O dia D ou apenas mais um capítulo da novela “Brasil 2015”?

Por Rachel de Sá e Victor Candido

Para quem gosta de economia, ontem teve um prato cheio. Acompanhando o pão na chapa com cafezinho, um apetitoso superávit primário de 0.5% com deliciosa banda permitindo a famosa “zerada” como acompanhamento. Lanche da manhã, uma pitada de especulação em torno de um ministro bem passado. Para encher o bucho no almoço, o esperado downgrade vem como principal – massa importada, coisa fina, número 2. Por fim, o jantar não pega mais leve, e os famosos juros norte-americanos no forno há 7 anos vem com tudo. Sem sobremesa, o dia foi cheio.

Metáforas à parte, o dia de ontem não foi nada fácil para a economia brasileira. Em mais uma derrota para o ministro Levy, o superávit primário (gastos menos despesas do governo, antes do pagamento de juros) anunciado para 2016 garante economia de apenas 0.5% do PIB, além de permitir mudança para 0% (isso mesmo, zero), caso julgado necessário pelo governo. Isso significa que o governo decidiu deixar-se economizar míseros 0.5%, ou mesmo nada, de tudo o que produz para pagar aqueles que lhe emprestam dinheiro, aumentando assim o valor pago em sua dívida. A lógica é simples. Quanto menos dinheiro diz ter aquele para quem você empresta, mais caro você cobrará, porque, afinal, o risco de você nunca mais ver seu dinheiro torna-se maior.

Representando a gota d’água, essa decisão somou-se à instabilidade política e a cada vez menor probabilidade de retomarmos o caminho de uma dívida pública sustentável (já que passar o ajuste fiscal revelou-se mais difícil do que aquela piada do elefante no envelope), resultando na perda do grau de investimento por mais uma agência de rating. A Fitch é uma agência que, como a Standard&Poors e a Moody’s, avalia a capacidade de pagamento de países. Já o grau de investimento é como um selo de bom pagador, que sinaliza à investidores que é seguro (e quão seguro) investir, ou seja, que estes terão seu dinheiro de volta com a garantia do rendimento acordado.

Como a cereja do bolo, o Banco Central dos EUA, o Federal Reserve (para os íntimos, simplesmente FED) decidiu subir a taxa de juros básica da economia norte-americana. E por que isso foi novidade? O Banco Central do Brasil não está sempre subindo, descendo, e o diabo com a taxa Selic por aqui? O que acontece é que FED não subia os juros há quase uma década, desde 2008.

Mas como você, o brasileiro, bonito, saudável, feliz e à espera do ano novo na praia, é impactado por tudo isso? Em um primeiro momento, pode parecer que nada vai mudar. Afinal, “você não come grau de investimento, nem pretende mandar seu dinheiro lá para Miami com os ricos e famosos”. Porém, não é bem por aí (na verdade, não é nada por aí). Assim como os impactos positivos na economia brasileira dos últimos anos podem ser parcialmente – sem tirar crédito de outros importantes fatores – atribuídos aos baixos juros nos EUA e à conquista do selo de bom pagador pelas principais agências de rating, o contrário não tem como ser falso. O que quero dizer é que, apesar de ser ainda cedo para calcular com qual intensidade, os acontecimentos de ontem serão sentidos pela economia brasileira e por todas as camadas da sociedade.

Antes de partirmos para os efeitos em comum a ambos os acontecimentos, é importante lembrar que a perda do grau de investimento ocorrida ontem representou a confirmação do nível de subinvestimento dos títulos da dívida brasileira e, consequentemente, da maior parte de suas empresas. Com duas das três principais agências de risco do mundo classificando o Brasil como junk, investidores institucionais (os maiores investidores do mundo), tais como fundo de pensão, deixam de poder investir por aqui – seus regulamentos os proíbem de assumir altos riscos. Portanto, estamos agora out of the game. Fora de um tabuleiro de mais de USD 15trilhões, para um de menos de USD 2trilhões. Ou seja, torna-se muito mais difícil e custoso tanto para o governo quanto às empresas brasileiras tomar emprestado fora do país – algo que, na atual situação, é o que estes mais precisam.

E onde isso pode afetar a sua vida, se você não possui uma empresa em busca de financiamento, ou não é o governo em necessidade de financiar gastos que crescem mais do que sua receita? Como dito, empresas terão maior dificuldade em financiar-se no mercado internacional, além de serem obrigadas a pagar maiores juros. Com isso, tais empresas podem optar por adiar investimentos, ou mesmo cortar gastos, assim como o famoso ajuste fiscal do governo. Ao fazê-lo, pessoas comuns como eu, você e a recepcionista do prédio ao lado, podem dar adeus ao emprego, ou quem sabe não receber aquela promoção tão almejada. Além disso, ao pagar mais caro para financiar-se, empresas podem decidir repassar tal custo ao consumidor, e cobrar mais caro por um crediário, por exemplo. Sabe aquela geladeira ou televisão de plasma em 10 vezes sem juros no crediário das Lojas Americanas? Pois é, dê adeus a essa também.

Agora, aos efeitos em comum aos dois acontecimentos, que em dose dupla tem a perigosa capacidade de amplificar seus impactos. Tais efeitos podem ser decompostos em três, sendo que cada qual consequência do outro.

O primeiro efeito é imediato e de fácil percepção: a depreciação da taxa de câmbio. Ontem (16/12), o dólar ultrapassou a barreira de R$3,90 após 40 dias, chegando durante o dia, antes do fechamento, a marca de 3,96. Isso acontece devido à retirada de capitais por parte de investidores que, sem o selo de bom pagador, acreditam que o risco país não compensa o retorno oferecido. Logo, os investidores vendem reais e compram dólares, para assim poderem tirar o dinheiro do Brasil, impactando a taxa de câmbio. É ai que entra o FED na equação, com a subida de juros dos Estados Unidos, em seu esforço de normalização de sua política monetária. (Depois de sete anos de juros à 0% com o objetivo de incentivar a atividade econômica, ou seja, fazer americanos (tanto consumidores quanto investidores) gastarem ao invés de deixarem o dinheiro no banco, o FED decidiu ser o momento de subir novamente seus juros, para evitar que o excesso de dinheiro em circulação levasse à formação de bolhas, como em 2008). Com a alta dos juros americanos, títulos federais americanos pós-fixados (sua remuneração depende do nível de juros vigente na economia) se tornam mais atrativos. Como são obrigações do governo da maior economia do mundo, são também considerados o investimento mais seguro existente. Neste contexto, investidores podem optar por tirar o dinheiro do Brasil e levar para lá, mesmo diante da gorda taxa de juros oferecida pelo governo brasileiro – de 14,25%a.a contra uma taxa que varia agora entre 0,25 e 0,50%a.a nos Estados Unidos. Por quê? Porque seguro morreu de velho.

O segundo efeito é sentido mais gradualmente, e é um subproduto direto do primeiro: o impacto do câmbio na inflação. Ou seja, o efeito que a subida do dólar tem no preço do pãozinho e do azeite ao smartphone; basta imaginar algo que tenha qualquer componente importado, e pronto, o preço subiu! Esse efeito não é instantâneo como o câmbio, pois estoques ainda refletem a taxa de câmbio de quanto foram comprados, fazendo com que o preço demore alguns meses para se ajustar. Estudos econométricos mostram que o efeito total do câmbio sobre o principal índice de inflação, o IPCA, demora entre 3 e 4 meses. Porém, não se engane. Você vai senti-lo. Neste ano, por exemplo, o impacto direto da depreciação do Real (ou seja, a alta do dólar) foi de 35% para gasolina e 56% para o gás de cozinha – afetando preços como o tanque do carro, a passagem do ônibus e a comida do restaurante.

O terceiro efeito é uma combinação perversa dos dois primeiros e requer um olhar mais atento a um dos principais elementos de macroeconomia.Trata-se do impacto na taxa básica de juros brasileira, a Selic. Lembra-se do enorme diferencial entre a taxa de juros brasileira e norte-americana? Pois é. Entre investir em ultra seguros títulos do tesouro dos EUA ou naqueles já nem tão seguros (segundo as agências de risco) títulos do governo brasileiro, o investidor que concordar em financiar gastos do governo por aqui vai demandar um retorno maior, devido ao maior risco. E esse retorno é nada mais nada menos do que a taxa de juros. Logo, a cada piora do cenário de risco da economia brasileira, taxas de juros maiores se tornam necessárias para satisfazer a equação risco versus retorno. Lembra-se da geladeira em crediário? Acrescente a esta um cheque especial alcançando 200% ao ano, e você verá o tamanho da lambança em que encontra o Brasil. Como se não bastasse, tem mais um detalhe. Lembra-se agora do impacto positivo do câmbio na inflação? Pois é. O principal instrumento para controlar o aumento da maldita [entenda-se, inflação] no Brasil é a, adivinhe (?), taxa de juros. Logo, “que comam mais juros”.

Fica claro, portanto, que os efeitos listados acima se relacionam em uma perigosa e interessante cadeia de causa e efeito. Em sofisticado economês: Economias com riscos macroeconômicos crescentes tendem a ter um câmbio cada vez mais desvalorizado e por consequência final uma taxa de juros elevada.

Enfim, o dia D foi mesmo um dia frenético. Mas, infelizmente, o pior ainda está por vir. A perigosa e destrutiva bola de neve que se forma no país em meio à tempestade perfeita lá fora atropelará um a um (com diferentes intensidades), até que se entenda que aquele ditado faz todo sentido, e “quem faz a fama, deita na cama”.

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Rachel de Sá

Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics, mestranda em Economia, Desenvolvimento e Políticas Públicas pelo IDP, e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Idealizadora do canal do Terraço Econômico no Youtube, acredita que educação financeira é para todos, e sempre busca explorar a linha tênue entre ciência política e economia.

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