O ambiente caótico da pandemia global, a covid-19, tem provocado distúrbios profundos no funcionamento da economia, forçando os governos do mundo todo e a sociedade civil organizada a dar uma resposta à altura, no sentido de prover políticas públicas para amenizar os impactos sobre a produção, consumo e renda da sociedade. As atividades econômicas vinculadas ao comércio e ao setor de serviços foram severamente afetadas pela interrupção de suas atividades, forçando empresas a adiar investimentos e demitir milhões de trabalhadores formais e informais. A “invisibilidade” da parcela de trabalhadores e autônomos que vivem na informalidade se tornou mais evidente, na medida em que não foi possível captar por meio dos cadastros disponíveis parte do público alvo elegível para o conjunto de políticas direcionadas.
No caso brasileiro, um conjunto de políticas públicas foram traçadas, subitamente, para ampliar as redes de proteção social, mediante a concessão de linhas de crédito subsidiado para financiar folhas de pagamento e capital de giro, a redução de jornadas combinadas com auxílio desemprego e transferências de renda direta para nichos vulneráveis da sociedade. Entre o final de março e início de abril se iniciou no Planalto e no Congresso uma longa, e por vezes acalorada, discussão sobre uma renda emergencial para os brasileiros vulneráveis, instituída com o Programa de Auxílio Emergencial (Lei Nº 13.982/2020), alocando um volume significativo do orçamento público: o valor empenhado é de R$ 254,24 bilhões alcançando mais de 65 milhões de brasileiros, isto é cerca de 49,9% de todo gasto público do combate ao covid-19 (Tesouro Nacional, 2020).
A grandeza do programa, aliada à curiosidade dos pesquisadores, fez com que em 01 de junho de 2020 o governo federal respondesse às demandas da lei de acesso à informação com dados cadastrais, referentes à 22/abril, de mais de 50 milhões de brasileiros desagregados para os 5.570 municípios brasileiros, informando a origem por tipo de cadastro (Bolsa Família, CadÚnico e Aplicativo) e segmentado para os dois últimos grupos, o montante de beneficiários com R$ 600,00 e com R$ 1.200,00. A partir destes dados, um conjunto de indagações sobre avaliação de políticas públicas buscaram ser respondidas no “Estudo de Avaliação do Programa de Auxílio Emergencial: Uma Análise sobre Focalização e Eficácia à Nível Municipal”, de autoria de quem também assina este artigo: Ecio Costa, Ph.D. em Economia e Professor do PIMES/UFPE, e; Marcelo Freire, Economista e Gerente de Desenvolvimento Econômico do Governo de Pernambuco.
AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
A avaliação de políticas públicas não é um exercício trivial. Em primeiro lugar, existem três dimensões de análise da performance: (1) eficiência – relação custo/benefício; (2) eficácia – alcance das metas; e (3) efetividade – resultados duradouros e significantes para a sociedade. Em segundo lugar, a possibilidade de avaliação de uma política tem que vir desde o seu desenho conceitual, com indicadores bem definidos, um acompanhamento de evidências confiáveis de sua evolução, e um marco lógico capaz de delimitar o público-alvo elegível e concatenar insumos, atividades, produtos e impactos dos projetos com os objetivos de longo prazo de um programa de governo.
Dessa maneira, o estudo analisa a composição e aplicação destes recursos para os municípios brasileiros, buscando, no primeiro momento, dimensionar os valores em relação ao tamanho da economia e rendimentos do trabalho e responder se a focalização foi progressiva, isto é, se os municípios menos desenvolvidos foram os mais beneficiados. No segundo momento, o objetivo do estudo consiste em apresentar dois componentes de grande impacto na eficácia do programa, que dizem respeito a capacidade de acesso do cadastro pela internet e ao uso dos recursos mediante uma rede bancária acessível.
DADOS DESCRITIVOS: COMPOSIÇÃO REGIONAL DO PROGRAMA
O estudo verifica um padrão de distribuição de beneficiários e recursos com Norte e Nordeste tendo mais recursos cadastrados pelo Bolsa Família, enquanto que o Sul, Sudeste e Centro-Oeste tiveram uma participação maior dos cadastros provenientes do Aplicativo.
Alguns fatores ajudam a explicar essa estrutura de beneficiários. Em primeiro lugar, Norte (35,6%) e Nordeste (36%) detêm quase o dobro do percentual de sua população sem acesso à internet do que Sudeste (18,9%) e Centro-Oeste (18,5%). Em segundo lugar, mesmo que a taxa de informalidade das economias do Norte-Nordeste seja maior, os 11 Estados do eixo Centro-Oeste, Sudeste e Sul detêm 58,8% dos trabalhadores informais do Brasil, mais de 21 milhões de pessoas. Portanto, o que explica o padrão do eixo Centro-Oeste, Sudeste e Sul é a combinação de maior acesso à internet com maior fatia da informalidade do país, contrapondo-se ao eixo Norte-Nordeste, que herda sua ampla base cadastral em programas sociais do governo federal.
DIMENSÃO ECONÔMICA E FOCALIZAÇÃO DO PAE
No âmbito da dimensão econômica do programa, é possível verificar a importância do programa para as economias do Norte e Nordeste. O volume estimado para todos os Estados do Nordeste é superior ao dobro do peso nacional, algo verificado também, em proporção similar, quando comparado a partir da massa de rendimentos do trabalho.
Os dados municipais evidenciam essa tendência pelo fato de que 80,4% dos 1.709 municípios com peso equivalente a 10% ou mais do PIB estão localizados no Nordeste. Em termos de focalização do programa é observado que, em termos regionais, a política foi progressiva, isto é, para cada aumento de 1% na proporção do PAE no PIB, ocorre por conta de uma queda de 7,1% no IDH do município, assim como de um aumento de 2% no IVS e 1,26% na população vulnerável à pobreza do município. Isto indica, com significância estatística, que regiões mais pobres e menos desenvolvidas foram as mais beneficiadas pelo PAE.
DESAFIOS À EFICÁCIA DO PAE: ACESSO À INTERNET E REDE BANCÁRIA
Dois elementos que impactam na eficácia do programa e foram objetos de estudo, dizem respeito à taxa de acesso à internet e à disponibilidade da rede bancária credenciada para saques dos recursos. Estados com maior taxa de acesso à internet registraram maior participação dos beneficiários por aplicativo na composição dos recursos.
No outro extremo, cerca de 2,9 milhões de beneficiários residem em municípios sem a presença de agências da Caixa Econômica Federal ou Lotéricas. Os municípios mais severamente afetados estão nas regiões Norte e Nordeste. Há, portanto, um descasamento entre maior concentração de recursos disponíveis com o baixo número de possibilidades de acessos aos recursos. Vale salientar, que a ausência de uma rede bancária cria um custo de deslocamento para a população realizar os saques, inclusive com possíveis repercussões de insegurança, assim como cria externalidades negativas para estas regiões desassistidas, na medida em que diminui a probabilidade de que os recursos sejam gastos na localidade.
Em que pese o estudo utilizar dados preliminares do cadastro do PAE, seus resultados emergem um conjunto de possibilidades para estudos posteriores. Em primeiro lugar, na medida em que os dados do cadastro se consolidarem com os números de fechamento do PAE, será oportuno saber qual o volume dos recursos virtualmente disponibilizados e comparar com o efetivamente gasto, verificando se a rede bancária ou fatores socioeconômicos exerceram alguma influência sobre a efetividade do uso dos recursos. Em segundo lugar, na medida em que se disponibilizarem dados sobre a variação da massa de rendimentos e do PIB, ao longo do período de ápice e estabilização do COVID-19, em que grau o auxílio emergencial foi efetivo em reduzir a perda dos rendimentos, do consumo e de impostos. Em terceiro lugar, com os dados consolidados por indivíduos, avaliar se os critérios de elegibilidade foram atendidos, estimando o alcance da política pública.
Link para o artigo completo no Research Gate: https://www.researchgate.net/publication/343015955_ESTUDO_DE_AVALIACAO_DO_PROGRAMA_DE_AUXILIO_EMERGENCIAL_UMA_ANALISE_SOBRE_FOCALIZACAO_E_EFICACIA_A_NIVEL_MUNICIPAL
Ecio Costa – @eciocosta
Graduado em Economia pela UFPE, com M.S., PH.D. e Pós-Doutorado pela University of Georgia. Professor Associado III do Departamento de Economia e Pós-Graduação em Economia (PIMES) da UFPE. Autor de mais de 50 artigos científicos e 10 livros na área de economia. Colunista da CBN, Grande Rio FM e Diário de Pernambuco.
Marcelo Freire – @marcelofreireeconomia
Formado em Economia pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e atuando como Gerente de Desenvolvimento Econômico na Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (SDEC-PE). Desenvolve análises de conjuntura e assessoria na área econômica, com foco no mercado de trabalho, competitividade setorial e políticas públicas.