A eclosão da pandemia do Coronavírus antecipou uma tendência da ordem global, dos Estados Unidos para a China. O mundo já enxergava uma mudança da balança de poder de um mundo unipolar – dominado pelo “Consenso de Washington” – para um mundo multipolar – dominado por uma ascensão da Ásia e principalmente da China desde os anos 1990. No entanto, o vírus não só acelerou um processo de poder e liderança chinês, mas também permitiu que processos autoritários desencadeassem pelo globo. O enfraquecimento da ordem liberal, juntamente com o protagonismo do “autoritarismo responsivo” chinês, mudará o significado das liberdades políticas em todos os sistemas.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer a falência do modelo de reconstrução de democracias liberais pelo mundo. A ideia de padronizar a reconstrução de instituições do modelo ocidental terminou. Tanto pela fadiga estrutural de diversas intervenções fracassadas no Oriente Médio (Iraque, Síria, Afeganistão) quanto pela mudança da balança de poder no mundo, que geraram “guerras por procuração” nas regiões de conflito como a Síria. A globalização e a chamada “paz liberal” estão cada vez mais questionados pelo modelo do capitalismo-estatal chinês. O descrédito das instituições internacionais, do direito internacional e das políticas ortodoxas de paz chegou ao limite. O extenso valor gasto em defesa pelos países e o custo da vida humana não foram capazes de mitigar a intensificação da violência terrorista e conter regimes autoritários.
Em segundo lugar, o governo chinês aplicou uma resposta extremamente eficaz no combate ao Coronavírus, no âmbito doméstico e internacional. Enquanto isso, o governo liderado pelo presidente Donald Trump se colocou numa posição unilateral, ignorando qualquer cooperação nesse processo e negando durante dias o risco do Covid-19. A China se colocou na posição de se oferecer como “parceira estratégica” de países mais afetados pelo Covid-19, desde a doação de equipamentos, máquinas, testes até cooperação humana, entre cientistas e médicos. A “Diplomacia da máscara”, como vem sendo chamada pelos burocratas da Organização Mundial de Saúde”, visa tirar dos Estados Unidos o símbolo de confiança global em administração de crises e conflitos.
Nesse ínterim, movimentos autoritários acontecem pelo mundo todo. A aprovação do Tribunal Constitucional Russo, que abre brecha para a reeleição de Putin até 2036. passou despercebida pela comunidade internacional. Na Hungria, governada pelo ultradireitista Viktor Orbán, o parlamento aprovou a uma lei que permite o Executivo governar por decreto sem uma data limite. Mesmo na Europa, o fechamento de fronteiras e a diminuição do comércio entre países deve reforçar a narrativa de partidos da extrema-direita. O professor da Universidade de Harvard, Stephen Walt, aponta que a pandemia vai reforçar o papel do Estado e do nacionalismo. Se isso de fato acontecer, é muito difícil renunciar a esses poderes “supremos” e principalmente creditar a organizações internacionais o papel de administrar conflitos.
A crise do novo Coronavírus está em pleno crescimento e ainda há muito por vir. No entanto, as pressões por mais ações do Estado só se acentuarão e muitos líderes políticos vão aproveitar esse momento para implementar e desenhar estratégias que facilitem seus projetos de poder no longo prazo. A resposta está no cerne da disputa entre as potências China e Estados Unidos. Se a China sair dessa crise como grande vitoriosa e com credibilidade no cenário internacional, a democracia liberal terá um grande revés.
Vinicius Franco Tambourgi
Cofundador da Estudos de Política em Pauta-FGV e Coordenador do Livres-SP.