Viagem de Chihiro é um bom filme. Bom, não. Excelente. Mas é lembrado pelas razões erradas. Não são seus desenhos bonitos que o tornam especial. Tampouco, as fantasias que decoram o enredo. Estas nada mais são que enfeites. Bonitos, com certeza. Mas, no fundo, apenas enfeites. O que o torna genial são suas esquecidas críticas à economia japonesa do início do século.
Tudo começa quando Chihiro dá-se conta de que sua vida depende de um emprego. Desespera-se. Recorre à Yubaba. Trata-se de uma bruxa má. Amarga, chata. Para não dizer coisa muito pior. Era dona de uma casa de banho. Para Chihiro, bastava. Sem muitas opções, implorou-lhe um emprego. Conseguiu. Mas submetendo-se a más condições de trabalho.
O anime não foi ao ar na época em que o governo ampliou a base monetária para financiar os gastos militares da ocupação do sudeste asiático. Foi lançado em 2001. Tinha-se deflação. Somente 5,5% da força de trabalho procurava emprego. Mas os japoneses tinham a sensação de que a economia ia mal. Que, como a personagem principal, eram compelidos a defender seus empregos como se suas vidas dependessem disso. É evidente que empregos importam. Tolos são os que dizem o contrário. Mas a demissão, até onde sei, nunca transformou nenhum trabalhador em porco. Aliás, disso se segue a pergunta: por que a população japonesa achava que tudo ia tão mal? A única explicação que me ocorre é a trajetória da taxa de desemprego nos anos anteriores ao lançamento da animação.
No mundo, é muito comum que se associe a economia japonesa a algo que funciona direito. Se consideradas somente as últimas décadas, faz sentido. Desde os anos 90, os preços oscilam, bem comportados, em torno de 0% a.a. A taxa de desemprego média do período está entre as mais baixas do mundo. Mas durante a década de 90, o desemprego cresceu sem dar trégua. Não importa se era baixo. De 1991 em diante, subia. Foram dez anos consecutivos perdendo postos de trabalho. Não é pouco. Em especial, para uma economia acostumada a taxas de desemprego tão baixas quanto as japonesas. No Chile, não tem tanto tempo assim, algo parecido aconteceu. O país não ia mal. Longe disso. Em comparação com seus vizinhos, o desempenho da economia era excelente. Os indicadores não explicavam, sozinhos, a adesão popular às passeatas. O problema era muito mais profundo do que se podia imaginar.
Por mais pertinente que fosse, o teor crítico do anime perdeu-se no tempo. Tem muitas maneiras de explicar por que razão isso aconteceu. A meu juízo, ela está ligada à superação das agruras a que os, hoje, quarentões japoneses estiveram sujeitos. Esta vitória, por ter sido acompanhada da merecida popularidade do filme entre os mais jovens, esvaziou um pouco o caráter da obra. É uma pena. Para traçar um paralelo, é como se milhões escutassem as canções escritas pelo Chico Buarque desavisados do passado político fortemente autoritário dentro do qual elas foram ao ar. Viagem de Chihiro não é filme de criança. É coisa séria. É a melhor animação da história. Com efeito, um dos melhores filmes do século. E seu valor crítico deve ser resgatado das quietas águas do esquecimento.