Universidade e universalidade: a universidade não é para todos, é para qualquer um

Rafael Barros de Oliveira

A política do governo federal para a educação superior tem seguido, na última década, um objetivo principal definido: a expansão do ensino superior. Tal meta é perseguida em duas grandes frentes: 1) o aumento do número de instituições de ensino superior (IES, contemplando universidades, centros universitários, faculdades e institutos federais) e expansão das existentes, com abertura de novos cursos e campi; 2) políticas de inclusão (Fies, cotas, etc.), com a intenção de ampliar o acesso a camadas para as quais ele foi historicamente reduzido — estudantes da rede pública, de baixa renda, de minorias étnicas, etc.

Uma constatação superficial como esta basta para percebermos que as políticas públicas implementadas para a educação superior não foram concebidas apenas para aumentar o número de estudantes matriculados no ensino superior, mas também para alterar o perfil deles. Trata-se de uma tentativa de combater as distorções geradas por fatores de desigualdade social no acesso à educação superior. O julgamento dos méritos (e deméritos) desses programas não será objetivo deste texto. O que me interessa aqui é a forma como tais políticas têm afetado uma categoria específica de IES em nosso país: a universidade.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira” (Inep), dos 7,3 milhões de estudantes matriculados no ensino superior por todo o Brasil no ano de 2013, 53,3% estão em universidades, 15,8% em centros universitários, 29,1% em faculdades e 1,6% em institutos federais de educação tecnológica.

Não bastassem as universidades serem, em sentido estrito, responsáveis por pouco mais da metade dos estudantes de nível superior, são o alvo, em sentido amplo, de mais de 98% dos estudantes. Isso se dá porque a divisão entre universidades, centros universitários e faculdades não é posta explicitamente ao público geral. Por um lado, por causa do amplo uso publicitário da abreviação “uni” no nome comercial de centros universitários e mesmo de algumas faculdades. Por outro, devido ao fato de todas as três categorias de IES oferecerem cursos que são agrupados sob as denominações comuns de “graduação”, “bacharelado”, etc. Ou seja, independentemente do tipo de instituição, a estrutura de ensino oferecida é a mesma — um diploma de graduação emitido por uma universidade não tem maior valor formal do que aquele emitido por uma faculdade.

Além da evidência quantitativa, é simbólico recordar o título do maior e mais relevante programa federal para a educação superior: o Programa Universidade para Todos (ProUni). A ideia que tal título carrega é a de que todo cidadão deve passar pelo ensino superior, mais especificamente por um curso universitário (quer numa universidade, num centro universitário ou numa faculdade).

O ponto que venho defender aqui vai de encontro a essa afirmação: a universidade não é para todos, ela é para qualquer um.

Divido a afirmação em dois aspectos: em primeiro lugar, é extremamente danoso pedir de uma instituição que seja capaz de atender aos anseios educacionais de todos os cidadãos em uma sociedade plural e democrática (ou seja, em uma sociedade na qual esses anseios são muitos e divergentes entre si); em segundo lugar, a estrutura de ensino que vemos praticada nas IES (seguindo exigências curriculares do Ministério da Educação) não só não é apropriada para todos os objetos abordáveis no ensino superior, como tampouco é capaz de satisfazer todos os perfis de alunos que nele ingressam.

Pensando do ponto de vista da instituição, universidades estão fundadas no tripé pesquisa-ensino-extensão. Ao receber ingressantes, sua responsabilidade é formá-los para que se tornem professores (de ensino superior, básico ou de educação infantil), pesquisadores ou para que apliquem na sociedade os conhecimentos gerados e transmitidos pela universidade. Internamente, a instituição deve se dedicar à produção de novos conhecimentos por meio da pesquisa, à capacitação de seus quadros docentes, para que tais conhecimentos sejam transmitidos aos alunos, e à implementação de iniciativas que lhe permitam atuar diretamente na sociedade, para além de seus muros, aplicando o referido conhecimento científico — em sentido amplo.

Há, porém, uma infinidade de caminhos profissionais e de vida — em sentido amplo — que não se conformam aos estreitos propósitos de uma universidade. Diante dessa inconformidade, há duas saídas: ou bem ampliamos tais propósitos para que a universidade dê conta da totalidade de anseios daqueles que a buscam, ou reconhecemos seus limites institucionais e pensamos em alternativas para satisfazer essas demandas — fora da universidade.

Do ponto de vista da sistemática de ensino, as críticas são muitas e bastante conhecidas. Fala-se em engessamento, burocracia, hierarquia, inaplicabilidade prática, etc. Ao mesmo tempo, os arremedos de esforços que as universidades há anos põem em prática não têm sido suficientes — quer se trate de tentativas de adaptação e modificação de seus cursos (novas tecnologias, alternativas didáticas, etc.), quer de diferentes formatos de cursos oferecidos (especializações, minicursos, summer schools, MBA, etc.).

Novamente, uma bifurcação de caminhos: ou reformular a estrutura dos cursos universitários de modo a torná-la flexível o suficiente para dar conta de demandas e perfis múltiplos e divergentes, ou então pensar em estruturas adequadas para cada caso (objeto do curso, perfil dos interessados).

Optar pela primeira via em ambas as encruzilhadas seria, na minha opinião, jogar o bebê fora junto com a água da bacia. Na tentativa de dar conta de tudo, a estrutura institucional das universidades precisaria ser a tal ponto reconfigurada que perderíamos o que tem dado resultado positivo com o atual modelo, e a partir dos constantes esforços de aperfeiçoamento.

Sendo assim, penso que a melhor solução é justamente a contrária: reforçar os pilares pesquisa-ensino-extensão e reconhecer os limites de satisfação de demandas e anseios sociais que isso acarreta. Obteremos o melhor das universidades quando as tomarmos por aquilo que são, em vez de exigir ou esperar que se transfigurem em superinstituições multiuso. A universidade não é para todos, mas deve ser para qualquer um. Ela não é responsável pela satisfação de todas as demandas sociais relativas ao conhecimento (sua produção, transmissão e aplicação), mas suas portas devem estar sempre abertas para qualquer cidadão que esteja comprometido e em consonância com seus valores e objetivos fundamentais.

É nesse sentido que políticas de inclusão devem ser pensadas. Não é um problema não termos a totalidade dos alunos egressos do ensino médio nas universidades. O problema é não ter espaço para alunos potencialmente comprometidos com o modelo, o que acontece devido às diversas distorções corretamente apontadas pelas referidas políticas.

Por fim, o que fazer com aqueles cujas demandas, valores, escolhas de vida e planos não se encaixam com a estrutura das universidades em sentido amplo? Este é o desafio que, na minha opinião, deveria nortear uma verdadeira reforma na concepção de educação superior de nosso país — uma reforma da qual necessitamos gravemente.

Diversos países podem servir de exemplo e inspiração, mas nenhum deles nos dará a resposta pronta. A Alemanha, por exemplo, possui um sistema educacional amplamente fragmentado, no qual diferentes instituições respondem por diferentes tipos de formação nos mais diversos níveis do sistema (do básico ao superior). Conservatórios, escolas de altos estudos, think tanks, fundações e centros de pesquisa pululam o cenário internacional e, em menor medida, se fazem presentes no nacional.

Apenas a imaginação institucional e um processo interminável de formulação, aplicação, avaliação e reformulação — em outras palavras, tentativa e erro — será capaz de produzir avanços concretos. No entanto, tal processo não terá início sem que primeiro reconheçamos o diagnóstico aqui apresentado: a universidade não é para todos, é para qualquer um.

Em vez de limitar as políticas de inclusão ao inchaço e à reconfiguração esquizofrênica das universidades, devemos aplicá-las na invenção de novas instituições, estruturalmente distintas e responsáveis pela satisfação das demandas sociais que ultrapassam os limites da universidade.

Rafael Barros de Oliveira Formado em direito e em filosofia pela USP, foi pesquisador assistente na Direito GV e pesquisador visitante na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt

Originalmente publicado em: https://medium.com/@barros_rb/universidade-e-universalidade-b12b8972cd2c#.14m5i77wi

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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