Memórias do Plano Real

Há quem diga que a moeda é o mais alto símbolo de um país. Dessa forma, destruí-la significa humilhar toda a nação. É por isso que o resgate monetário de uma pátria é um feito ímpar, digno de ser eternizado na história de um povo. Assim, enquanto brasileiros, despertamos — ano após ano — as memórias do Plano Real.

Um processo de estabilização monetária não é algo que ocorre da noite para o dia. Muito menos sem um árduo esforço político. As experiências malsucedidas até a criação do Plano Real foram inúmeras. O congelamento de preços, parte relevante dos fracassos passados, nada mais é que uma ilusão. Não se baixa inflação por decreto. O problema inflacionário só pode ser solucionado por meio de políticas macroeconômicas eficazes e consistentes.

Ainda assim, um diagnóstico competente se faz necessário. A estabilidade monetária passa, principalmente, por três componentes:

i) equacionar os problemas orçamentários crônicos que, quase sempre, originam a inflação elevada;

ii) eliminar os elementos inerciais do processo inflacionário, principalmente relacionados à indexação de salários e preços;

iii) introduzir âncoras nominais ao nível de preços. Isso é, mecanismos capazes de balizar as expectativas dos agentes e evitar o retorno da inflação — seja através de profecias autorrealizáveis ou oportunismos de política econômica;

Dados esses três fatores, observemos o anômalo caso brasileiro. Curiosamente, a questão orçamentária (i), ainda que relevante e endereçada no decorrer do plano, não era apontada como a principal causa da inflação. O elemento inercial (ii), singularmente caótico, se generalizou de maneira profunda na economia brasileira, fruto da indexação pós-fixada para preços e salários. Outra particularidade tupiniquim, o estoque de moeda, enquanto âncora nominal (iii), era ineficaz e desconexos com o comportamento dos agentes. Sendo assim, argumenta-se que até mesmo pequenos aumentos na base monetária eram compatíveis com altas taxas de inflação.

Observadas essas características, muito se questiona a respeito do receituário de estabilização puramente ortodoxo. A ênfase em ações fiscais, insistentemente advogadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), acaba relegando pontos igualmente importantes ao segundo plano, tal como o aspecto inercial da inflação. É por esse motivo que o Brasil necessitava de uma solução engenhosa e inovadora.

Inicialmente, o Plano Real consistia na restauração moeda nacional em dois pontos:

a) moeda de conta confiável para denominar contratos e obrigações, assim como referenciar preços e salários;
b) meio de pagamento e reserva de valor, substituindo as mais variadas alternativas encontradas pela sociedade para conviver com a alta inflação;

Estamos falando, caso ainda não esteja claro, das tradicionais três funções da moeda: unidade de conta, meio de troca e reserva de valor. No entanto, a nossa inovação se deu por um processo sequencial: primeiro, com a introdução de uma espécie de “moeda de conta virtual” — a URV (Unidade Real de Valor). Depois, seria de fato implantado o real.

Isso se justifica pela própria natureza da situação em que o país se encontrava. A magnitude da indexação de preços e contratos que, grosso modo, significava a elevação praticamente automática de preços com a finalidade de evitar perdas inflacionárias, não tinha paralelo no mundo.

Assim, esse fenômeno se tornava um círculo vicioso: aqueles com acesso à mecanismos de indexação financeira, por exemplo, se protegiam ao passo que perpetuavam o problema. Nesse meio-tempo, as parcelas menos favorecidas da população observavam o próprio poder de compra ser corroído, mais e mais.

Acompanhando os passos propostos, a URV seria responsável pela ordenação e homogeneização da correção monetária no país. Em outras palavras, um “guarda-chuva” que trazia sob ele próprio os demais indexadores. Uma vez restaurada a função de unidade de conta, a URV seria dotada da função de reserva de valor, transformando-se no real, cuja âncora adquiriu o adjetivo cambial. O resgate do mais alto símbolo da nação brasileira foi bem-sucedido. Anunciem aos aldeões! O dragão está morto!

Paulo Silveira

Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e ex-graduando em Economia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trabalha com gestão de produtos digitais em startups brasileiras. Produz conteúdo sobre economia e tecnologia. Foi um dos vencedores do concurso nacional de resenhas organizado pelo Conselho Federal de Economia em 2017, escrevendo sobre a obra 'Princípios de Economia Política e Tributação' de David Ricardo.

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