Tempo e silêncio: as sentenças do tribunal virtual

A cada semana, (pelo menos) um novo escândalo. Na política, na arte, na vida cotidiana do transporte público, em toda parte. Amplificado pelas redes sociais e sua lógica de reprodução instantânea, o escândalo da vez passa a ser escrutinado a torto e a direito, sendo alvo não de opiniões, impressões e comentários preliminares, mas verdadeiros pareceres e sentenças, proferidos como se fossem definitivos e as únicas possibilidades minimamente sensatas e racionais.

Como se constitui esse verdadeiro tribunal virtual? Como somos pressionados, a todo momento, para dar respostas, expressar opiniões, professar pareceres e prolatar sentenças? Esse texto é uma mistura de resposta, desabafo e confissão de estafa.

Trivialidades virtuais

Comecemos pelo óbvio: vivemos na era digital. O mundo está virtualmente conectado e esse processo só tende a se fortalecer, com ampliação do acesso a mais e mais usuários ao redor do planeta. Duas consequências claras decorrem desse processo.

As distâncias espaciais estão se dissolvendo. Com um clique, conseguimos entrar em contato com alguém do outro lado do mundo ou acompanhar em tempo real o que se passa numa rua a mais de dez mil quilômetros de distância. Naturalmente, isso não implicou um esmorecimento das fronteiras: pelo contrário, as tensões geográficas estão cada vez mais expostas.

O tempo também foi impactado pela chamada revolução digital. Nossa percepção de seu andamento, seu curso, está cada vez mais acelerada. Isso porque avanços tecnológicos reduziram o tempo de realização de praticamente tudo o que nos circunda – digitar este texto no computador é mais rápido do que escrevê-lo à mão, viajar de avião é mais rápido do que de trem, navio ou a cavalo, enviar um e-mail é mais rápido do que enviar uma carta, etc.

O tribunal de imediatismos

Essa aceleração produz diversos efeitos, dentre os quais destaco a cobrança permanente de reações instantâneas de nós a cada instante. Se o tempo de comunicação foi reduzido a frações de segundos, essa regra também se aplica à expectativa por respostas – por outros atos de comunicação numa mesma cadeia discursiva.

Ora, se precisamos responder imediatamente, de bate-pronto, não temos tempo para pensar, somos obrigados a nos virar com o que temos à mão, ou seja: respondemos com o conhecimento prévio que já temos, reforçando pré-conceitos e repetindo opiniões consolidadas. Isso porque, para que possamos dizer algo diferente do que já sabemos, precisamos de tempo: é preciso recusar o ímpeto de falar imediatamente para abrir espaço à reflexão, à reconsideração, à (auto)crítica.

Mas é justamente isso que não está disponível para nós no mundo virtual-digital. Sob a ameaça de perder o bonde, ficar para trás, ficar de fora (que alimentam o “FOMO”, fear of missing out ), somos pressionados a não hesitar e a nos pronunciar. Pronunciar-se agora e, além disso, pronunciar-se sempre. Porque não basta sermos privados, somos também privados do direito de permanecer calados. Afinal, a cada vez que nos manifestamos sobre algum assunto, estamos sujeitos a cobranças do tipo “mas onde é que estava tanta indignação semana passada, quando aconteceu x? Não vi você se manifestar sobre isso!”

Em suma, pressionados a nos manifestar sobre tudo a todo instante, num instante, a corte está armada: sentamo-nos na posição de magistrados, nos altos bancos de nossa pilha particular de conhecimentos, impressões, preconceitos sedimentados, em prontidão para julgar, num rápido golpe de martelo, qualquer novo caso que o mundo jogue em nossas mãos – ou ao alcance de nossos olhos.

Consequências

Quais os efeitos do tribunal virtual? Não pretendo exauri-los aqui, mas vejamos alguns.

  • Reforço e repetição de opiniões prévias: como dito acima, a pressão do imediatismo é inimiga da pausa e da reflexão necessárias para mudar de opinião e adquirir novos conhecimentos – some-se a isso o viés de confirmação e bolha dos algoritmos das redes sociais e temos um coquetel potente;
  • Acirramento da polarização: já que não há espaço para dúvida e hesitação (que abrem as portas à reflexão e ao reexame, proibidos pela pressão do imediatismo), as opiniões-sentença são formuladas de maneira taxativa, extrema e – não raro – agressiva;
  • Pretensos especialistas em tudo: novamente, as configurações do “diálogo” no tribunal virtual fazem com que assumamos um tom de palavra final sobre o assunto, como se qualquer opinião divergente fosse pura irracionalidade, como se fôssemos grandes especialistas em…bem, qualquer que seja o assunto da vez – uma arrogância disseminada.

Como dito logo de saída, esse texto é uma mistura de diagnóstico, desabafo e estafa. Não pretendo aqui ter esgotado o assunto, longe disso, mas apenas provocar uma reflexão. Além disso, peço que reparem na voz do texto: usei repetidas vezes a primeira pessoa do plural, nós. Reconheço-me e me incluo no fenômeno que descrevi aqui, e meu incômodo é, antes de mais nada, direcionado a mim mesmo, num esforço de – novamente – (auto)crítica e reflexão.

Às vezes, o que mais nos falta é tempo para refletir e, durante o processo, silencio para melhor pensar.

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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