O hukou, uma espécie de registro de residência chinês, é uma das facetas mais impressionantes da revolução comunista de 1949. Nesse sistema, todo cidadão é legalmente obrigado a registrar sua região residencial (hukou suozaidi) e se o tipo de hukou (hukou leibie) deveria ser rural ou urbano. O enforcement desse “título” é uma das marcas do regime autoritário chinês, onde pessoas portadoras de um hukou rural não podem morar em áreas urbanas e vice-versa. Seu objetivo era, basicamente, identificar e atrelar indivíduos à sua cidade de origem de forma a controlar fluxos migratórios, engendrar mobilidade econômica-social e gerir programas de benefícios sociais.
Com isso, essa ferramenta de controle da liberdade individual permitiu que o Politburo chinês permanecesse no poder sem grandes ameaças ao status quo, fato que pode ser observado até os dias atuais. Essa dicotomia entre o “cidadão urbano” e “cidadão rural” criou um apartheid estrutural no país, além de condicionar determinados comportamentos que interessavam o governo; estudo e ingresso na Partido ou alistamento no exército. O hukou, então, virou uma instituição que é parte do tecido sócio-político-histórico da China. Explicarei o hukou sucintamente em partes. Primeiro, suas características. Depois, seus incentivos. Por fim, suas consequências. Um pequeno adendo; adianto que não pretendo discutir a moralidade desse sistema, apenas apresentá-lo.
Nascer em uma aldeia rural no interior da China significa ser portador de um hukou rural. Isto é, um vínculo vitalício e hereditário, com poucas exceções, ao seu lugar de origem. Esse documento dará direitos a certos benefícios sociais condizentes com as predeterminações da sua província e regulamentará onde você pode morar e estudar. Caso queira mudar para uma cidade, não terá direitos a programas sociais da região ou acesso às escolas. Aqueles que nasceram nas grandes cidades recebem o hukou urbano e têm acesso a benefícios que os rurais não têm. O problema é que as restrições deveriam impactar os dois lados igualmente, mas, evidentemente, não é o caso. Os nascidos em regiões urbanas têm pouquíssimo incentivo econômico-social para migrar para zonas rurais, sendo extremamente raro os casos que buscaram a mudança de um hukou urbano para rural.
Assim, emergem os incentivos. As poucas maneiras de ascender de um hukou rural para urbano é através do ingresso em instituições de ensino superior, carreira no Partido ou no exército. Logo, há um grande incentivo à educação. De fato, a média de anos estudados na China é de 10,8 por pessoa, alto em valores absolutos, mas excepcionais quando ajustado por renda per capita. Para ilustrar, o Exame Nacional de Admissão ao Ensino Superior (Gaokao) na China é um dos vestibulares mais concorridos do mundo e um marco cultural para as famílias chinesas. As duas outras maneiras mais convencionais de conseguir essa transição são empregos no exército e no Partido, mesmo que não garantam obrigatoriamente a emissão de um hukou urbano. Esses incentivos ajudaram o governo chinês a manter grande controle do status quo e criação de uma mão de obra relativamente qualificada que impulsionou a China ao leviatã econômico que é hoje.
As consequências do hukou não são triviais de mensurar e identificar. A sua implementação tinha o objetivo de controlar o fluxo migratório doméstico no país, limitar liberdades individuais, condicionar incentivos e mapear as características sócio geográficas do país. Isso acarretou em uma sociedade desigual, dicotômica, pouco móvel (tanto no sentido espacial como social) e profundamente reprimida. No entanto, ao mesmo tempo, potencializou o controle estatal que permitiu a China virar a segunda maior economia do mundo contemporâneo. Hence a não trivialidade.
Hoje em dia, o hukou é mais flexível do que no século passado e sofrerá mais reformas no futuro, dado o aumento de demanda por trabalhadores em centros urbanos e diminuição da população em idade economicamente ativa. Mesmo assim, a sua existência formal em 2021 é inesperada, me surpreendo por ser a formalização de uma segregação velada que ocorre, em intensidades e maneiras diferentes, ao redor do mundo. A conclusão é que estudar a China é absolutamente fascinante e desafiador e entendemos pouco da história oriental, o hukou sendo apenas um dos exemplos disso.
Observação: reitero que o escopo deste texto não é discutir a moralidade do hukou ou do sistema político-econômico chinês, apenas trazê-lo à tona. Para isso, recomendo “The Narrow Corridor” de Daron Acemoglu e James Robinson (não que eles discutam a moralidade, mas explicam as vantagens e desvantagens do sistema político-econômico chinês. Também, nunca perco a chance de recomendar algo do Acemoglu).
João Mercadante
Formado em Ciências Econômicas pelo Insper e é economista na Apex Capital.