Entrevistamos Felipe Salto que é economista pela FGV/EESP e tem mestrado em Administração pública e governo também pela FGV. Atualmente é professor dos cursos de pós-graduação executiva na mesma instituição e já trabalhou sete anos na Tendências Consultoria, na área de macroeconomia, onde se tornou especialista na cobertura das contas públicas brasileiras.
Desde 2015, trabalha no Senado Federal, como assessor econômico dos senadores José Serra e José Aníbal. Escreve artigos para o Estadão, Folha e Valor, além de manter o Blog do Salto.
Felipe Salto publicou, em 2016, em parceria com Mansueto Almeida Jr., atual secretário de acompanhamento econômico do Ministério da Fazenda, o livro ‘Finanças Públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade’, pela Editora Record. O livro, organizado pelos dois economistas, é um compêndio de diagnósticos e propostas para recuperar o equilíbrio fiscal e a credibilidade das contas públicas brasileiras.
Confira a entrevista que fizemos sobre políticas econômicas, contas públicas e ajuste fiscal.
- Salto, como chegamos a esse descalabro fiscal? Foi só a atuação com políticas anticíclicas que se exauriram ou há mais fatores? Talvez um pouco de political budget cycle em 2014?
Há uma crise de crescimento econômico sem precedentes. O pior biênio da série histórica do IBGE, que começa em 1901, será 2015-2016, com taxas negativas de 3,8% e 3,3%. O tombo do PIB desbancou a arrecadação do governo e, com isso, exacerbou nossos problemas fiscais. Digo exacerbou porque eles não apareceram neste ano ou no ano anterior. O ovo da serpente foi posto no governo Lula. Veja: a taxa de crescimento real anual do gasto era 3,5%, no segundo governo FHC. Ela avançou para 7,4%, no primeiro governo Lula e para 9,5% no segundo. Isto é, aproveitamos muito mal o período da bonança externa. Usamos esse excedente externo gerado pela alta das commodities para turbinar o consumo, muito mais do que o investimento. A esse processo somaram-se as práticas da contabilidade criativa, que começaram já em 2009, com os chamados abatimentos dos gastos do PAC da meta de superávit primário. À época, escrevi com Maílson da Nóbrega o primeiro artigo que alertava para isso é para os riscos desse novo caminho de expansão fiscal desmedida e não contabilizada. Saiu no Estadão: “Contabilidade criativa turva meta fiscal“. De lá pra cá, foi a derrocada. Apostaram no gigantismo dos bancos públicos, no manejo unilateral das variáveis macroeconômicas, como o juro, e no intervencionismo sem fim. Deu no que deu.
- E quais são as opções disponíveis para sair do atoleiro fiscal atual e voltar a termos contas públicas em ordem?
A PEC do Teto é uma boa medida , mas tem de ser complementada. Fiz simulações que apontam para um desbalanceamento dessa proposta. No curto prazo, pouco efeito e, no longo, um superávit exagerado. É preciso ajustá-la urgentemente, colocando limites auxiliares explícitos para o gasto com pessoal, impedindo assim que o ajuste recaia sobre investimentos e gastos sociais. Além disso, o prazo é muito longo. Dentre 88 países analisados em recente estudo do FMI, nenhum deles adotou regra similar para um período tão longo. É bom que o governo tenha algum grau de discricionariedade e que a recuperação da atividade possa se refletir em mais e melhores políticas públicas. Outras medidas que o governo deveria tomar: limitar a dívida da União, como manda a constituição e na linha de projeto de resolução cujo texto substitutivo foi apresentado ano passado pelo senador José Serra; securitizar a dívida ativa (vender créditos tributários), o que renderia pelo menos R$ 55 bilhões à União; interromper todos os reajustes salariais e contratações no serviço público; reduzir à metade os subsídios e subvenções; elevar a CIDE e reduzir juros. Sobre esta última medida, cada ponto de Selic a menos são R$ 25 bilhões de economia fiscal, sem mencionar os efeitos sobre as empresas, que estão atoladas. A depressão, o hiato do produto extraordinariamente aberto e a convergência das expectativas de inflação para patamares baixos justificam a queda imediata do juro.
- Dessas opções disponíveis, quais as mais eficazes do ponto de vista econômico? Elas conflitam com suas viabilidades políticas?
O mais eficaz é promover ajustes rápidos e intensos e, depois, apostar no gradualismo. O prédio está pegando fogo e, neste caso, tem de chamar os bombeiros. Não adianta ficar sinalizando, sinalizando e não agir! A revisão de todos os contratos de compras do setor público com o privado é também um caminho que já deveria ter sido adotado. Ele poderia render de R$ 12 a R$ 14 bilhões ao erário por ano. Nesta semana, participei de debate na FGV-SP e o professor Yoshiaki Nakano nos contou sobre como conduziu o ajuste fiscal no governo Covas, quando foi secretário da Fazenda. Há muita, mas muita ineficiência no governo. Combater isso é gerar economia ganhando de quebra a confiança da população para as outras medidas e reformas é fundamental. A viabilidade política se dá pelo exercício da liderança, inspirando confiança nas pessoas. Para isso, é preciso ter um bom plano, uma mescla de ações. E é preciso ter convicção sobre isso.
- Como mencionado, carro-chefe do governo Temer é a PEC 241. Quais são suas qualidades e seus riscos? Ela será suficiente para conter o problema fiscal? E ainda mais importante: vai ser aprovada?
Como já comentei, a PEC é a principal medida do governo e está desbalanceada. Ela tem pelo menos quatro problemas, como escrevi em artigo para o Instituto Teotônio Vilela: o prazo é longo demais; o teto geral (inflação passada) conflita com as 14 vinculações e/ou indexações presentes no gasto primário federal; o esforço a curto prazo é nulo e a longo prazo é altíssimo (o primário poderá superar 6% do PIB); e as exceções fixadas no texto, como os créditos extraordinários, prejudicam a força da PEC. Acho que o governo tem um longo caminho pela frente. É muito positivo que tenha eleito o problema fiscal como o prioritário, mas não há bala de prata. Só a PEC não nos retirará do atoleiro. Disso não tenho dúvida. Nesse sentido, as declarações recentes do governador Alckmin estão corretas.
- Mesmo que a PEC seja aprovada, outra questão que fica é: vai ser respeitada? Tínhamos a LRF que foi desrespeitada. Por que devemos acreditar que desta vez é diferente?
Aí é que está. Se a Lei de Responsabilidade Fiscal estivesse sendo seguida à risca, não precisaria de PEC do Teto. Aliás, não teríamos chegado na situação calamitosa de dívida de quatro trilhões com déficit nominal de 600 bilhões de reais e custo médio de 8,7% em termos reais. É coisa de louco. Se a regra de ouro estivesse valendo, jamais estaríamos galopando na dívida pública para financiar salários, aposentadorias e gasto corrente em geral, com investimentos estagnados em 0,6% do PIB. Vale lembrar que a regra de ouro diz que só se pode fazer dívida nova se for para investimentos. Ainda assim, sejamos otimistas: o novo governo, pelo menos, tem um bom diagnóstico do quadro fiscal. Precisa, no entanto, de uma estratégia mais ampla, complexa e detalhada. Mais difícil: precisa comunicar tudo isso muito bem e convencer deputados e senadores.
- Se a PEC não é uma bala de prata, como falamos, quais outras medidas fiscais são urgentes para que o Brasil não quebre mais para frente? Previdência? Saúde universalizada? Educação superior gratuita? Como vender cortes em “direitos sociais” e aliar a necessidade econômica de se fazer ajustes com o lado político?
Não há que se cortar os direitos e conquistas sociais. A política fiscal só tem sentido dentro de um contexto em que sirva para dar as melhores respostas sobre a alocação dos recursos públicos dadas as demandas sociais. Não se pode atropelar a sociedade. A política é a construção – e a reconstrução – constante do Estado. O Estado, por sua vez, é a lei, a ordem jurídica, a Constituição e a garantia do seu cumprimento, pela burocracia técnica e pelos políticos. O crescimento econômico é, nesse sentido, um objetivo central para qualquer governo. Como disse o mestre de todos nós, economistas, o professor Edmar Bacha: “sejamos francos, não há ajuste sem recuperação da atividade”. E desde já, que fique claro: não há contradição alguma. Em economia, é assim mesmo, tudo é circular, o ajuste afeta a confiança, que afeta os juros, que afeta o investimento e o crescimento econômico. Mas este, por sua vez, é imprescindível para recuperar receitas e produzir novamente um quadro mínimo de financiamento sustentável das políticas públicas. Por isso é tão importante buscar fatores exógenos a todos esses processos: concessões e privatizações e expansão de acordos comerciais são dois vetores essenciais. O juro também pode ajudar, neste momento, repito, pois a economia está deprimida, a inflação cedendo e o buraco só aumentando. Vamos continuar a receitar antibiótico para curar pneumonia, quando o diagnóstico é de pedra nos rins?
- Por fim, você e o Mansueto Almeida acabaram de lançar o livro “Finanças Públicas. Da Contabilidade Criativa ao Resgate da Credibilidade”. Seja um vendedor do livro e nos diga: por que devemos comprar (e mais importante, ler) o livro? Que lições ficam para o futuro? E vamos recuperar a credibilidade fiscal?
O livro é uma iniciativa de quando eu ainda estava na consultoria Tendências. Maílson me incentivou e escreveu um dos melhores capítulos do nosso compendio, que é sobre o histórico de construção e destruição das instituições fiscais no Brasil. Mansueto se animou e entrou na parceria comigo quando ainda estava no IPEA. Conseguimos reunir gente muito boa. Ali você vai encontrar diagnóstico, mas também muitas propostas. Marcos Mendes escreve sobre gastos com pessoal. Pedro Maciel, sobre a crise dos estados. Outro capítulo interessantíssimo é o do ex-presidente do Bacen, Gustavo Loyola, que avança sobre o tema intrincado do relacionamento entre a autoridade monetária é o Tesouro Nacional. Modestamente, o trabalho é mais um tijolinho para ajudar a construir o futuro do nosso país. Em última análise, para ajudar a construir o Brasil com que todos sonhamos: mais fraterno, mais desenvolvido e mais justo socialmente.