Entra governo, sai governo, uma discussão pouco avança, mas não sai da pauta: a Reforma Tributária. Neste momento em que uma nova eleição se aproxima, gostaria de deixar aqui uma pequena contribuição.
O último grande debate de que me lembro sobre o tema começou ali no início de 2020 e trouxe à tona o “imposto do pecado” sobre produtos que possam ser prejudiciais à saúde (cigarro, bebidas alcoólicas e ultraprocessados com excesso de açúcar).
Os manuais de microeconomia, de maneira geral, apontam a taxação de produtos e atividades que estejam gerando externalidades negativas como uma forma de corrigir esta falha de mercado.
Externalidades negativas são efeitos colaterais negativos de uma decisão de consumo ou produção sobre aqueles que não participaram dela. Existe externalidade negativa, assim, quando um terceiro, que não foi levado em consideração por quem toma a decisão, é negativamente afetado. Um exemplo clássico do problema é a poluição do ar.
Por esta lógica, produtos com excesso de açúcar, por exemplo, considerados um fator para a obesidade, especialmente a infantil, elevando o risco de desenvolvimento de doenças graves como o diabetes, deveriam ser taxados pelo “imposto do pecado” com o objetivo de se desestimular seu consumo, o qual gera custos para o sistema de saúde que acabam divididos por todos os pagadores de impostos, inclusive os que “cuidam” da própria saúde.
A arrecadação do imposto ainda poderia ser direcionada para ações educativas ou para tratar dos efeitos negativos gerados pelo consumo desses produtos.
Parece tudo muito científico, falando assim, mas na definição do que é uma externalidade negativa parece haver sempre algum tipo de crença ou juízo moral. Costumamos achar tão natural a taxação de cigarros e bebidas alcoólicas quanto a redução de impostos sobre veículos para estimular a economia, sendo que os acidentes de trânsito figuram entre as principais causas de morte no país, além de os automóveis se destacarem entre os maiores emissores de poluentes do planeta.
A própria ideia de associar determinados produtos, serviços e comportamentos a pecados, por sinal, carrega um perigoso julgamento, por parte do poder público, do que é certo ou errado….
Eu, particularmente, considero a arquitetura de má qualidade uma externalidade negativa, um pecado. No caminho diário da estação de trem até o local onde trabalho, sempre que passo em frente ao enorme templo da Igreja Universal do Reino de Deus me deprimo um pouco mais.
Trata-se de um cubo bege e marrom gigante que se destaca demais na paisagem decadente do entorno, com janelas laterais desproporcionalmente pequenas e uma fachada kitsch com colunas douradas que remete a um cassino de Las Vegas (mas completamente fora de contexto; e sem os jogos, a farra e a bebida, é claro).
Por isto, deixo aqui a minha proposta: um Imposto Sobre Arquitetura de Má Qualidade em Prédios Muito Grandes.
Estou forçando a barra ao relacionar boa arquitetura, qualidade de vida e políticas públicas? Talvez não.
No início deste ano, na Espanha, foi aprovado o Projeto de Lei de Qualidade Arquitetônica. Conforme matéria publicada no site Archdaily, trata-se de uma nova proposta legislativa “que visa proteger, promover e fomentar a qualidade arquitetônica como um bem de interesse geral, promovendo vínculos que incentivem a aproximação da arquitetura com a sociedade”. 1
Por que não fazermos algo parecido por aqui e, de quebra, ainda estendermos o “imposto do pecado” para grandes obras arquitetônicas de gosto, no mínimo, duvidoso?
Ah, mas como definir o que é boa ou má arquitetura, alguém pode estar se perguntando.
A resposta, de fato, não é trivial, mas podemos tentar encontrá-la a partir de comparações. Poderíamos citar shoppings centers e seus estacionamentos, torres corporativas espelhadas, mas, por razões puramente literárias, fiquemos no exemplo dos templos religiosos, que já mencionei.
Independentemente de se seguir ou não uma religião e de qual a sua fé, me parece inegável o legado arquitetônico deixado pela Igreja Católica no Brasil e no mundo. Como falar de arquitetura em São Paulo sem mencionar, por exemplo, o prédio da Catedral da Sé, para ficar apenas em um dos mais emblemáticos, tombado em 2016 pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico)?
Já o templo da Igreja Pentecostal Deus É Amor, no Glicério, foi eleito por arquitetos um dos prédios mais feios de São Paulo em uma votação realizada pela Folha de São Paulo em 2007. 2
Em uma nova eleição realizada hoje, apostaria na presença dos templos da Igreja Universal do Reino de Deus. O Templo de Salomão, no Brás, inaugurado em 2014, por exemplo, foi classificado pela Helena Cavalheiro, em análise publicada na revista Select, como “uma espécie de pastiche ampliado”.3 Miguel Del Castillho, em artigo na Folha da época da inauguração do templo, escreveu que a arquitetura do prédio “parece alimentar o barulho, seja ele sonoro ou visual, como se a mente dos fiéis precisasse ficar preenchida por imagens e novidades para não terem tempo de pensar no absurdo que aquilo representa, nas contradições teológicas e práticas – sem falar das urbanísticas”. 4
E não se pode atribuir a qualidade arquitetônica questionável desses templos grandiosos à falta de recursos de seu líder e fundador, que apareceu no topo de uma lista de líderes religiosos milionários da revista Forbes de 2013 – e o número de fiéis provavelmente só cresceu de lá para cá.
O Templo de Salomão custou nada menos do que R$ 680 milhões (mais de R$ 1 bilhão em valores de hoje, corrigidos pelo IPCA).
A despeito do enriquecimento de seus líderes, as entidades religiosas do país são beneficiadas pela imunidade tributária, cujo objetivo é permitir que o valor das doações dos fiéis seja utilizado de forma ampla em projetos sociais e obras nos imóveis, entre outras destinações.
Ora, mas se estes imóveis geram impactos negativos na cidade e na saúde mental de parte da população, nada mais razoável, do ponto de vista da teoria econômica, do que pagarem por isto.
Talvez seja preciso apenas refletir melhor e avaliar se estender o “imposto do pecado” para arquitetura de má qualidade seja mesmo a maneira mais adequada de se fazer isso.
Afinal, parece estranho pensar em entidades religiosas pagando o “imposto do pecado”, não?
Vitor Augusto Meira França
é economista pela FEA-USP e mestre em economia pela EESP-FGV.
Notas Explicativas
1 Mais detalhes em: https://www.archdaily.com.br/br/975914/governo-da-espanha-aprova-lei-de-qualidade-da-arquitetura
2 É importante destacar que não se trata de uma pesquisa com rigor estatístico. Em 2007, a Folha pediu que dezessete arquitetos de variadas tendências e que atuavam em São Paulo apontassem o prédio que consideravam o mais feio da cidade. O mais votado foi a Sede Mundial da Igreja Pentecostal Deus É Amor, no Glicério, com três votos. Mais detalhes da votação em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0701200707.htm.
3 Ver mais detalhes da análise em: https://www.select.art.br/seducao-em-escala-monumental/?utm_medium=website&utm_source=archdaily.com.br.
4 A íntegra do artigo, que traz uma análise mais ampla da arquitetura religiosa no Brasil, em particular dos templos da Igreja Universal do Reino de Deus em comparação a outros tempos evangélicos, pode ser lida em: https://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/08/1507931-o-templo-de-macedao.shtml.
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