Incomoda-me profundamente o tom seguro e excessivamente confiante com o qual tendemos a emitir opiniões e juízos. Não digo isso apenas por nos posicionarmos automaticamente como porta-vozes da verdade, da razão, da certeza, sem sequer levarmos em consideração a mera possibilidade do engano – quanto a isso podemos nos conceder um desconto, dada a dificuldade de se distanciar, até emocionalmente, de suas próprias crenças e opiniões. A empáfia que realmente me tira do sério se traduz no tratamento dado aos virtuais opositores de nossas posições assumidas: são completos imbecis, quando não criminosos de má-fé.
A forma-padrão de exposição em artigos de opinião na imprensa e demais análises na mídia consiste na apresentação geral do assunto – a qual já pode conter a posição a ser defendida -, seguida pela exposição do adversário-espantalho devidamente enfraquecido e esvaído de qualquer qualidade, conduzindo à seção final de linchamento e humilhação visando ao reforço da opinião sustentada, à guisa de conclusão.
Exemplifico. Se eu quisesse escrever uma opinião sobre qual o melhor bicho de estimação entre cães e gatos, eu deveria – segundo o script exposto – “escolher um lado” e proceder não com comparações entre ambos, mas com o retrato mais depreciativo e ofensivo possível da alternativa indesejável: gatos são as piores criaturas que já pisaram sobre a Terra, logo, cães são os melhores bichos de estimação. Se, por acaso, eu elencasse qualidades de ambos os lados, reconhecesse “vantagens” tanto dos cães quanto dos gatos e admitisse que, sob certos aspectos, gatos podem ser considerados melhores animais de estimação que cães mas que, no cômputo geral, estes últimos levam a melhor, eu seria acusado de “falso defensor” da minha posição – quiçá, diriam “você traiu o movimento cão, véi”. E o pior: todo este cenário visto como a mais perfeita normalidade.
Agora imaginem a cena: o treinador de uma equipe de futebol é chamado a responder a pergunta de um jornalista sobre a opção tática de sua equipe. Na coletiva de imprensa, ao invés de justificar que as peças disponíveis no elenco do time renderão melhor em campo no 3-5-2 e que o esquema deve variar em função da equipe, o treinador ataca as alternativas: chama de antiquados os adeptos do 4-4-2, de românticos ingênuos os que defendem o 4-3-3 e de vítimas da moda os que advogam pelo 4-2-3-1. Na semana seguinte, como ele seria capaz de justificar uma derrota (ou mesmo empate!) diante de um adversário que adotasse qualquer desses esquemas?
Chega de exemplos humorísticos. Substituam “cães e gatos” e “esquema tático de futebol” por: formas de governo, o papel do Estado na economia, limites da liberdade de expressão, direitos de minorias, sistema penal-carcerário, eutanásia, métodos de interpretação de textos filosóficos, literários, apreciação estética, tonalidade na música e até o clássico “Beatles versus Rolling Stones”.
Defender incondicionalmente qualquer ponto de vista apelando para a ojeriza e ridicularização do contrário me parece levar necessariamente a essas complicações, sobretudo quando a crença é contradita pela realidade – o que leva a malabarismos teóricos bastante constrangedores. Há quem diga que é assim que se deve proceder quem quiser persuadir o interlocutor, que tratar os adversários com honestidade é até mesmo prejudicial a esse objetivo e que a persuasão é a natureza de qualquer debate público (político, intelectual, cultural, esportivo…).
Minha impressão pessoal é contrária: sinto-me mais propenso a me deixar persuadir por exposições que demonstrem reconhecer a complexidade da questão e das escolhas envolvidas, ponderando prós e contras de todos os lados antes de passar a régua e indicar o que parece ser a melhor opção. Mas não é suficiente como argumento geral, então devo acrescentar: longe de contribuir para qualquer avanço, o debate com espantalhos serve à manipulação, ao reforço da ignorância, à sectarização e ao aumento da violência na esfera pública.
A consequência da honestidade possível com qualquer assunto – consequência esta que deve acabar transparecendo em qualquer texto ou intervenção oral – é principalmente esta: hesitação. Reconhecer limites, vieses, qualidades e defeitos, incerteza, necessidade de reavaliação. Tudo isso demonstra, ao invés de fraqueza e ignorância, consciência e propriedade no tratamento de qualquer questão. É preciso desconfiar de quem não hesita, de quem aparece como porta-voz da certeza e verdade absolutas. É preciso hesitar, titubear, duvidar de si mesmo. É o preço que temos que pagar pela honestidade – conosco e com os que nos cercam.
Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico