A ciência econômica, assim como as demais disciplinas, se propõe a compreender a realidade. Ouvi um professor dizer que “se fossemos capazes de enxergar a realidade tal como ela é não haveria a necessidade de fazermos ciência”. Em termos kantianos, é preciso investigar “o que é” e não “o que deveria ser”, tendo em mente os limites da própria razão humana. Ao preocupar-se com “o que deveria ser”, o economista, ingenuamente, abdica de uma de suas principais responsabilidades, contar “o que é”. Essa responsabilidade exige o exercício da virtude de um comunicador, ou conforme a segunda definição do dicionário Michaelis para a palavra [1], de um “profissional que cria e/ou transmite mensagens”. Ao fazê-lo, o economista-comunicador relega a ingenuidade para ir além da teoria, além dos dados, e se engajar na disputa entre narrativas econômicas.
Umas dessas disputas pode ser observada na Itália, enquanto a economia europeia ainda enfrentava o pânico dos mercados durante a Grande Recessão. Em 2011, Mario Monti foi alçado ao cargo de primeiro-ministro [2]. Um proverbial príncipe do cavalo branco, visto como economista técnico e de alto nível [3], ele já havia sido nomeado senador vitalício pouco tempo antes, o que possibilitou sua ascensão ao cargo primeiro-ministro mesmo sem passar por uma eleição popular. Enquanto premiê, Monti optou por acumular também a função de ministro da economia e finanças. Tal cenário, embora incomum, aparentemente levou à salvação da pátria italiana, o spread entre os títulos do tesouro italiano e os títulos do tesouro alemão caiu, não houve colapso fiscal; em suma, uma tragédia grega fora evitada. Porém, a narrativa desses eventos não foi recebida inconteste, economistas keynesianos argumentaram em favor da quebra da dinâmica dos spreads antes mesmo das intrincadas manobras políticas que elevaram Mario Monti à posição de primeiro-ministro. Assim sendo, sua nomeação era caracterizada por uma relação simbiótica entre as expectativas dos mercados e a tão necessária estabilidade econômica representada por ele. Ao assumir o posto, Monti adotou medidas econômicas congruentes com as expectativas estabelecidas pela narrativa vigente, sacrificando o consumo e estabelecendo as bases de uma próxima crise, na visão dos keynesianos, para distanciar a nação italiana do frenesi iminente.
Robert J. Shiller, laureado com o Nobel de Economia em 2013, oferece uma interessante reflexão sobre narrativas [4]:
“Alguns têm sugerido que as histórias são o que mais nos distinguem dos animais, e até mesmo que nossa espécie seja chamada Homo narrans ou Homo narrator ou Homo narrativus dependendo de qual latim nós usemos. Seria essa uma descrição mais precisa do que Homo sapiens, homem sábio? Ou podemos dizer ‘narrativa é inteligência’, com todas suas limitações? É mais prestigioso pensarmos em nós enquanto Homo sapiens, mas não necessariamente mais preciso.” (tradução do autor)
Outro exemplo, um dos mais emblemáticos, de uma narrativa econômica [5] é a curva de Laffer. O diagrama, cujo nome vem do economista Arthur Laffer, demorou alguns anos para ganhar notoriedade. Entretanto, o conceito acabou popularizando em 1978, com o artigo do jornalista americano Jude Wanniski. Seu texto retratava um jantar entre Laffer e dois figurões do alto escalão do governo americano. Em um guardanapo de pano, Laffer teria desenhado seu diagrama que representava uma ideia simples: com uma tributação de 0% sobre a renda o governo não arrecadaria. Com uma tributação de 100%, também não. Afinal, as pessoas não trabalhariam caso toda sua renda fosse tomada pelo governo.
A curva de Laffer. Via ProMarket [6].
Wanniski sugeriu que os EUA se encontravam no lado direito da curva e que o corte de impostos traria novo fôlego à economia americana. O curioso é que tal afirmação não tinha base estatística alguma, pelo contrário, economistas proclamavam que se tratava de uma falácia. O conceito atingiu seu auge de popularidade em 1980, conforme Shiller explica:
“A curva de Laffer deve muito de seu contágio ao fato de que era vista como justificativa para grandes cortes de impostos. O contágio [da curva de Laffer] era ligado às mudanças políticas fundamentais associadas com a eleição de Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos, ao seu comprometimento com o corte de impostos.” (tradução do autor)
Frequência de aparições da curva de Laffer por ano. Considerando noticiários e jornais, à esquerda, temos a porcentagem do total de artigos que citam a frase “Laffer Curve” em cada ano. Considerando livros, à direita temos a porcentagem de ocorrências da “Laffer Curve” registradas no banco de dados de cada ano. Via ProMarket [7].
Paul Romer, economista-chefe do Banco Mundial, afirmou em um dos memorandos [8] da instituição que “pessoas progridem através da descoberta e compartilhamento de ideias úteis. O valor de uma ideia é proporcional ao número de pessoas que a usam.” (tradução do autor). Enquanto a segunda parte de sua fala me parece óbvia, o que não diminui seu brilhantismo, prefiro me atentar à primeira parte. Considerando as narrativas econômicas, levanto o seguinte questionamento: Cui bono? Útil para quem?
O conhecimento de determinada área não se torna estável apenas através de fatos e evidências, mas também por meio da dispersão de ideias e da criação de comunidades em seu entorno [9]. Um dos pontos questionáveis [10] do próprio Banco Mundial é justamente esse: cerca de 87% de seus relatórios produzidos nunca foram citados. Mais de 31% nunca foram ao menos baixados. O caso remete à história do astrônomo e matemático grego, Aristarco de Samos. O nome lhe é familiar? Presumo que não. Ele é apontado como um dos pioneiros da hipótese heliocêntrica, uma das hipóteses mais importantes de todos os tempos e que viria a ser desenvolvida por Copérnico mais de 1500 anos depois. Na época de Aristarco, o sistema geocêntrico era a narrativa dominante. Um de seus principais defensores? Aristóteles. A dominância ou não de determinada narrativa pode influenciar diretamente nas compreensões vigentes da realidade. O “progresso das pessoas” pode ser comprometido por narrativas pautadas em “mentiras bem contadas” (Se non è vero, è ben trovato) ou, para utilizar um cliché pós-moderno, fatos alternativos.
O economista ingênuo tende a tentar compreender seu meio em termos morais, mas a disputa entre narrativas irá força-lo a se deparar com diferentes perspectivas e trade-offs. As narrativas econômicas podem ser observadas em inúmeras épocas e contextos, raramente oferecendo conclusões absolutas, tal qual é a natureza humana. A própria ciência econômica está sendo forçada a enfrentar uma quebra de paradigmas, mas isso é uma discussão para outra oportunidade.
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