Você no Terraço | por Rachel de Sá*
Em recente coluna publicada no jornal Folha de São Paulo, Helio Schwarstan falou sobre “A cultura do bode”[i]. Destacando a “cada vez mais prevalente tendência [da atual presidente] de não assumir as próprias responsabilidades, preferindo imputar sempre a um terceiro os resultados indesejados de suas decisões”, o articulista citou a declaração que virou meme, em que Dilma culpabiliza FHC por permitir o início da corrupção no seio da, até então incorruptível, Petrobrás. Não pude deixar de sentir uma certa sensação de déjà-vu, ao notar a similaridade entre a tal “cultura do bode” e a posição do governo brasileiro há alguns anos atrás, quando Guido Mantega experimentou seus cinco minutos de fama a partir de inflamado discurso acerca da guerra cambial do mundo moderno.
É exatamente aí que entra o motivo de minha participação no Terraço. Em uma série de três artigos, terei como objetivo convencê-los de que, diferente do que defendido por certos autores do campo de Economia Política Internacional (como Dadush e Eidelman, 2011[ii]), a acusação de guerra cambial por parte do governo Brasileiro não reflete sua suposta crescente posição como líder de um movimento a favor da reforma do sistema econômico mundial. Pelo contrário, a retórica da guerra cambial foi usada pelo governo PT como ferramenta política; como um bode expiatório para problemas econômicos internos (em especial aqueles ligados ao setor industrial) que vão muito além da taxa de câmbio. Problemas estes, que se tornaram aparentes quando o modelo econômico adotado na última década começou a exibir sinais de fraqueza, mostrando-se insustentável.
Mas de que se tratava, enfim, tal guerra cambial? Como toda história tem um começo, essa começou durante uma entrevista para o jornal britânico The Financial Times em setembro de 2010, na qual nosso então Ministro da Fazenda, Guido Mantega, mencionou o termo guerra cambial. Cunhada para fazer referência ao período entre guerras, a expressão relacionava-se à políticas monetárias expansionistas (desvalorizações competitivas) adotadas como um modo de recuperar economias destruídas pela Primeira Guerra Mundial. A ideia de “exportar” a saída de uma crise a partir de uma moeda mais fraca e às custas de outros países foi, então, retomada por Mantega na forma de crítica aos EUA.
De acordo com Mantega e, à época recém eleita, Presidente Dilma, os EUA eram responsáveis por iniciar uma guerra cambial contra países mais fracos do sistema econômico mundial, como o Brasil. A maneira pela qual isso ocorria era a adoção de políticas monetárias expansionistas que, de acordo com o discurso brasileiro, objetivam principalmente o enfraquecimento artificial da moeda norte-americana (ou seja, forçado pelo governo por meio do Banco Central), de modo a recuperar a economia do país a partir da expansão de exportações. O governo brasileiro sustentava que o preço de tais políticas “violentamente expansionistas” recaía sobre países emergentes, que eram obrigados a observar a valorização de suas moedas e a perda de competitividade de suas indústrias, causados por verdadeiros “rios de dinheiro” em forma de capital especulativo e desestabilizador. Neste sentido, políticas como o Quantitative Easing eram responsabilizadas por criar um ambiente de competição desleal, fazendo com que produtores brasileiros perdessem não somente mercado exportador, mas também demanda interna diante de produtos importados.
Nas palavras de Mantega e Dilma, a retórica da guerra cambial ganhou força no cenário internacional, atraindo debates no FMI e no G20, além de grande cobertura midiática. Porém, tal retórica não se limitou ao público estrangeiro. Ocasiões como o lançamento de obras do PAC, ou uma cerimônia em prol dos direitos de trabalhadores da construção civil tornaram-se palco perfeito para o fortalecimento do discurso acerca da guerra cambial. Neles, a presidente ressaltava a irresponsabilidade de políticas monetárias de países ricos, adotadas com o intuito de destruir setores industriais construídos com esforço e dedicação, como o brasileiro.
Nesse contexto, é importante destacar que, além de taxar políticas monetárias expansionistas como ineficazes e perversas, autoridades brasileiras não apresentaram quaisquer alternativas para reverter o quadro econômico recessivo pós-crise de 2008. Isso, obviamente, deu espaço para críticas por parte dos EUA e outros países desenvolvidos, que passaram a ver o discurso de Mantega como sua própria estratégia de marketing. Esse comportamento reforça o argumento de que o objetivo brasileiro não era mudar as regras do sistema existente a partir de seu discurso, e sim encontrar uma boa ferramenta de uso político.
A acusação contra políticas monetárias não convencionais (como ficaram conhecidos procedimentos para alterar taxas de juros de curto prazo diante de mudanças no quadro inflacionário e produtivo, como o Quantitaive Easing) deu lugar a jargões como “tsunami monetário” e “helicóptero de dinheiro”, e garantiu presença do governo brasileiro em discussões internacionais e estudos de caso de natureza acadêmica. A nova guerra cambial tornava o Brasil famoso, e Mantega assunto da mídia global. Enquanto isso, a economia brasileira se preparava para mostrar os resultados daquilo que era escondido atrás de tão conveniente bode expiatório.
No próximo artigo, abordarei a legitimidade e o timing da acusação brasileira a partir de breve análise do balanço de pagamentos brasileiro pós-Quantitative Easing, e do modelo econômico seguido pelo governo PT antes e depois da eclosão da crise de 2008.
*Rachel de Sá formada em relações internacionais pela PUC-SP com mestrado em Economia Politica pela London School of Economics (LSE)
Notas: [i] Schwarstman, H. (2015) A Cultura do bode. Folha de São Paulo. [ii] Dadush, U. and Eidelman, V. (2011) Currency Wars (Washington: Carnegie Endowment for International Peace)