entre globalistas e nacionalistas, entre os que defendem a abertura e aqueles que defendem o isolamento.[7]

Le Pen representa fielmente o segundo campo. Apesar de ter atuado fortemente nos últimos anos para dissuadir a imagem fortemente racista que seu partido tinha previamente sob o comando de seu pai – especialmente o caráter antissemita (seu pai Jean Marie já chegou a questionar o Holocausto em diversas ocasiões)[8] – Marine Le Pen ainda mantém o viés altamente xenófobo do partido, tendo substituído o antissemitismo de seu pai cada vez mais pela islamofobia, especialmente após o deslanchar da crise de refugiados sírios. Além de defender o fechamento quase que completo das fronteiras francesas, tanto para imigrantes econômicos como refugiados, Le Pen defende a saída francesa da União Europeia e o retorno do franco como moeda nacional. Na prática, essa conversão implicaria no maior calote soberano da história. A dívida pública francesa, que ultrapassa os €2 trilhões, seria convertida da noite para o dia para francos – moeda a qual sofreria imediatamente da fuga de capitais do país e consequente desvalorização da moeda, resultando em um calote da maior parte desta dívida.[9] [10] Um choque econômico deste porte não afetaria somente a França (que além da desvalorização da moeda, sofreria com a alta vertiginosa da inflação, queda de investimentos, e consequente aumento do já elevado índice de desemprego), como também repercutiria em todo o continente europeu. Efetivamente, a retirada da UE e o colapso econômico da segunda maior economia da zona do euro implicaria não apenas o fim da zona do euro, como também o fim do projeto de integração europeu, iniciado em 1953, ainda sob as cinzas do pós-guerra, como tentativa de promover a paz no continente e evitar um futuro conflito transnacional ainda mais desastroso que a Segunda Guerra.

Este cenário desolador explica a êxtase de mercados internacionais – e, efetivamente, de todos aqueles que defendem um mundo aberto e integrado – com o desempenho de Emmanuel Macron, que superou Le Pen e conseguiu a primeira colocação no primeiro turno. Declaradamente centrista, liberal e árduo defensor da UE, da globalização e das instituições de governança internacionais, Macron é a exata antítese da onda nacionalista e isolacionista que tirou o Reino Unido da União Europeia, trouxe Donald Trump ao poder em Washington, e que ameaça colocar sua adversária Marine Le Pen no Palácio do Eliseu. Em termos econômicos, Macron propõem uma prudente combinação de austeridade, reduzindo gastos públicos em €60 bilhões ao longo de seu mandato e cortando 50.000 empregos públicos, de maneira a trazer o déficit orçamentário do país para abaixo de 3% (em linha com as exigências da zona do euro), com um programa de estímulo econômico de €50 bilhões, de forma a tentar reduzir o alto desemprego estrutural do país, que a tempos se recusa a baixar da casa dos 10%. Macron também defende abertamente a polêmica (porém absolutamente necessária) flexibilização das mundialmente famosas leis trabalhistas do país, além da maior integração econômica transnacional através de acordos de livre comércio como o CETA, com o Canadá, e o TTIP, com os EUA ; enquanto isso, Le Pen defende a mesma plataforma estatista do esquerdista Mélenchon, com redução da idade mínima de aposentadoria, manutenção das leis trabalhistas, além de intenso protecionismo econômico.[11]

Talvez até mais do que as questões econômicas, no entanto, há um outro motivo ainda maior para a euforia internacional com a possibilidade da eleição de Macron: a manutenção daquilo que é normalmente referido em inglês como “rules-based international system” – uma espécie de Estado de Direito do sistema internacional. Efetivamente, o maior risco apresentado pelas políticas radicais de Marine Le Pen é o gradual (ou, dependendo de sua força na presidência, não tão gradual assim) desmantelamento de um sistema internacional forjado ao longo das últimas quase sete décadas, que tinha como objetivo principal a promoção da paz após a carnificina da Segunda Guerra. Instituições como a ONU, OTAN, OMC , e a própria União Europeia (que nasceu durante o pós guerra de forma embrionária como a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) formam os alicerces de um sistema internacional que tem como norte o princípio de que existem regras às quais todos os países estão sujeitos, independentemente de seu tamanho ou força. A soberania nacional, integridade das fronteiras, e regras comerciais claras e transparente estão entre os princípios que, apesar de suas falhas, as instituições citadas acima conseguiram amplamente preservar ao longo da última metade do século XX e princípio do século XXI.

Caso Marine Le Pen consiga surpreender, desafiando as pesquisas que colocam Macron com mais de 60% dos votos no segundo turno, os maiores beneficiados seriam líderes autocráticos e anti-liberais como Vladimir Putin, na Rússia, Racep Erdogan, na Turquia, bem como o governo chinês.[12] Com o enfraquecimento da OTAN e potencial colapso da EU, líderes europeus perderiam a capacidade tanto militar como econômica de impor sanções a Putin por suas irresponsáveis ambições de expansão externa, que já vitimaram a Ucrânia e colocam sob constante ameaça os estados Bálticos, assim como a capacidade pressionar Erdogan, que distancia a Turquia cada vez mais da esfera ocidental. A China, por sua vez, veria-se ainda mais autorizada e reprimir suas minorias étnicas (especialmente no Tibete), suprimir o movimento pró-democracia em Hong Kong, e avançar nas disputas territoriais que ameaçam a estabilidade do leste da Ásia.[13]

Afortunadamente, as chances de Le Pen surpreender na reta final parecem ser ínfimas (apesar de a altamente respeitada consultoria internacional Eurasia discordar deste parecer). No último debate televisivo, realizado nesta quinta feira, Macron foi amplamente considerado o vencedor, o que pode aliviar o medo de que seus eleitores eram, pelo menos até então, considerados menos fiéis, mais voláteis, e menos propensos a comparecer às urnas do que os fervorosos seguidores de Le Pen.[14] O apoio vindo de todos os seus principais rivais de primeiro turno (à exceção de Mélenchon), assim como de diversos líderes e personalidades internacionais, incluindo diversos líderes europeus e até mesmo o ex-presidente americano Barack Obama, aumentam ainda mais o favoritismo de Macron. [15] [16] [17]

O mundo inteiro fica ansiosamente na torcida. Assim como o desembarque das praias da Normandia 73 anos atrás, o destino do sistema internacional de nações como nós o conhecemos depende disto.

Beni Fisch – Formado em ciência política e história pela Universidade McGill, e mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics

[1] https://fr.wikipedia.org/wiki/%C3%89lection_pr%C3%A9sidentielle_fran%C3%A7aise_de_2017

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/French_presidential_election,_2002

[3] https://www.theguardian.com/world/2017/apr/12/french-presidential-election-surge-far-left-candidate-melenchon

[4] https://www.ft.com/content/06776e2e-1902-11e7-a53d-df09f373be87

[5] http://www.bbc.com/news/world-europe-38840647

[6] https://www.ft.com/content/7f3d3894-08c6-11e7-ac5a-903b21361b43

[7] http://www.economist.com/news/leaders/21702750-farewell-left-versus-right-contest-matters-now-open-against-closed-new

[8] https://www.theguardian.com/world/2016/apr/06/jean-marie-le-pen-fined-again-dismissing-holocaust-detail

[9] http://www.nationaldebtclocks.org/debtclock/france

[10] http://www.tradingeconomics.com/france/government-debt-to-gdp

[11] https://www.ft.com/content/fb0ac974-2909-11e7-9ec8-168383da43b7

[12] http://www.reuters.com/article/us-france-election-idUSKBN18014H

[13] http://www.bbc.com/news/world-asia-pacific-13748349

[14] https://www.theguardian.com/world/2017/may/04/french-election-marine-le-pen-and-emmanuel-macron-trade-insults-in-tv-debate

[15] http://www.francetvinfo.fr/elections/presidentielle/fillon-melenchon-hamon-poutou-quelle-est-la-consigne-de-vote-des-neuf-elimines-en-vue-du-second-tour_2158950.html

[16] https://www.theguardian.com/world/2017/apr/24/great-for-europe-reaction-to-macrons-first-round-success-in-french-election

[17] http://edition.cnn.com/2017/05/04/politics/french-election-obama-endorse-macron/

Beni Fisch

Formado pela Universidade McGill, no Canadá, onde fez graduação dupla em Ciência Política e História, seguiu seus estudos acadêmicos no Reino Unido, onde se formou Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics and Political Science. Trabalhou na área comercial e econômica do Consulado Britânico, e se envolveu com o braço de consultoria econômica da LSE durante sua passagem em Londres. Atualmente trabalha no departamento de comércio internacional da União Europeia. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2016 e 2018.
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