Vanderley e Adelina: o mal que eles nos causam

Vanderley e Adelina torcem como São Paulinos e Corinthianos, mas seu cego amor é dirigido a partidos políticos (PSDB e PT, respectivamente). Ao contrário de torcedores esportivos, Vanderley e Adelina podem dizer que torcem vislumbrando um mundo melhor, com ideias em primeiro plano: ser tucano ou petista, ser de esquerda ou direita (ou centro), ser mais individualista ou coletivista, ou mesmo até, procurando nuances, ser algo entre polaridades, ajuda a fazer algo produtivo (convenhamos que torcer é um ato absolutamente pão-e-circo, já que dizer-se, por exemplo, corinthiano não quer dizer rigorosamente nada) vis-à-vis o mundo a nossa volta. Mas os acontecimentos dos últimos vinte e nove anos não nos permitem mais dizer com segurança que, no que tange a partidos, torcer para um dos dois mencionados seja aceitável.

Torcer já é altamente irracional e tóxico à política: torna o eleitor cego e maleável ao extremo. O torcedor é o primeiro na fila para tornar-se massa de manobra, para servir de palhaço nas ruas enquanto quem detém poder faz o que bem entende nos bastidores. Desde 2013 vemos marchas nas ruas de pessoas ora vestindo verde e amarelo, hora vestindo vermelho, e os torcedores partidários, os torcedores ideológicos (os grupos tendem a ter um overlap), saem às ruas com palavras de ordem e uma eterna vocação a pagar de trouxa. Vanderley e Adelina (esta, infelizmente, com muito mais panache e verve que seu conterrâneo tucano), como tantos colegas de causa, continuam acreditando, sem evidência, que seus partidos podem, com os quadros que têm, resolver os problemas do País.

O PSDB, já deve ter ficado claro, morreu como entidade política séria em 1997, quando Sergio Motta rondou o Congresso comprando votos para a reeleição de FHC para logo em seguida morrer. Motta era a variável que conseguia unir o partido e permitir que este atuasse politicamente com razoável sucesso sem que os monstruosos egos e as gigantescas ambições de seus principais caciques o devorassem. Sem ele, os tucanos tornaram-se a piada política que têm sido desde aquele fatídico ano. Com as novas revelações a respeito de Serra, Neves, Alckmin e sua trupe, é hoje impossível levar o partido e seus quadros e torcedores a sério. O máximo que temos espaço de dizer é que houve bons serviços prestados ao País e seu economia durante os oito anos de FHC e ponto final.

Antonio Delfim Netto certa vez observou que o PSDB é o único partido social-democrata do mundo que não possui vínculos com a classe trabalhadora de seu país. Uma típica jabuticaba. É um partido formado por intelectuais e partidários que, na melhor das hipóteses, possuem boas intenções. A classe trabalhadora, lá nos anos 70, filiou-se majoritariamente ao PT, o único partido trabalhista e (à época) de esquerda sério e significativamente grande que havia no Brasil. Também não era para menos, já que era um partido orgânico, formado em fábricas e no campo, que contava com algumas das mais famosas cabeças pensantes do Brasil. Ademais, ao contrário do PSDB, suas cabeças pensantes estavam aberta- e conhecidamente dedicadas a uma revolução socialista. Os tucanos, quando chegaram ao poder, promoveram uma tímida reforma social no Brasil remanescente daquele promovida pelos Trabalhistas na Nova Zelândia a partir de 1984. Seu premier, David Longe, assim como FHC, muito falava sobre as miríades questões sociais com as quais se preocupar; mas ao contrário dos Trabalhistas, os tucanos realmente botaram sua preocupações em práticas com programas bem feitos, como o Bolsa Escola.

O principal programa social dos tucanos, contudo, foi continuar com a ideia, posta em prática no Plano Real, do governo Itamar, que a inflação é a raíz de praticamente todos os problemas sociais do Brasil; se não for combatida com seriedade, todo e qualquer esforço no âmbito social será reduzido à pó. Foi o primeiro conjunto de políticos e intelectuais da esquerda brasileira que entenderam que a estabilidade da moeda é um problema não passageiro ou cosmético, mas fundamental; seu legado, em 100 anos, terá sido o de inculcar em pelo menos uma geração de brasileiros a inaceitabilidade de uma inflação acima de, digamos, quatro a cinco porcento.

Contudo, como já ilustrou o economista Marcos Fernandes (FGV-SP), o PT foi muito além. As já-citadas preocupações sociais entraram na agenda do governo de maneira bastante pública e o partido implementou uma agenda social no Brasil de uma maneira nunca antes vista. Lula, então presidente, realmente fez um esforço de relações públicas que a questão social no Brasil sempre merecera. Tanto ele quanto sua equipe (incluindo aí o mais lúcido dos petistas, Antonio Palocci) finalmente trouxeram à tona os benefícios de se levar a sério uma agenda social ampla que mirava não apenas a eliminação da miséria e da pobreza, como também a inclusão, em n campos, daqueles brasileiros que nunca foram incluídos em nada (com a exceção de estatísticas). Em 100 anos, é o que restará de seu legado.

O grande problema que tivemos desde 1995, com os governos FHC, Lula e Dilma, é que, apesar das preocupações econômicas e sociais, esses governos não incluíram em suas agendas públicas uma preocupação com o Estado de Direito (EdD). Houve, entendamos bem, avanços inegáveis nesse front, mas esses avanços vieram de políticas que não figuravam na faceta mais pública desses últimos três governos. Para ficarmos em um exemplo, o governo Lula nunca discutia publicamente a questão da corrupção com a verve e disposição com as quais discutiu a eliminação da fome; contudo, ainda no primeiro mandato, o governo Lula passou uma de suas mais importantes medidas, onde a Polícia Federal, pela primeira vez na história, passou a ter poderes, fundos e deveres que se esperaria, em países mais sérios, de uma instituição como a PF. Os resultados dessa política, levada a cabo com a inestimável ajuda de Márcio Thomas Bastos, teve um efeito benéfico que, dada a corrupção no Brasil, será um dia calculado como inestimável.

Mas uma coisa é dar esteróides a Polícia Federal; é outra coisa propositalmente avacalhar o EdD. Este, como bem se sabe tanto em Economia quanto em campos como Sociologia, é crucial para aumentar a prosperidade de um País (elemento necessário para aumentar o bem estar da população). Não há um só exemplo de um país onde não haja o bom funcionamento do EdD mas, ao mesmo tempo, haja uma significativa melhora do bem estar da população a longo prazo. E é aqui que o bicho pega: como bem podemos ver no Brasil, se o EdD é avacalhado a cada oportunidade, qualquer melhora na situação da população, em especial os mais pobres, só pode ser de curta duração.

O grande problema dos anos FHC com relação ao EdD foi o governo ter silenciosamente ignorado ou engavetado todos os casos de corrupção que assolavam o Brasil. Ao mesmo tempo em que passava medidas sérias e fundamentais (como a criação do Copom), tratava mutretas como o Banestado como meros inconvenientes, enquanto deixava de dar ao Ministério Público Federal e a PF os poderes necessários (que a Constituição não dava) para que melhor combatessem a corrupção. E essa -livre, leve e solta como sempre- nos impedia de nos tornarmos um país sério e mais próspero.

É aqui que há uma separação gritante entre Vanderley e Adelina. O primeiro entendeu, durante o episódio do Mensalão, que não adiante ter cem Bolsas Famílias acontecendo se a Lei não valer nada. Adelina, durante esse mesmo episódio, só conseguia reclamar que quem acusava José Dirceu (entre outros) de corrupção não conseguia produzir uma prova cabal como um recibo onde Dirceu assinava embaixo. Vanderley, mais pé no chão que Adelina, entendeu que não existe corruptor ou corrompido no mundo que emita recibo ou nota para uma transação ilícita.

Mas o Mensalão foi peanuts comparado ao Petrolão, hoje sob os holofotes no contexto muito maior da Operação Lava Jato. E essa veio junto a maior recessão da história do País, que é resultado de dois governos (Lula II e Dilma I e II) que não entenderam verdades fundamentais sobre economia:

  1. O aumento da disponibilidade de crédito, junto a um aumento do salário mínimo muito maior que o aumento da produtividade, só podem resultar em inflação e desemprego.
  2. A inflação é o maior concentrador de renda, e o mais injusto imposto, de qualquer País.
  3. Uma política de campeões nacionais resulta sempre em rent-seeking e captura regulatória.

Nada disso deveria ter sido novidade, mas desde pelo menos 2008, Lula, Dilma, o PT e as Adelinas desse Brasil sempre viraram às costas a essas verdades, sob o argumento espúrio, infantil e ridículo de que querer o melhor para o Povo é igual ao povo ter, a longo prazo, o que é melhor para ele. Então, se a maioria dos brasileiros faltava acesso a transporte, linha branca, tênis, serviços básicos de saneamento e saúde, viagens domésticas e internacionais, entre outros tantos exemplos, então valia tudo, inclusive ignorar os básicos da Economia, para facilitar esse acesso.

Valia, por exemplo, comprar o Congresso, no mais flagrante desrespeito à normas democráticas desde o Golpe de 1964. (Adelina, desde o impeachment de Dilma, reclama que seu voto foi desrespeitado, mas não abriu o bico na época do Mensalão para reclamar do que, se seguirmos sua narrativa de “golpe”, foi basicamente a mesma coisa, senão pior.). Valia proibir a competição nas mais diversas áreas da economia através do empréstimos do BNDES e políticas públicas amigas de empresas e empresários bastante específicos. Os resultado disso -uma diminuição na oferta e na qualidade de bens e serviços, junto a um aumento de preços- é conhecido há décadas, assim como o são os efeitos de cartelização, como vistos no metrô de São Paulo (o maior reduto tucano do País). Os resultados que vemos agora no Brasil (como já foram vistos em outras épocas em países socialistas como a já-citada Nova Zelândia do pré-’84) farão parte da vasta coleção de informações e estudos a respeito de políticas desenvolvimentistas que se tem desde que o desenvolvimentismo, essa fracassada escola de pensamento econômico, vem sendo praticado.

O conjunto da obra que temos de Brasil data de pelo menos 1889. É óbvio que houve períodos distintos no Brasil desde a República (é difícil comparar o Estado Novo com o governo Sarney, por exemplo), mas o fator comum é que insistimos em ter uma parcela da população, e principalmente da academia e da intelligentsia, que categoricamente recusa-se a aprender com erros passados. Não porque lhes falta poderes cognitivos para isso, mas porque sua visão de mundo e seu insaciável desejo de nunca pôr os pés no chão continuamente nos traz de volta a mediocridade e ao terceiro-mundismo.

Vanderley certamente tem culpa no cartório: o PSDB pode ser o partido inábil que é, lar de sarrafaçais dos mais diversos, que nosso amigo continuará a lacrar 45 a cada dois anos. A depender de dele, teremos para todo sempre asnos como Geraldo Alckmim fazendo monotrilhos intermináveis Brasil afora e Aécios mandando matar delatores. A única tábua de salvação que tem Vanderley nessa história toda é que, entendendo a importância de fazer contas, nunca sabidamente escolheria para lhe representar pessoas que não entendem que a política econômica que se pratica no Brasil desde 2008 só pode resultar em pobreza (quando não miséria), desemprego e, o pior de tudo, inflação. Vanderley pode cometer o erro político que for, mas nunca ajudará um projeto de poder que prefira ideias obsoletas e tóxicas.

Adelina é outra história. Ela, como outras pessoas de fé que abundam neste mundo, não se interessa por fatos ou evidência. Se qualquer um mostrar a ela, por A + B, que aumentar o salário mínimo por treze anos numa média sempre muito acima do aumento da produtividade só pode resultar em inflação e desemprego, ela simplesmente virará as costas dizendo que isso não pode ser pois ela não acredita que o mundo funcione assim. Se aumentar o salário mínimo permitir ao seu vizinho comprar um novo tênis, mesmo que no futuro ele fique desempregado e miserável, Adelina apoiará tal aumento sem pestanejar. Seus ideias à prova de fatos não lhe permite ter os pés no chão e o resultado disso é o desemprego e talvez a pobreza de seu conhecido.

Adelina, no final das contas, é o tipo de pessoa, ao contrário de Vanderley, que acredita que o fracasso de uma ideia (o aumento do salário mínimo como descrito acima, o socialismo, o comunismo, a chegado do Paraíso na Terra, etc.) não deva significar seu abandono. Isso poderia ser chamado de loucura (como a que acomete crentes que acham, há milhares de anos, que o Messias está para chegar a qualquer momento), mas a dita cuja diria que trata-se apenas de insistência em finalmente acertar os pormenores de uma ideia genial. Se dependesse dela, os coletivistas do século XX poderiam matar (hoje) mais 67.5 milhões de pessoas que a ideia continuaria válida.

Vanderley, mais pé no chão, talvez hoje entenda que a última coisa da qual o Estado de São Paulo precisa é Geraldo Alckmim. Tendo observado o governo do mais famoso cidadão de Pindamonhangaba, Vanderley talvez opte, nas próximas eleições, por alguém menos incompetente e ladrão. O seu problema jáz em achar que esse alguém trabalhe hoje no PSDB. Pelo que se tem observado na Lava Jato, os quadros principais do PSDB parecem mais preocupados com outras coisas. Vanderley, então, continuará a ajudar o Estado de São Paulo a continuar patinando na sua suposta glória econômica por mais 25 anos.

Adelina apresenta um problema substancialmente maior. Ela realmente acredita não só que o PT quer e trabalha pelo bem do povo, mas que pessoas como Lula e Dilma também o fazem. Adelina, em sua imensurável fé, estaria disposta a repetir os mesmos erros que cometidos nos treze anos do PT no poder não para melhorar a vida de ninguém, mas pela oportunidade de dizer que quem está no poder proclama ter os interesses do povo no coração. Isso é outra magnitude de ignorância que aquele demonstrada por seu colega tucano.

A depender de nossa colega, teríamos quantos Mensalões e Petrolões fossem, segundo ela, necessários. Na verdade, esses episódios pouco importam. Teríamos inflação de 80% ao mês, um estado que custasse 84% do PIB, Joesleys Batista em todos os setores da economia e desemprego de 60%. Tudo isso seria totalmente aceitável porque, no final das contas, indisposta a abandonar narrativas e ideias fracassadas, Adelina poderia sempre repetir o mantra de seu grande herói: tudo, absolutamente tudo, é culpa das elites.

Vanderley e Adelina, na sua condição de torcedores, fazem um enorme mal ao País e seus habitantes. Fariam um enorme serviço ao Brasil se se abstivessem da vida política nacional. É por causa de pessoas como eles que, atônitos, assistimos ao espetáculo que vemos hoje na TV e na internet. É por causa deles que Geraldo Alckmim pode fazer seu governo latsimável, José Serra pode levar rios de dinheiro por serviços não prestados, Lula pode pelo menos tentar fazer um governo autoritário comprando funcionários públicos, empresários como Eike Batista podem se enriquecer fazendo apresentação de Power Point e os irmão Batista podem passear em Nova Iorque enquanto investigados. Por causa de Vanderley, Adelina e os milhões de brasileiros que são iguais a eles, o dinheiro público é entendido como privado e nós continuamos a ser profundamente subdesenvolvidos. Se quisermos ter menos corrupção, menos pobreza e miséria e um menor número de voos de galinha, Vanderley e Adelina (mas principalmente esta última) precisam ou crescer ou deixar de causar tantos estragos.

Rafael Kasinski

Formado em composição popular pela Berklee College of Music, Boston, EUA, é produtor musical, vocalista, locutor e ex-baterista. Está atônito de ainda poder publicar no Terraço Econômico. Interessa-se principalmente pela (falta de) racionalidade no discurso público e na vida individual das pessoas. Deu aula durante anos e ficou muito mal impressionado com as decisões que cidadãos tomam, ou deixam de tomar. Ocasionalmente discute música, em especial Prince e King Crimson e a importância de dançar.
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