Nos últimos anos, a pauta das políticas públicas municipais nas grandes cidades do país foi tomada pela questão do transporte. Discussões sobre o preço das passagens, sobre a extensão tímida das malhas urbanas e sobre a inclusão de diferentes modais – especialmente a bicicleta – no plano municipal de mobilidade dominaram a ordem do dia. De lá pra cá, o debate acerca da ocupação, distribuição e gestão do espaço urbano se consolidou de forma a gerar desdobramentos para além do tema inicial dos transportes.
Quando o recém-empossado prefeito da cidade de São Paulo, João Dória Júnior, tomou a polêmica medida de pintar de cinza grafites e pichações espalhados por muros públicos, a contenda se articulou novamente em termos de uso do espaço: a quem pertence os muros? Quem tem o direito de pintá-los? Quem decide como eles serão ocupados?
Além de mobilidade e arte de rua, questões de moradia e destinação de prédios públicos compõem a paleta a partir da qual pensamos a cidade no espaço. Trata-se de uma dimensão crucial na vida das pessoas, mas o problema é que ela tem aparecido como a única e, consequentemente, ofuscado seu par de igual importância: o tempo. Como pensar a cidade no tempo? Inversamente: como pensar o tempo na cidade?
Tomemos o caso da arte de rua como exemplo. Suponhamos que haja um consenso que separe grafite de pichação – um consenso construído, inclusive, entre grafiteiros e pichadores. Suponhamos, ademais, que se chegue a um acordo sobre o espaço: a prefeitura concorda em destinar determinados muros à realização de grafites e se responsabiliza pela preservação das obras nesses locais – o picho, por sua vez, permanece fora do combinado, em prol da manutenção do caráter marginal de protesto dessa forma de intervenção (que, por sinal, não se pretende primordialmente artística). Pois bem, resolvida a questão do espaço, solucionado o conflito, não? Não.
Nesse cenário hipotético, ainda haveria uma pendência em aberto: por quanto tempo a obra permaneceria naquele espaço? Isso porque, ao contrário de intervenções no espaço urbano que se pretendem permanentes (por exemplo, o obelisco ao lado do Parque do Ibirapuera, a Torre Eiffel, o Portão de Brandemburgo, etc.), o grafite constrói sua relação com a cidade concebendo-a enquanto unidade orgânica, em constante movimento e transformação, e se inserindo nessa dinâmica de criação e destruição. Uma obra dessas tem como elemento constitutivo a efemeridade: ela é feita para não durar “para sempre”. Sendo assim, quanto ela deve durar? Voltemos ao cenário do parágrafo anterior: uma vez separado o espaço destinado à intervenção e decididas as pessoas que a realizarão, ainda resta a dúvida de quanto tempo a obra deve durar. E a quem caberia decidir isso? À artista ou ao artista que realizar a pintura? A quem se dispuser a substituí-la com uma nova? Ao poder público, concessor do espaço? À comunidade grafiteira? Ao povo da cidade?
Essas questões trazem, no fundo, um choque de temporalidades diversas que devem coexistir num mesmo espaço cívico. Desde há muitos séculos, conceituar e definir a noção de tempo tem sido um desafio que se apresenta às mais variadas disciplinas do pensar humano: da física à literatura. Na filosofia, a pergunta sobre a natureza temporal assume proeminência com Agostinho de Hipona, no século IV da era cristã. Desde então, o assunto não deixou de figurar na obra de diversos autores das mais distintas correntes filosóficas até a contemporaneidade. Dentre eles, merece destaque para a discussão aqui proposta a figura de Henri Bergson, filósofo francês que escreveu no final do século XIX e na primeira metade do século XX e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1927.
Bergson propôs a oposição entre duas dimensões temporais distintas: uma temporalidade objetiva e uma temporalidade subjetiva. A temporalidade objetiva, mensurável e quantificável, é aquela à qual aludimos quanto falamos das horas, dias, meses, anos e séculos, um tempo no qual todos coabitamos tacitamente e que serve de base para interações entre as pessoas. A temporalidade subjetiva, no entanto, não é mensurável e quantificável, variando de pessoa para pessoa: trata-se da consciência individual da duração e da passagem do tempo.
Sabe aquele momento feliz em que horas parecem transcorrer num segundo e aquela aula tediosa que parece se arrastar por séculos? Pois bem, o esforço de Bergson foi tentar dar dignidade a essa percepção, conferindo-a um espaço que lhe vinha sendo negado pelas sucessivas tentativas de espacialização do tempo: redução do tempo a indicadores objetivamente mensuráveis. Embora haja um tempo comum a todos, seria um equívoco negar que ele é apreendido em ritmos distintos por cada um de nós.
As ideias de Bergson influenciaram não só filósofos posteriores (como Maurice Merleau-Ponty e Paul Ricoeur), mas também obras literárias (notadamente a série Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust) e deveriam ser levadas a sério por nossos gestores públicos. Isso porque a dupla dimensão da temporalidade ajuda a lançar luz sobre um aspecto fundamental das políticas públicas numa sociedade democrática: o desafio de estruturar um andamento comum de base sobre o qual diferentes indivíduos possam intervir em tempos e velocidades distintos. Ao invés de regular e restringir o ritmo de vida e de existência no espaço urbano, a tarefa do poder público é permitir o livre desenvolvimento de nossos ritmos individuais ao máximo, intervindo apenas quando os choques entre eles tornarem a coexistência impossível.
Dessa forma, dar vazão e dignidade para essas demandas temporais é uma decisão que impacta diversas questões, não apenas a contenda do grafite na cidade. Voltemos ao transporte público: desenhar uma malha urbana não é apenas decidir os fluxos preferenciais dos cidadãos, privilegiando este ou aquele caminho e esta ou aquela região; é também determinar o ritmo do deslocamento (a depender do modal escolhido) e mesmo da vida das pessoas – uma maior ou menor oferta de transporte público em determinados horários afeta a maneira como empresas e cidadãos planejam seus horários de trabalho e sua rotina cotidiana.
Quanto mais normatizadora a postura do poder público, mais engessada será a convivência das milhões de consciências temporais distintas e dos milhões de projetos de vida diferentes, prejudicando, inclusive, a dinamização da economia. Tal qual um maestro de orquestra, o papel do poder público é garantir um andamento sólido de base à marcha da vida em sociedade, sobre o qual cada indivíduo, à maneira de um instrumento, possa realizar sua intervenção singular e compor, com o mínimo de afonias e cacofonias possível, a sinfonia democrática da existência em comum.
Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico