A unanimidade não é enfeite

Alipio Ferreira | Terraço Econômico Artigo publicado no jornal Valor Econômico no dia 30 de abril de 2015

Parece que a Páscoa despertou ânimos piedosos nos senadores, pois na terça-feira seguinte (7/4) o Senado Federal aprovou um projeto de lei que visa conceder amplo perdão a ilegalidades cometidas pelos Estados brasileiros no âmbito da “guerra fiscal”. Há décadas os Estados brasileiros vêm concedendo benefícios a empresas privadas com base no principal tributo estadual, o ICMS, um expediente patentemente ilegal. Como a política tributária de um Estado pode interferir nas receitas de outros, a regra no Brasil é que benefícios tributários estaduais devem ser aprovados por unanimidade das 27 Unidades da Federação, num fórum chamado Confaz. Desnecessário dizer que essa regra é solenemente ignorada, mas ao invés de punir os detratores da lei, concede-se a indulgência plenária.

O projeto de lei 130 de 2014 votado na terça-feira autoriza o Confaz a convalidar os benefícios fiscais concedidos ilegalmente pelos Estados e estendê-los por mais alguns anos. Quase todos os parlamentares parecem entender essa proposta como um compromisso necessário no processo de pacificação da guerra fiscal. Mas o projeto de lei vai além, incluindo um detalhe ardiloso: o Confaz poderá aprovar esse “perdão coletivo” por uma maioria de dois terços, e não pela regra da unanimidade. O Senado, a Casa da Federação, comete um erro ao tratar a regra da unanimidade como se fosse um adorno dispensável da federação brasileira. Ela é, se respeitada, um antídoto contra a guerra fiscal.

A guerra fiscal está intimamente associada às regras de tributação do comércio interestadual. Devido ao nosso sistema de “alíquotas interestaduais”, o Estado de origem deve cobrar 12% (via de regra) de ICMS sobre a “exportação” para outro Estado, e o Estado de destino fica obrigado a reconhecer um crédito de 12% nessa transação. A guerra fiscal consiste em o Estado de origem conceder descontos sobre os 12%, enquanto o Estado de destino continua concedendo um crédito de 12% que já não corresponde à realidade. O resultado é uma carga tributária reduzida para a empresa que goza do benefício, com distorções nos preços do mercado e na concorrência, além de prejuízo à arrecadação e à economia do Estado de destino. Nesse esquema de competição por empresas, o ganho de um implica na perda de outro. Trata-se do que se convencionou chamar “externalidades”: situações em que ações individuais implicam efeitos a terceiros que não são levados em consideração.

[caption id="attachment_3921" align="aligncenter" width="581"]Foto de Rubens Chaves/Folhapress Foto de Rubens Chaves/Folhapress[/caption]

Existem três maneiras de corrigir a externalidade fiscal do sistema brasileiro de ICMS. Uma delas já é ensaiada por alguns Estados: a glosa de créditos. Isso significa que os Estados importadores não reconhecem um crédito de 12% se esse valor não tiver sido efetivamente pago ao Estado de origem. Esse procedimento neutraliza os benefícios fiscais ao manter a carga tributária da operação de importação igual à de operações internas ao Estado. No entanto, a glosa de créditos é questionada juridicamente e exige investigações a respeito de incentivos, que nem sempre são fáceis de rastrear.

A segunda solução possível é a instituição de um sistema puro de destino para o ICMS: todo o ICMS será cobrado no Estado de destino. É o sistema utilizado na União Europeia para o Imposto de Valor Agregado (versão europeia do ICMS). Nesse caso o Estado de origem não teria direito a 12% na operação de exportação, não podendo dar descontos tributários a empresas que exportam a outros estados. A desvantagem desse sistema é que jogaria fora o bebê com a água do banho: o sistema brasileiro de alíquotas interestaduais tem a virtude de garantir aos Estados exportadores receitas tributárias oriundas de uma atividade produtiva que ocorre em seu território. Isso não ocorre sob o princípio de destino puro, no qual somente o Estado em que ocorre o consumo final (Estado importador) recolhe impostos sobre a operação.

A terceira solução é simples e não é excludente das outras: consiste em aplicar a lei que temos hoje, que não é ruim e não está aí para servir de decoração. A regra exige que a concessão de benefícios fiscais por um Estado dependa do comum acordo de todos os outros Estados: não a maioria, não dois terços, mas todos os Estados reunidos no Confaz. Essa é a única maneira que garantirá que o benefício concedido por um Estado não se dará às custas de um outro. Também impedirá que 26 Estados possam eventualmente se unir para aprovar benefícios que espoliem um único Estado. Mas os senadores preferiram dar um passo atrás e relativizar essa importante instituição legal.

Não é de hoje que alguns políticos brasileiros torcem o nariz para a regra da unanimidade no Confaz. Alega-se que a unanimidade é incompatível com a democracia, a qual seria vocacionada à regra da maioria. Porém, essa visão simplificada de democracia é incompatível com a experiência democrática mundo afora. A regra da unanimidade equivale a uma regra em que ninguém pode ser prejudicado, ou em que aquele que saia prejudicado possa legitimamente exigir uma compensação. Trata-se de um direito de minoria, que o exerce para evitar que coalizões se formem para explorá-la. No contexto da federação brasileira, juristas como Ives Gandra Martins defendem que a regra da unanimidade no Confaz consiste até mesmo numa cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988. Cláusula pétrea ou não, a unanimidade é uma garantia da federação, e sua existência não é fruto do acaso.

A regra da unanimidade não é uma jabuticaba ruim da democracia brasileira da qual temos de nos livrar, e nem de longe o Brasil está sozinho nessa escolha. A União Europeia adota o critério da unanimidade para a maior parte dos assuntos decididos no âmbito do Conselho Europeu. Todas as decisões relativas ao Imposto de Valor Adicionado europeu devem ser tomadas por unanimidade dos 28 membros, como forma de garantir a harmonização do sistema tributário. Sem sombra de dúvidas a tomada de decisão não é tão fácil sob esse sistema, mas isso não impediu a Europa de aprovar um regulamento unificado para o IVA com disposições obrigatórias a todos os Estados-membros, além de diversas outras políticas decididas por unanimidade no Conselho Europeu. Os legisladores do Brasil poderiam se questionar como a União Europeia, uma federação em formação, avança a despeito de inúmeras dificuldades, a despeito de divergências culturais e econômicas, e “a despeito” da regra da unanimidade: a regra da unanimidade os obriga a trabalhar por um projeto coletivo que beneficie a todos.

Do Senado, o projeto de lei 130 aprovado agora está na Câmara dos Deputados, e não há por que crer que lá os parlamentares eliminarão a exceção à regra da unanimidade. Talvez a presidente da República, consciente da gravidade das questões federativas, vetará o dispositivo. Mas é provável que não queira desagradar o Congresso num momento em que escasseia seu apoio político. A marcha da insensatez avança, promovendo o lento e silencioso desmonte das boas instituições.

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Alípio Ferreira

Formou-se em economia pela EESP-FGV, onde desenvolveu sua paixão por números primos e poesia alemã. Foi editor-chefe da revista Gazeta Vargas, associação cultural formada por alunos das escolas de Administração, Economia e Direito da FGV-SP. Escreveu um artigo sobre plebiscitos suíços no Valor Econômico e foi funcionário público. Almeja glória e poder para todo o sempre. Hoje é mestrando em economia na Universidade de Tilburg, nos Países Baixos. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2014 e 2017.

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