Desigualdades: biologia, história e sociedade
Todos nascemos diferentes: em nacionalidade, sexo, etnia, diversas características físicas, propensões a enfermidades futuras, classe social, etc. Isso é um fato, e um fato em dois sentidos: biológico e histórico-social.
Em sentido biológico porque nenhum indivíduo é completamente idêntico ao outro. Mesmo entre gêmeos univitelinos, há algum grau de diferenciação. E já que não parece se desenhar um horizonte de clonagem de pessoas exatamente idênticas – ainda bem! –, pode-se dizer que essa desigualdade fundamental permanecerá uma característica de nossa espécie.
Em sentido histórico-social porque as diferenças mencionadas acima são mais ou menos valorizadas, dependendo do momento histórico e do contexto social em que ocorrem. Essas valorações variam no tempo e no espaço e são, em geral, produto destes – do tempo e do espaço. Ao contrário do aspecto biológico, o aspecto histórico-social pode ser trabalhado, modificado e minorado.
Há pessoas que dirão que isso pouco importa: assim como somos biologicamente diferentes, somos histórica e socialmente diferentes e nada devemos – embora empiricamente possamos – fazer a respeito. Há pessoas que, por outro lado, reconhecem que o fato de podermos trabalhar histórica e socialmente essas desigualdades valorativas cria uma espécie de dever moral de que o façamos.
Este texto é para o segundo grupo de pessoas. Se você acredita que desigualdades históricas e sociais devem ser naturalizadas e normalizadas, este texto não é para você. Por uma questão de extensão e complexidade argumentativa, limito meus interlocutores ao segundo grupo.
Entre eles, há divergências sobre como atuar sobre as desigualdades e distinções de nascimento. Uns apostarão na intervenção pública, estatal, como força motriz dessa empreitada; outros apontarão para a caridade, a livre-iniciativa dos indivíduos e outras formas. Para o que me interessa aqui, pouco importa.
O que eu gostaria de discutir neste texto é a seguinte pergunta: de que natureza são essas diferenças histórico-sociais? A que tipo de pretensão ou reivindicação pessoas que são histórico-socialmente desvalorizadas em virtude de características genéticas ou de nascimento têm direito?
Desigualdade: uma questão ético-moral
Sem reducionismos materialistas e econômicos, sustento que desigualdade é uma questão ético-moral. E isso porque me refiro, aqui, a desigualdades de ponto de partida, ou seja, “adquiridas” simplesmente pelo nascimento – desigualdades essas que transcendem distribuições desiguais de recursos materiais, embora possam estar a elas relacionadas.
Uma pessoa ser discriminada – entendido aqui como socialmente desvalorizada ou subvalorizada – em virtude de seu gênero, sua etnia, nacionalidade ou origem social é uma injustiça de caráter ético-moral. Essa relação de desigualdade, que está na base do que hoje chamamos de privilégios e opressões, é radicalmente injusta e, na medida em que pudermos atuar sobre elas para reduzi-las, devemos fazê-lo.
Alguém que sofre com esses juízos assimétricos tem direito, portanto, a algum tipo de reparação ético-moral. Independentemente do mecanismo – vide as divergências assinaladas acima –, o que esse indivíduo quer é deixar de ser desvalorizado ou subvalorizado em virtude de características que lhe acometeram na loteria genética e do nascimento. Trata-se de uma reivindicação por tratamento justo, minimamente racional e consequente: ser julgado por qualidades e defeitos que dizem respeito a suas ações e decisões, não apenas às circunstâncias casuais às quais se está preso.
Parece-me necessário reforçar este ponto: quem sofre de preconceitos e opressões tem direito a reparações e reivindicações no campo ético-moral. E apenas neste. Explico.
Prejuízos éticos, privilégios estéticos e epistemológicos
Ao longo de milênios, é possível encontrar nas produções culturais humanas justificativas para a superioridade de uma parcela da população sobre as demais baseadas fundamentalmente em preconceitos éticos – calcadas em desigualdades da loteria genética e de nascimento. Preconceito contra estrangeiros, contra membros de outras etnias, de outro(s) gênero(s), etc.
Se por tanto tempo vimos a naturalização de diferenças e a elevação de uma diferença (circunstância, configuração) específica ao status de superior, nas últimas décadas, temos visto o crescimento de movimentos contrários. Desde meados do século XX, o desafio filosófico ao universalismo que caracterizou boa parte da tradição ocidental levou ao outro extremo do pêndulo.
Não satisfeitos em denunciar a maneira como padrões universais são, no mais das vezes, naturalizações e normatizações generalizantes de situações particulares – sempre pautadas no homem, cis, branco, europeu, judaico-cristão, burguês, etc., etc., etc. –, intelectuais relativistas (pós-modernos, decolonialistas, etc.) passaram a reivindicar uma espécie de injustiça invertida: se algo ou alguém é parte ou provém de uma minoria, é automaticamente superior, mais valoroso. Para ficar em dois exemplos: produções artísticas de camadas mais desfavorecidas da população, de países periféricos, de gêneros não-binários são esteticamente superiores àquelas “tradicionais”, feitas por pessoas privilegiadas na sociedade. A visão de mundo das pessoas mencionadas acima é epistemologicamente mais valorosa do que a de pessoas privilegiadas, que não fazem mais do que reproduzir violências históricas e sistêmicas em seu discurso.
Essa inversão automática carece de uma série de mediações nada intuitivas e evidentes e pode ser reduzida à seguinte estrutura: a condição X foi histórica e socialmente desvalorizada de maneira injusta e preconceituosa; quem participa da condição X é vítima de preconceito e opressão injustos e deve ser reparado; quem participa da condição X, porque ética e moralmente injustiçado, produz melhor arte e tem acesso privilegiado à realidade, enxerga melhor o mundo. No meio dessa discussão toda, conceitos como “lugar de fala” são mobilizados para marcar posição, guardar supostos limites para discussões e pautar reivindicações de superioridade política, estética e epistemológica.
Parece haver uma clara falha de raciocínio aqui. Ela consiste na extrapolação de uma situação ético-moral para as esferas da arte e do conhecimento. Trata-se, no limite, da absolutização do político, elevado a categoria totalizante que explica e esgota a realidade da existência humana. Mas essa discussão fica para outro texto. Voltemos. Distorções, debate público e os limites do diálogoColocadas as coisas em seus devidos lugares, temos a seguinte situação: grupos de pessoas foram historicamente e ainda são socialmente discriminadas com base em preconceitos injustos que remetem à loteria genética e de nascimento; essas pessoas têm direito a reparação moral, e fazem bem em reivindicá-la. No campo discursivo, como se daria essa reparação?
Explicitados os vieses cognitivos que naturalizam e universalizam situações particulares e privilégios infundados, somos forçados a proceder um exercício crítico de nossos critérios de racionalidade – no limite, de nossa própria razão. Ao reconhecer as exclusões cristalizadas em nossas pressuposições, e ao nos depararmos com denúncias a elas e reivindicações de inclusão, somos convidados – para não dizer obrigados – a reformular a perspectiva que nos serve de premissa ou ponto de partida para qualquer raciocínio.
Por exemplo, quando mulheres apontam que a concepção cristalizada de liberdade em nossa tradição histórica lhes exclui em grande medida, quando povos periféricos – inclusive nós, brasileiros – mostram como concepções de belo, de conhecimento e verdade costumam ser construídas também por exclusão infundada – ou ao menos não fundamentada, racionalmente justificada – a diversas concepções distintas, o que esses grupos reivindicam é uma verdadeira revolução ética no discurso. Reivindicam serem levados em consideração em pé de igualdade, reivindicam que suas perspectivas, suas visões de mundo sejam tomadas como componentes legítimos da construção de uma visão de mundo justa – ou, ao menos, menos injusta.
Em nenhum momento isso dá ensejo a reversões artísticas e cognitivas, excessos desproporcionais igualmente injustificados. Mas negá-los tampouco pode implicar em escusar-se do exercício crítico acima descrito: a construção de uma esfera pública inclusiva, de um debate público (cada vez mais) livre de preconceitos cristalizados e dados como pressupostos do discurso – político, intelectual, artístico, científico.
Longe disso apontar para um horizonte utópico de construção pacífica e harmoniosa rumo a um cenário de consenso universal à la shiny happy people holding hands – aos que esperavam uma conclusão feliz e esperançosa, minhas condolências. Não, há limites intransponíveis do diálogo: quando confrontado com uma concepção radicalmente diferente, que nega, inclusive, a possibilidade de compreensão recíproca e composição, não há conversa. Um exemplo: com as pessoas que negam categoricamente desigualdades, não há convencimento – pois este pressupõe aceitar essas discrepâncias.
A liberdade que importa é a liberdade de dizer não. Ao ouvir sucessivos e radicais nãos, colide-se com o muro da razão, e a alternativa não deixa de ser violenta. No entanto, penso que ainda há muito a se avançar no campo do diálogo antes de chegarmos a isso.