Trabalho infantil e o “ensino” do Alcorão: o drama das crianças Talibés

No Brasil, uma grande referência para estudos sobre o trabalho infantil é Ana Lúcia Kassouf, professora da Esalq-USP. A partir dos trabalhos de Kassouf, foi possível conhecer melhor os principais fatores condicionantes da inserção de crianças no mercado de trabalho. Entre esses fatores estão a área de localidade da criança, o número de moradores no domicílio, o sexo do chefe do domicílio e o fato da mãe ou o pai (ou a pessoa responsável) da criança ter trabalhado durante a infância.

Mas o caso das crianças talibés de Senegal e de vários outros países da África Ocidental foge a qualquer literatura sobre o tema, e revela uma nova face do trabalho infantil, de uma “aparente tradição” que na realidade não se distingue em nada da escravidão. A situação dessa crianças é complexa e demorou muito a chegar ao conhecimento de grandes organizações internacionais, situação que só começou a ser denunciada a partir dos esforços do fotojornalista português Mário Cruz.

O termo “Talibé” que em árabe quer dizer “disciplina”, se refere aos alunos das escolas corânicas, que no Senegal são chamadas de “Daaras”. As Daaras recebem crianças de 5 a 15 anos de idade, com o objetivo de, ao menos em teoria, ensiná-las árabe e os preceitos do Alcorão. Mas o ensino dessas escolas, dirigido por líderes corânicos conhecidos como “marabus” parece não ser a principal finalidade – considerando as formas de ensino sem qualquer didática e estrutura que são adotadas – parecendo estar mais voltada em explorar o trabalho das crianças.

As crianças talibés são obrigadas a mendigar pelas ruas na maior parte do dia, mendicância que pode chegar até a 10 horas diárias, dependendo da “cota” exigida pelo mestre marabu. Além disso, os talibés ocasionalmente podem ser enviados para trabalhar nas propriedades dos marabus. O trabalho dessas crianças não costuma sofrer qualquer tipo de fiscalização por parte das autoridades senegalesas, o que leva a um contexto de grande abuso, em que as crianças são expostas a situações de risco sem possuir qualquer tipo de proteção.

O ensino do corão acaba sendo negligenciado, colocado em um espaço secundário tendo por base apenas uma repetição incessante de versos, sem nenhum tipo de explicação ou interpretação, algo que em nada ajuda na aprendizagem. Ainda existe toda uma questão referente a aplicação de severos castigos físicos, que estão incluídos nas poucas horas dedicadas ao estudo.

[caption id="attachment_14117" align="aligncenter" width="471"] Fonte: Mário Cruz[/caption]

Mesmo com todos esses problemas – desconsiderando a hipótese de tráfico infantil – existem milhares de crianças que todos os anos são entregues aos cuidados dos marabus. Isso ocorre devido a origem dos talibés, que são provenientes de famílias extremamente pobres, em sua maioria de tribos do interior do Senegal e de Guiné Bissau, que veem as Daaras como a única oportunidade de futuro para as crianças.

Segundo a Human Rights Watch, havia no Senegal pelo menos 50.000 talibés vivendo em Daaras no ano de 2010. Em 2016, o número de talibés tornou-se ainda maior. Assim, tem-se um ciclo vicioso, no qual famílias em situações de extrema pobreza entregam suas crianças para indivíduos dispostos a explorar trabalho infantil gratuito.

Esse ciclo resulta em uma gigantesca destruição de capital humano para o futuro, de milhares de crianças, que ao invés de estarem realmente aprendendo alguma atividade intelectual, são obrigadas a se especializar em mendicância, sendo expostas a diversas formas de exploração, que podem ir de castigos físicos a exploração sexual.

O futuro de grande parte dessas crianças é o de realizar trabalhos sem qualquer tipo de qualificação, o que fortalece a situação de pobreza das famílias e perpetua o drama das crianças Talibés.

  

Lucas Adriano

Mestre em Economia e bacharel em Ciências Econômicas na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Vindo de Ponte Nova (MG), cruzeirense e fã de observar a abordagem econômica sendo utilizada nos mais diversos assuntos. Espera um dia poder dar a sua contribuição para a Ciência Econômica.

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