O dicionário Oxford elegeu o termo pós-verdade como “A Palavra do Ano”. Embora a tradição de escolher a palavra que melhor sintetize os eventos do ano-calendário não faça muito sentido para nós e ainda que a escolha importe mais à comunidade anglófona que às demais, pós-verdade é um conceito que elucida bastante bem o 2016 dos brasileiros ao menos em uma dimensão: a política.
Segundo o dicionário, o termo denota circunstâncias nas quais fatos objetivos exercem menos influência na moldagem da opinião pública do que apelos a emoções e crenças pessoais[1]. Num contexto de pós-verdade, mais vale a repetição de frases feitas e chavões do que o contraditório e o debate. Nessa situação, objeções factuais pouco importam, porque a própria verdade factual pouco importa.
No mundo da política, a figura que melhor personifica tal configuração discursiva é, sem dúvidas, Donald Trump. Isso não quer dizer que os demais políticos não tenham por hábito ignorar fatos e focar na condução dos humores do público, exemplos disso abundam tanto à esquerda quanto à direita; mas ninguém elevou essa estratégia a plataforma eleitoral de modo tão explícito e eficiente quanto o atual presidente dos Estados Unidos. Num recente jantar de negócios, poucos dias antes de tomar posse, Trump rebateu membros da imprensa que contestavam algumas das principais afirmações e promessas de campanha do candidato com um simples “não importa, eu ganhei”. Pouco importa a verdade, o que importa é o (meu) resultado.
Essa frase não pode ser lida como mera bravata de um falastrão que mais parece um personagem saído de uma ópera-bufa; trata-se, antes disso, de uma revelação do que é a essência do discurso político na atualidade. Quando um indivíduo detentor de mandato eleitoral ou postulante a um cargo fala, ele ou ela não levanta uma pretensão de verdade em seu discurso, mas uma pretensão de eficácia. Na fala política, não importa estar certo ou errado, dizer (intencional ou acidentalmente) verdades ou mentiras, mas gerar um determinado efeito – arregimentar votos, conquistar apoio político, manter elevadas taxas de popularidade e aprovação, etc. Quais as consequências disso?
A mídia é chamada positivamente de quarto poder, tanto pela influência que desempenha perante a sociedade quanto pelo papel de controle fiscalizatório que exerce junto aos três poderes tradicionais do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário. Quanto a essa função de fiscalização, uma das iniciativas mais ostensivas da imprensa nesse sentido são as chamadas agências de checagem de fatos. Seu papel, como o nome sugere, é atestar a veracidade factual de declarações proferidas por mandatários e candidatos.
Assim como no curso da disputa presidencial estadunidense, a checagem de fatos ganhou relativo destaque durante as eleições municipais no Brasil em outubro passado. A Agência Lupa[2], ligada à Revista Piauí, atuou com afinco durante o período de propaganda e debates eleitorais no ano passado, mostrando quais afirmações e promessas dos candidatos estavam de acordo com a realidade e quais não passavam de palavras ao vento, flatus vocis. No entanto, o louvável e rigoroso trabalho dessas agências pareceu não ser decisivo na alocação de votos por parte dos eleitores, tampouco pareceu constranger candidatos e fazer com que se inclinassem na direção da veracidade.
Ora, tais efeitos são consequência de um descompasso entre a cobrança da mídia e a dinâmica do discurso político-eleitoral: enquanto aquela produz avaliações segundo o padrão de verdade, este se articula em torno do critério de eficácia. Depositar esperanças no mecanismo de checagem de fatos é, portanto, ignorar a atual configuração da política e seu elemento fundamental: o cinismo.
De longa história na filosofia ocidental, o termo cinismo remonta à Grécia do século IV antes de Cristo, quando um grupo de filósofos – tendo Diógenes de Sinope[3] como seu representante arquetípico – defendeu que o caminho para a felicidade, ou para uma boa vida, seria domar impulsos e instintos comuns (desejos por poder, riqueza e sexo, por exemplo) para viver uma vida ascética e moderada, equilibrando natureza e razão. A retomada contemporânea do termo, entretanto, aponta para um sentido bastante diverso: o filósofo alemão Peter Sloterdijk[4] publica, em 1983, a obra Crítica da razão cínica, na qual usa agentes duplos como exemplo de razão cínica – uma forma de pensamento estratégico, instrumental, pragmático e manipulador. No mundo contemporâneo, cínico é quem veicula em seus discursos uma intenção distinta daquela que verdadeiramente tem, com vistas a obter dos interlocutores uma determinada reação desejada, que lhe produza vantagens. É o tipo de mentira praticada por espiões, jogadores de pôquer, de truco e por nosso objeto de análise: políticos.
Pois bem, e daí? Que o discurso político seja essencialmente cínico parece óbvio, quando paramos para pensar nesses termos. O oposto desse cinismo seria uma ingenuidade crua, um compromisso com a verdade que não tem lugar na política desde, pelo menos, Nicolau Maquiavel[5] – chutando baixo. Duas alternativas apresentam-se a nós: ou bem aceitamos e abraçamos o cinismo político, subscrevendo o vale-tudo discursivo (e de ação) dessa esfera discursiva e social; ou então, recusando o império cínico, reafirmamos a necessidade de um compromisso mínimo com a verdade e a veracidade na política.
Na primeira alternativa, ratifica-se o salve-se quem puder; na segunda, cria-se um contexto em que a checagem de fatos passa a ser uma poderosa e valiosa ferramenta de informação e aperfeiçoamento político-institucional. Hoje, tal como o tabuleiro está disposto, estamos mais próximos do cenário anterior.
Rafael Barros de Oliveira
Notas [1] https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth [2] http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/quem-somos/ [3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%B3genes_de_Sinope [4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peter_Sloterdijk [5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolau_Maquiavel