Nobel 2007: Leonid Hurwicz, Eric Maskin e Roger Myerson | por Maurício S. Bugarin

Nobel 2007: Hurwicz, Mayerson, Maskin e os fundamentos do Desenho de Mecanismos

“Dicebat Bernardus Cartonensis nos esse quasi nanos, gigantium humeris incidentes, ut possimus plura eis et remotiora uidere, non utique proprii uisus acumine, aut eminentia corporis, sed quia in altum subuehimur et extollimur magnitudine gigantea”  [2]

João de Salisbúria – Metalogicon, Liber Tertius, cap. IV, 1159.

Em 12 de outubro de 2020 o Professor Göran K. Hansson, Secretário Geral da Academia Real de Ciências da Suécia anunciou que o Prêmio Nobel de Economia desse ano seria outorgado aos professores Robert Wilson e Paul Milgrom por seus desenvolvimentos em teoria dos leilões e pela invenção de novos formatos de leilões [3]. Assim como a frase atribuída a Bernard de Chartres no século 12, e depois tornada famosa por Isaac Newton [4] no século 17, as grandes contribuições de Wilson e Milgrom foram possíveis por estarem sentados sobre os ombros dos gigantes John Harsanyi, John Nash, Reinhard Selten, Leonid Hurwicz, Roger Myerson e Eric Maskin.

Se Nash, Selten e Harsanyi estabeleceram os fundamentos de Teoria dos Jogos, que lhes renderam o Prêmio Nobel de Economia de 1994, Hurwicz, Myerson e Maskin utilizaram essa teoria para estabelecer os fundamentos da Teoria de Desenho de Mecanismos, que lhes valeu o Prêmio Nobel de 2007. Este ensaio primeiramente apresenta a Teoria do Desenho de Mecanismos e, em seguida, discute duas aplicações práticas dessa teoria. 

Teoria: Desenho de Mecanismos [5]

De forma geral, a Teoria de Desenhos de Mecanismos busca entender os incentivos com os quais se defrontam os agentes tomadores de decisão (sejam eles consumidores, empresas, países, organizações não governamentais, políticos etc.) e, levando em conta esses incentivos, construir regras de alocação de recursos, de forma a atingir um objetivo previamente estabelecido, como a maximização das receitas, no caso de um leilão.

As aplicações dessa teoria são amplas, desde as mais sofisticadas, como os leilões de radiofrequências que justificaram o Prêmio Nobel de 2020, até as mais cotidianas, como o conhecido problema da divisão do bolo. Suponha que você queira dividir um bolo de chocolate entre seus dois filhos. Cada um quer a maior parcela possível da iguaria, e você quer evitar que as crianças se desentendam, além de desejar induzir uma partilha equitativa do bolo. O que fazer? 

Que tal o seguinte mecanismo: um dos filhos corta o bolo em dois pedaços, e o outro, em seguida, escolhe que pedaço ele quer? Dessa forma, o primeiro filho será incentivado a cortar o bolo exatamente pela metade, pois, caso contrário, ficará necessariamente com o menor pedaço.

A teoria por trás desse e de outros exemplos foi desenvolvida especialmente a partir da década de 1960 por um grande número de pesquisadores, em um programa de pesquisa que teve seu caminho iluminado pelas contribuições dos três acadêmicos agraciados com o prêmio Nobel de Economia em 2007: Leonid Hurwicz, Roger Myerson e Eric Maskin.

Em sua formulação abstrata, um mecanismo consiste em uma regra de comunicação entre dois ou mais indivíduos. Um deles, chamado “principal”, tem algum objetivo e, para alcançá-lo, busca estimular o(s) outro(s), chamado(s) “agente(s)” a se envolver(em) em alguma tarefa específica. Ocorre que existe algum tipo de assimetria de informação que impede que o principal garanta que o(s) agente(s) executará(ão) o serviço na forma desejada. O mecanismo é o conjunto de incentivos que faz com que o(s) agente(s) atue(m) de forma a maximizar a utilidade do principal. No exemplo do bolo, a mãe (principal) tem o objetivo de evitar brigas entre os filhos e contrata um agente (filho 1) para que parta o bolo e o outro agente (filho 2) para escolher seu pedaço. O mecanismo, no caso, é a regra: quem parte escolhe por último. No problema de venda de radiofrequência, o governo (principal) tem o objetivo de oferecer o melhor serviço e arrecadar mais recursos. A forma de estimular os agentes (concessionárias de serviços de telecomunicação) a trabalharem de forma a atingir o objetivo do governo é por meio do leilão de concessões (mecanismo). Por envolverem principais e agentes, os desenhos de mecanismo são parte do que se denomina teoria do principal-agente. 

A questão fundamental dessa teoria é que tipo de decisão se deseja implantar com o mecanismo. Quando um governo decide leiloar uma concessão, como a operação de um aeroporto ou de uma rodovia, o governo pode buscar a maior receita possível, de forma reduzir seu déficit fiscal, por exemplo (maximização de receitas). Pode ainda estar preocupado em que a concessão seja atribuída à empresa que conseguirá operá-la ao menor custo possível (eficiência). Mas pode, alternativamente, estar preocupado em minimizar o custo final para os consumidores (maximização da utilidade dos usuários), dentre outros possíveis objetivos.

Considere, por exemplo, três amigos (A, B e C) que alugam um apartamento em conjunto e devem decidir sobre a compra de uma TV que custa R$ 3 mil. Um possível mecanismo para decidir se compram ou não a televisão, chamado de mecanismo proporcional, é perguntar a cada amigo quanto vale para ele ter a TV. Se a soma dos três valores informados atingir pelo menos R$ 3 mil, então a TV é comprada, e cada amigo paga uma quantia proporcional ao valor que atribui à TV. Por exemplo, se o amigo A atribuir o valor R$ 1500, o amigo B atribuir o valor R$ 1200 e o amigo C, R$ 900, então a soma é R$ 3,6 mil, que é maior que o custo da TV. Logo, se cada amigo informar sinceramente o valor da TV para si, o aparelho é comprado, o amigo A paga (1500/3600)×3000=R$ 1250, o amigo B paga (1200/3600) × 3000= R$ 1000, enquanto o amigo C paga (900/3600) × 3000= R$ 750.

A decisão que se quer implantar, nesse caso, é a decisão eficiente, qual seja, comprar a TV se, e somente se, o benefício agregado para os três amigos for pelo menos igual ao custo da TV. Nesse exemplo, se os três amigos comunicarem a verdade sobre o valor da TV para cada um deles, a decisão eficiente de comprar o aparelho será tomada. 

A fundamental contribuição de Hurwicz foi chamar a atenção para o fato de que as pessoas respondem a incentivos, ou seja, tomam suas decisões de forma estratégica. No exemplo dos três amigos, se o amigo A tiver uma boa estimativa de quanto vale a TV para os demais amigos (e achar que eles comunicarão seus verdadeiros valores), então pensará: “a soma dos valores dos demais amigos é R$ 1200+900= R$ 2,1 mil, portanto, se eu disser que a TV vale R$ 900 para mim, a TV será comprada e terei que pagar apenas R$ 750 no lugar de R$ 1250. Vale a pena economizar esses 500 reais!” Isso levará o amigo A a mentir sobre quanto vale para ele a TV. Mas, se o amigo B também pensar assim, dirá que a TV vale para si 3000-1500+900=600 reais e, então, mesmo que C diga a verdade, a TV não será comprada, pois 900+600+900=2400<3000

O que ocorre é que esse simples e natural mecanismo não é compatível com os incentivos, ou seja, não induz os jogadores a comunicarem verdadeiramente seus valores. Uma consequência desse mecanismo é a possível perda de eficiência: a TV não é comprada, apesar de o benefício que ela traz para os três amigos ser maior que seu custo. Esse fenômeno é comum e explica por que a provisão de serviços públicos é, em geral, insuficiente: todos querem os serviços, mas preferem que outros paguem por eles [6]

Pode-se argumentar que o mau funcionamento do mecanismo acima se deve à regra de comunicação utilizada. Talvez, se a pergunta fosse “quantas horas por dia você assistirá à TV?”, então o problema seria resolvido? Uma contribuição fundamental de Myerson foi provar, de forma bastante geral, o chamado Princípio da Revelação, que garante que, para determinar se existe um mecanismo que implementa um resultado desejado (como a decisão eficiente, no caso dos amigos), basta estudar os mecanismos diretos reveladores. Nesses mecanismos, pergunta-se aos agentes diretamente a informação de interesse (também chamada ‘tipo’ do agente, no exemplo, um tipo de agente é o valor que ele atribui à televisão) e se constrói a regra de tomada de decisão de forma que cada agente tenha incentivo a responder a verdade, revelando seu verdadeiro tipo, garantindo assim a compatibilidade de incentivos. Esse resultado simplifica sobremaneira a procura do mecanismo ótimo. Ademais, a metodologia usada por Myerson (Myerson, 1981) fundamentou grande parte dos estudos sobre leilões que se seguiram. 

No exemplo dos amigos, um mecanismo revelador pergunta a cada um quanto vale para ele a TV, e o aparelho é comprado sempre que o valor agregado for maior que seu custo, como antes. No entanto, o pagamento de cada amigo será definido como a diferença entre h=R$ 3,4 mil e a soma dos valores da TV para os demais amigos. Ao desvincular o pagamento de um agente do valor que ele comunica, o mecanismo cria um incentivo para que ele diga a verdade, tornando-o compatível com os incentivos. No novo mecanismo, o amigo A paga 3400-1200+900= R$1300, o amigo B paga 3400-1500+900= R$100, e o amigo C paga 3400-1500+1200= R$700. Para este exemplo, construímos um mecanismo do tipo Vickrey-Clark-Groves ou VCG (Vickrey, 1961; Clarke, 1971; Groves, 1973) e o montante R$ 3,4 mil foi determinado de forma a garantir que as contribuições dos três amigos atinjam exatamente o valor necessário para a compra da TV. De fato, em geral, esse mecanismo, ainda que induza a revelação sincera do valor da TV para os amigos, não terá a propriedade de arrecadar exatamente o valor necessário para a compra da TV [7].

Um mecanismo direto revelador determina um tipo de equilíbrio (tecnicamente, denominado equilíbrio de Nash bayesiano) em que todos os jogadores dizem a verdade, e uma decisão ótima é gerada. No entanto, podem existir comportamentos alternativos dos agentes envolvidos (outros equilíbrios) que levem a outras decisões, não necessariamente ótimas. Uma das principais contribuições de Maskin para a área foi determinar uma condição (batizada de monotonicidade de Maskin) que essencialmente determina sob que condições é possível desenhar mecanismos para os quais todos os equilíbrios existentes induzem uma decisão ótima, em cujo caso, dizemos que o mecanismo implementa essa decisão (Maskin, 1978; Dasgupta, Hammond & Maskin, 1979). Nesse sentido, pode-se dizer que Maskin é um dos fundadores da Teoria da Implementação. Esse resultado tem importantes ramificações nas mais variadas áreas da economia e vem ajudando mercados e instituições privadas e governamentais no mundo inteiro a funcionarem melhor.

Duas Aplicações da Teoria de Desenho de Mecanismos

Em entrevista dada ao blog Serious Science em 8 de outubro de 2014 [8], o prof. Eric Markin afirmou que “qualquer área da vida econômica na qual o livre mercado não implementa nossos objetivos sociais, está madura para o uso da teoria de desenho de mecanismos.[9]” Nesta parte do texto apresentamos brevemente duas aplicações da teoria à vida real.

O maior leilão de todos os tempos [10]

Até o final dos anos 1980, as licenças para o uso das ondas eletromagnéticas para telecomunicações nos Estados Unidos eram atribuídas  por meio de um sistema denominado “beauty contest”, ou “concurso de beleza”, em que os concorrentes apresentavam suas propostas à agência reguladora (o FCC: Federal Communications Commission), que então avaliava qual proposta melhor representava o “interesse público” e a ela outorgava a licença. Naturalmente, esse sistema gerava incentivos perversos ao lobby e à tomada de decisão baseada na influência de poderosos conglomerados de telecomunicações, tendo seus resultados frequentemente questionados na Justiça pelos perdedores. Percebendo esse incentivo adverso, e vendo a demanda por outorgas aumentando significativamente nos anos 1980 com o surgimento da telefonia celular, optou-se, em 1983 pelo mecanismo mais simples das loterias, ou seja, a empresa que receberia o direito de uso de certa faixa de radiofrequência era escolhida de forma totalmente aleatória dentre as concorrentes. Esse novo mecanismo minimizou o problema do lobby e de reclamações judiciais, mas, por outro lado, trouxe consigo grande potencial de ineficiência, uma vez que a empresa selecionada muito provavelmente não seria a mais bem preparada para receber essa licença. Além disso, licenças que geravam imenso volume de receitas recebiam a outorga praticamente gratuitamente [11]

Diante dessa realidade, e considerando a crescente pressão da dívida pública americana, em 1993 o Congresso estadunidense autorizou a FCC a vender licenças de telecomunicações por meio de leilões competitivos. Licenças de telecomunicações têm uma característica especial que tomam qualquer mecanismo de venda extremamente complexo: a sinergia. A sinergia se refere ao fato de o valor da licença referente a uma área depende fortemente da rede que uma empresa consegue formar. Por exemplo, considerando os tamanhos e a interligação entre os mercados de São Paulo e do Distrito Federal, uma licença para operar no DF vale muitíssimo mais a uma empresa que consiga também a outorga para operar em São Paulo. Portanto, o mecanismo de leilão a ser implementado, se buscar eficiência e receita para o governo, deve favorecer o aproveitamento das sinergias, que dependem de cada empresa participante.

Foi então que o mundo real se voltou para os acadêmicos de Teoria dos Jogos, tanto o FCC, que contratou o professor John McMillan, como as empresas interessadas, que contrataram um “dream team” de pesquisadores incluindo, dentre outros, Charles Plott, Jeremy Bulow, Barry Nalebuff, Preston McAfee, Robert Weber, David Porte, John Ledyard e, destacadamente, Robert Wilson e Paul Milgrom (McMillan, 1994).

Quando Milgrom foi contactado pela concorrente Pacific Bell, sua primeira reação foi: “Eu sou apenas um economista teórico!  Nada sei sobre isso!” (Christopher, 2016). Apesar do choque inicial, Milgrom e Wilson aceitaram o desafio e de suas mentes brilhantes surgiu o desenho do leilão simultâneo ascendente de múltiplas rodadas, o SAA (Simultaneous Ascending Auction: Milgrom, 2000). Nesse leilão, em cada rodada todos os participantes podem dar lances simultâneos para qualquer uma das faixas de radiofrequência sendo leiloada. Existe uma regra de atividade para que um participante ainda continue com o direito de dar lances em um segmento, de forma que, se deixar de dar lances para esse segmento por um número elevado de rodadas, o participante perde o direito de concorrer por esse segmento. Ademais, existe uma regra de aumento mínimo do valor dos lances entre duas rodadas consecutivas. O primeiro leilão nesse formato ocorreu em julho de 1994, teve a duração de 47 rodadas e gerou 617 milhões de dólares à época com a venda das 10 licenças oferecidas. 

A partir de então, o padrão se consolidou e foi seguido, com devidos ajustes, tanto nos leilões subsequentes nos Estados Unidos como em muitos outros países (Binmore & Klemperer, 2002). Mais recentemente, Milgrom foi novamente convocado para desenhar um leilão ainda mais complexo, o “Leilão de Incentivos” (Incentive Auction) em que o governo comprou frequências de redes de TV e simultaneamente leiloou essas frequências para o uso da telecomunicação móvel (Milgrom, 2019). O leilão, que Milgrom descreveu com “[..]the most excited thing I’ve ever done” (Christopher, 2016) foi realizado 29 de março de 2016 a 30 de março de 2017,  reposicionou 84 mega-hertz de radiofrequência e gerou 19,8 bilhões de dólares em receitas, sendo 7 bilhões para o Tesouro americano (FCC, 2017) [12]

A nova revolução tecnológica no mundo das telecomunicações já está colocada: trata-se do uso da tecnologia 5G, que permitirá velocidades de comunicação de dados até pouco impensáveis ao alcance de todos. Segundo o Ministro das Comunicações Fábio Faria, o leilão de frequência para a implantação de 5G no Brasil acontecerá “com certeza” entre abril e maio de 2021 [13]. O ensinamento dos mestres Robert Wilson e Paul Milgrom nesses últimos anos será de grande valia e seu aproveitamento fará toda a diferença entre um mecanismo de sucesso que gerará bilhões de reais aos cofres públicos, ou um resultado pífio para o país.

Quem guarda o guarda? O triste caso do Ministro Marco Aurélio Mello.

Em sua palestra de recebimento do Prêmio Nobel de 2007, intitulada “But who will guard the guardian?” Leonid Hurwicz volta à antiguidade para citar o poeta romano Décimo Júnior Juvenal [14]. Segundo o autor, seria impossível a um marido controlar sua esposa colocando guardas para acompanhá-la, uma vez que os guardas também deveriam ser guardados. 

A preocupação sobre diferentes níveis de hierárquicos de monitoramento e a necessidade de se controlar aquele cuja função é controlar, é uma constante no desenho de qualquer mecanismo, seja ele teórico ou prático. É assim que surgem as figuras dos corregedores nas forças policiais e do próprio Conselho Nacional de Justiça, por exemplo.

Em 2 de agosto de 2020, enquanto a nata da intelectualidade internacional se preparava para anunciar mais um Prêmio Nobel em Economia dedicado à área de desenho de mecanismos, o Ministro da Suprema Corte brasileira, Marco Aurélio Mello, proferia habeas corpus para a soltura de um dos mais perigosos criminosos do Brasil, André de Oliveira Macedo, o “André do Rap”, um dos chefões do PCC (Primeiro Comando da Capital), traficante de drogas internacional condenado em segunda instância em dois processos que totalizam mais de 25 anos de prisão [15]

A decisão de soltura do criminoso se baseou no parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal, promulgado pelo presidente Bolsonaro recentemente, que prevê que a prisão em processo não transitado em julgado somente poderia ser prorrogada, a cada 90 dias, mediante solicitação fundamentada pelo juiz de primeira instância ou pelo ministério público. Como o prazo havia-se esgotado, o Ministro ordenou sua soltura.  André do Rap foi solto na sexta-feira 9/10/2020 e ainda que, atendendo a um pedido da Procuradoria-Geral da República, o Presidente do STF Ministro Luiz Fux tenha suspendido a decisão em 10/10/2020, o criminoso encontra-se foragido até o momento da redação deste trabalho. O governador de São Paulo estimou um custo de 2 milhões de reais a cada 120 dias com a força-tarefa para recapturar André do Rap [16].  

Posteriormente, em 15/10/2020 o STF derrubou a decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Mello por 9 votos a 1 (o voto do próprio ministro), confirmando sem sobre de dúvidas o erro daquela decisão.

A pergunta que todo cidadão de bem do Brasil se faz é: “Como pôde o ministro cometer tamanha absurdidade sem ser controlado por nenhuma outra instância? [17]” De fato, houve uma acertada tentativa de controle por parte do presidente do Supremo, referendada pelo pleno da casa, mas não se mostrou eficaz, uma vez que o criminoso já estava foragido quando esse controle foi exercido. 

Uma análise cuidadosa baseada nos incentivos criados por nossa legislação revelaria uma série de incentivos adversos. Este texto, no entanto, se restringe a discutir um instrumento presente na Constituição Japonesa, inspirado em instrumento semelhante existente na Constituição do Estado Americano de Missouri, que podemos chamar de “Recall” de um ministro da corte suprema.  De fato, o artigo 79 da Constituição Japonesa prevê que qualquer nomeação de ministro da corte suprema seja revista pelo voto popular quando da primeira eleição da “House of Representatives” (Câmara dos Deputados) imediatamente após a nomeação, e sendo revista novamente a cada 10 anos. O objetivo explícito desse instrumento é garantir que a Corte Suprema seja controlada democraticamente (Tsuji, 2017). O instrumento é implementado de forma extremamente simples. Na cédula de votação para a Câmara dos Deputados é incluída a questão: “Escreva um X na caixa ao lado do nome do juiz se avalia que ele deve pedir demissão. Não escreva nada na caixa se avalia que ele não deve pedir demissão”. 

Ainda que existam muitas controvérsias relacionadas à questão do “recall” de ministros da Corte Suprema, não resta dúvidas de que esse instrumento tem o potencial, senão de “controlar o controlador”, pelo menos de expelir da mais alta Corte de Justiça da Nação aqueles que descaradamente desprezam a segurança, as finanças e a moralidade pública. 

Maurício S. Bugarin

 PhD em Economia pela Universidade de Illinois. Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e Líder do Economics and Politics Research Group – EPRG/CNPq. E-mail: [email protected]; URL: www.bugarinmauricio.com.

Notas de rodapé:

[1] PhD em Economia pela Universidade de Illinois. Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e Líder do Economics and Politics Research Group – EPRG/CNPq. E-mail: [email protected]; URL: www.bugarinmauricio.com.

[2] “Somos como anões em ombros de gigantes, pois podemos ver mais coisas do que eles e coisas mais distantes, não devido à acuidade da nossa vista ou à altura do nosso corpo, mas porque somos mantidos e elevados pela estatura de gigantes.” Bernardo de Chartres, referido por João de Salisbúria, Metalogicon III, cap. 4, ano de 1159.

[3] “for improvements to auction theory and invention of new auction formats”. https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/2020/prize-announcement/

[4] “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes.” Em carta escrita para Robert Hooke datada de 5 de fevereiro de 1676.

[5] Esta parte é uma versão revisada e expandida de Bugarin (2007).

[6] Deixo ao leitor curioso o seguinte desafio. Considere o mecanismo comum de um condomínio: os três amigos votam pela compra ou não da TV e se a maioria votar pela compra, o custo e dividido igualmente entre os presentes. Mostre que, no exemplo, a TV será comprada, mas o amigo 3 sairá desse mecanismo pior do que entrou, pois o custo da TV para ele (1 mil reais) é inferior ao benefício. Dizemos, nesse caso, que o mecanismo não respeitou a condição de Racionalidade Individual. Mostre ainda, alterando os valores da TV para os amigos, que é possível que a TV seja comprada mas que o benefício agregado seja inferior ao seu custo, por exemplo, se a TV valer 1100 reais para os amigos A e B, mas apenas 500 reais para o amigo C. Nesse caso, dizemos que o mecanismo não é Eficiente. Note que tanto no mecanismo do condomínio como no mecanismo proporcional, se a decisão for comprar a TV, os pagamentos dos amigos serão suficientes para cobrir o preço da TV; dizemos que esses mecanismos respeitam o Equilíbrio Orçamentário.

[7] O leitor curioso poderá verificar que se o valor de referência for , então o mecanismo arrecadará mais do que o necessário para a compra da TV, sendo ainda do interesse dos amigos participarem dele. Se temos a situação extrema em que cada amigo é indiferente a participar ou não do mecanismo. Se os amigos preferem não participar do mecanismo e, finalmente, se será necessário um subsídio externo para a compra da TV, uma vez que o valor arrecadado será inferior ao preço da TV.

[8] http://serious-science.org/eric-maskin-mechanism-design-theory-1833

[9] “any area of economic life in which free markets are not fully successful, i.e. in which they do not implement our social goals, is ripe for mechanism design theory”.

[10] O texto deste exemplo foi retirado de Bugarin (2020). O título vem da reportagem no New York Times: “The greatest auction ever” (Safire, 1995).

[11] Um caso famoso foi do ator Ernest Borgnine, que chegou a ganhar uma licença de telefonia sem ter qualquer experiência prévia na área, tendo posteriormente vendido essa licença com grande lucro (Christopher, 2016).

[12] Veja Carrasco (2020) para maior detalhamento sobre o Leilão de Incentivos.

[13] https://www.tecmundo.com.br/mercado/177591-leilao-5g-brasil-abril-maio-2021-diz-ministro.htm

[14] Décimo Júnio Juvenal viveu nos séculos I e II, entre 55 e 127, tendo sua principal obra sido uma coleção de poemas satíricos, as Sátiras, em que critica a decadência da Roma antiga. Consta na sátira 10 do livro IV a famosa frase: “Mente sã num corpo sadio” (Mens sana in corpore sano).

[15] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54549497

[16] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/16/doria-diz-que-forca-tarefa-para-tentar-recapturar-andre-do-rap-custa-r-2-milhoes-a-sp.ghtml

[17] O Estadão revelou que a polícia procura pelo menos outros 20 criminosos foragidos que foram soltos em condições semelhantes pelo ministro Marco Aurélio Mello.

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