Nos últimos dias, muito tem sido dito sobre o desempenho econômico de Portugal. Tudo começou há um pouco mais de um mês, quando o governo português anunciou que seu déficit orçamentário seria o menor em 40 anos [1]. Isto diminuiria o risco de o país sofrer sanções financeiras por parte da União Europeia. Mas as repercussões divergiram, algumas apontando para as bases frágeis do sistema bancário português, outras argumentando que o pior já havia passado. Uma reportagem da revista The Economist [2], com o provocador título “Growing out of it: Portugal cuts its fiscal deficit while raising pensions and wages”, deu ainda mais fôlego para o debate. A matéria expõe alguns números positivos recentes do pequeno país europeu e discute a solidez destes resultados, destacando a sobriedade com a qual o atual governo Socialista vêm lidando com as contas públicas.
Mas, afinal, em que pé está a economia da Terrinha? Como chegou neste estado? O país está mesmo se recuperando da crise da Zona do Euro? Qual foi o papel do governo Socialista neste processo? Elucidaremos estas questões em uma sequência de dois textos. Neste, trataremos da trajetória percorrida por Portugal nos últimos anos e examinaremos como o governo emprega o dinheiro dos contribuintes. No segundo, falaremos mais sobre as expectativas do mercado em relação ao país, questionando se o momento atual configura uma verdadeira recuperação ou não. Traçaremos, também, um paralelo com a situação do Brasil.
O pedido de resgate ao FMI
Para entender tudo que nos propomos a explicar, vale a pena voltar na história. A crise financeira de 2007/2008 teve consequências particularmente nefastas para Portugal. Dois de seus maiores bancos, o Banco Privado Português (BPP) e o Banco Português de Negócios (BPN) se tornaram conhecidos por fraudes contábeis e perdas acumuladas. O risco de contágio, agravado pela anemia da economia global, levou o governo português a propor um programa de resgate para os bancos em 2010. No ínicio deste mesmo ano, o nível excessivo da dívida soberana do país rendeu-lhe lugar entre os chamados PIGS (acrônimo pejorativo para Portugal, Itália/Irlanda, Grécia e Espanha que, em inglês, significa porcos), grupo de países altamente endividados e com baixa performance econômica.
Independentemente do estado da economia, a Comissão Europeia exige que a dívida soberana de seus membros não ultrapasse 60% do PIB e os déficits orçamentários têm de ficar dentro do limite de 3% do PIB. No final de 2009, a dívida portuguesa estava em 83%, contra a média de 60% dos países da UE, e o déficit orçamentário havia sido de 9.8%. A situação piorou em 2010, com a subida acelerada da dívida para 96.2% e o déficit se aprofundando para 11.2%.
Como consequência, a percepção de risco dos investidores se agravou e os rendimentos dos títulos de longo prazo do governo português começaram uma escalada que só teve fim em janeiro de 2012. Traduzindo: quem emprestou para o governo português começou a temer um calote e a vender seus títulos, ampliando a oferta e pressionando os preços destes títulos para baixo. Com isso, os juros pagos sobre seus valores de face começaram a subir. Juros mais altos, é claro, elevaram ainda mais a dívida.
Acompanhando estes movimentos e levando em conta a debilidade estrutural da economia portuguesa, a Moody’s abaixou a nota de crédito do país no fim de 2010. Rapidamente, portanto, Portugal foi perdendo o acesso ao financiamento externo. Hoje, a nota de crédito da Moody’s está ainda mais baixa do que em 2010, mas chegou a ser pior. Pudera: a dívida do país está em 130% do PIB.
Também em 2010, o desemprego atingiu uma alta histórica e chegou a 11%, nível que não havia sido observado em duas décadas. A partir daquele momento, o desemprego se descolou significativamente da média da UE, chegando a 16.2% em 2013 (uma diferença de 4.3% para mais em relação à média do bloco), mas já vinha crescendo continuamente desde, pelo menos, 2001, e passou a ser mais alto que a média em 2006. Este quadro reflete a trajetória do PIB de Portugal: de 2000 a 2007 o crescimento do PIB per capita permaneceu abaixo da média da UE, ficando praticamente igual em 2008 e apenas menos negativo em 2009.
Com seus bancos enfraquecidos, dívida e déficit orçamentário fora dos limites, notas de crédito em queda e juros altos, era óbvio que a confiança demoraria a se reestabelecer. Ainda que, por um milagre, os juros baixassem e as agências de rating passassem a ser otimistas, o crescimento lento e o desemprego em franca expansão não permitiriam gerar renda suficiente para que a dívida fosse paga. Em maio de 2011, sem alternativas, Portugal fechou um acordo de resgate no valor de 78 bilhões de euros com o FMI e a União Europeia, cuja contrapartida seria o corte de gastos. Esse acordo acabou fazendo grande diferença, ajudando na reestabilização da economia portuguesa.
Um pouco antes, o Primeiro Ministro Socialista, José Sócrates, havia renunciado por falta de apoio parlamentar. No cargo desde de 2005, ele havia proposto aos congressistas um pacote de austeridade que ia contra o perfil de seu governo, que sempre deu ênfase aos gastos correntes em detrimento do investimento público, como veremos. As medidas iam desde de aumentos severos de impostos até cortes de salários de funcionários públicos. Elas não eram em nada diferentes daquelas que o Primeiro Ministro que o sucedeu, o Social-Democrata Pedro Passos Coelho, teve que implementar após o acordo com a UE e o FMI.
Mas como, exatamente, a dívida soberana explodiu, levando os mercados financeiros de Portugal a se desestabilizarem de tal forma que o impacto da crise internacional foi muito maior? Há duas razões. A primeira, que é a mais fundamental, é o peso dos gastos do governo português. A segunda, que surge também como consequência da primeira, é o nível de incerteza sobre o futuro da economia do país. Estas duas respostas também iluminam bastante a situação atual e, por isso, vamos esmiuçar cada uma delas. Trateremos da primeira neste texto e da segunda, no próximo.
Em quê tanto gasta o governo de Portugal?
Os gastos do estado português vêm, há tempos, sendo excessivos. O resultado orçamentário do país, isto é, tudo que o governo arrecada menos o total de suas despesas, é negativo e ultrapassa o limite imposto pela UE há mais de uma década, como mostra o gráfico abaixo.
Estes gastos, como proporção do PIB, são persistentemente mais altos que os da média da UE em pelo menos cinco das nove subáreas pesquisadas pela Eurostat, sendo as outras quatro bem menos relevantes em termos numéricos para qualquer país do bloco. Os percentuais dos gastos do governo central nas cinco subáreas são mostrados no gráfico abaixo, para dois momentos distintos: antes da crise (2006) e na potencial retomada (2015, de quando data o último dado disponível). Entre estes dois períodos, os valores de Portugal foram sempre mais altos que a média.
Chama a atenção a discrepância dos gastos com serviços públicos: em 2014, a diferença chegou a ser de 6.2% e hoje está em 5.5%. Os dados desagregados explicam. A maior parte dos gastos do governo central consiste em repasses a outros níveis do executivo. Em 2008 e 2009, por exemplo, quando os gastos de todas as instâncias administrativas com serviços públicos ainda se comparavam à média da UE, era sua principal componente que destoava: os desembolsos com os órgãos legislativos e executivos estavam em torno de 3.5% do PIB, constrastando com a média de 1.9% da UE.
Outro componente importante deste tipo de gasto é o serviço da dívida, que rodava a 3.2%, mas não era muito mais alto que a média de 2.7% dos países do bloco em 2006. Em 2015, naturalmente, esta rubrica passou a ser maior em Portugal, perfazendo 4.7% do PIB, contra a média 2.4% da UE. Já as despesas com órgãos públicos não diminuíram muito, sendo de 3.1% em 2015, enquanto a média do bloco permanceu em 1.9%.
A máquina pública tem um peso enorme em Portugal e é um obstáculo ao crescimento do país. Em 2010, o governo já consumia metade das riquezas criadas. [5] A maior parte destes recursos não são direcionados a benefícios sociais, como nos demais países da Europa onde o governo tem tamanho semelhante, e sim a uma multiplicidade injustificada de órgãos públicos. Segundo especialistas, há inúmeras competências redundantes, principalmente nos chamados governos civis criados no século XIX, que duplicam funções que passaram a ser dos municípios e, até hoje, não foram extintos. [6] Outro exemplo de desperdício é a alta remuneração dos funcionários públicos. A má gestão de seu trabalho e a estabilidade de que gozam, com promoções automáticas e a impossibilidade de serem demitidos, são improdutivas e oneram desnecessariamente os contribuintes.
A proliferação das parcerias público-privadas (PPPs) também tem papel central na amplitude e na ineficiência do gasto. O governo tipicamente forma estas parcerias para melhorar suas contas, na tentativa de repassar os custos ao setor privado. Não raro, no entanto, as concessionárias acabam tendo que receber indenizações do governo porque os contratos foram mal desenhados, ou consultores privados precisam ser contratados para auxiliar equipes governamentais mal preparadas. [7] Isto eleva os custos acima do planejado, gerando prejuízo. A banalização das PPPs é outra preocupação. Muitas vezes, o governo paga mais caro por serviços que ele mesmo poderia prover a menores custos. [8] Em suma: há uma notável ausência de planejamento estratégico.
Saltam aos olhos, também, os gastos com saúde e educação. É verdade que tanto o sistema de saúde quanto o sistema de educação português vêm se provando exemplares. Os índices da Health Consumer Powerhouse (HCP), pesquisa elaborada com o apoio da Comissão Europeia, mostram uma trajetória espetacular para Portugal. Em 2009, o país era apenas o 25º entre os 33 países europeus, ou seja, seu sistema de saúde era considerado um dos piores da Europa. Já em 2016, Portugal saltou para 14º, ficando na frente de países como Reino Unido, Espanha e Itália.
Os resultados da educação não são menos impressionantes: no PISA, exame internacional para medir o desempenho dos estudantes, Portugal é o único país europeu que melhora a cada ano, mesmo com a redução dos salários dos professores e o aumento do número de estudantes [9], tendo boa colocação nas 3 competências avaliadas – matemática, ciências e leitura [10]. Em todas elas, ultrapassa Estados Unidos, Israel, Espanha e Itália; em ciências, fica na frente de Noruega, França, Suécia e Áustria; em leitura, tem mais sucesso que Reino Unido, Suíça e China. Além disso, se repetentes não fossem incluídos na conta, Portugal teria um honroso 2º lugar em ciências, atrás apenas de Cingapura.
Entretanto, há bons indícios de que as despesas poderiam ser mais eficientes nas duas áreas. Dados da Eurostat mostram que, de 2002 para cá [11], Portugal gastou mais em educação do que todos os países europeus que estão em sua frente em todos os três rankings do PISA. No caso da Alemanha, a diferença pode chegar a quase 3% como proporção do PIB. Na saúde, metade dos países que superam Portugal no índice da HPC gastaram menos nos últimos 20 anos. O grande destaque é a Suíça, que ostenta a 2ª posição na classificação da HPC, mas emprega em média apenas 2% do PIB por ano em saúde, em contraposição aos 6.6% de Portugal, aos exuberantes 7.6% da Dinamarca ou aos 6.3% da 1ª colocada, a Holanda.
Só o tempo irá dizer se o governo português gastou mesmo mais do que era necessário para obter estes resultados em saúde e educação ou se esse alto investimento foi determinante para tornar estes serviços comparáveis aos dos países mais ricos da União Europeia. De todo modo, o esforço ainda não se refletiu no crescimento do país. A produtividade, medida em termos do PIB por horas trabalhadas, é de 35 dólares, ainda praticamente a metade da média da Zona do Euro, de 59 dólares. [12] Este quadro tende a melhorar com a absorção dos jovens, agora mais bem preparados, pelo mercado de trabalho. Apesar de a taxa de desemprego entres os jovens ser uma das maiores da Europa, ela vem diminuindo desde 2013. [13]
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Na segunda parte desta discussão confira como Portugal reconquistou o acesso aos mercados financeiros internacionais e a importância de sinalizar estabilidade neste processo. Faremos, também, um paralelo com o caso brasileiro, já que tivemos recentemente um exemplo prático de desorganização das contas públicas e estamos em um momento de recuperação da confiança.
Talitha Speranza – Editora do Terraço Econômico
Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico
Referências:
[1] https://www.ft.com/content/cd87cce9-499c-35a9-901c-04e19b7d8a3d
[3] Dados da Eurostat, disponíveis em : http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Government_expenditure_by_function_%E2%80%93_COFOG
[8] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/08/internacional/1481200752_446018.html
[9] Dados da EHCI, disponíveis em http://www.healthpowerhouse.com/files/EHCI_2016/EHCI_2016_report.pdf
[10] Ranking do PISA 2015: https://en.wikipedia.org/wiki/Programme_for_International_Student_Assessment#PISA_2015
[11] 2002 é o ano a partir do qual os dados estão completos para todos os países examinados.
[12] Dados da OCDE, disponíveis em http://stats.oecd.org
[13] Dados do Banco Mundial, disponíveis em http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=world-development-indicators#
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