A crise da pandemia está sendo pródiga de elementos bizarros. Começa pela estranheza elementar de um vírus novo, que pulou do pangolim ao homem num mercado chinês, e parou o planeta Terra. Isso em si dá material para meditar por toda uma vida. Atualmente mais de um bilhão de pessoas estão confinadas em suas casas, alistadas numa guerra contra o inimigo invisível. Ninguém sabe quando poderemos sair dessa, mas as fissuras do confinamento em massa já começaram a se expor, com seus custos fiscais, econômicos, redistributivos e psicológicos. Excluir cenários de abertura do confinamento é tão imprudente quanto desqualificá-lo da forma caricata que fazem alguns. Um desses cenários é a imposição do uso generalizado de máscaras em lugares públicos.
Desde o começo da crise, ouvimos com insistência diversas autoridades dizerem que não devemos usar máscaras. O uso de máscaras por um indivíduo saudável seria supérfluo e ridículo, e deve ser reservado a indivíduos infectados afim de não espalharem o vírus com suas gotículas, perdigotos, tosses e espirros. Porém, isso não exclui que o uso de máscaras reduza a chance de infecção, em particular em lugares fechados, sendo uma das razões por que profissionais de saúde necessitam delas mais do que ninguém. No caso do COVID-19, uma doença para a qual testes são raríssimos e a maioria dos casos é assintomática, é absurdo afirmar que “somente” infectados devem usar máscaras. Se todos usam máscaras, isso inclui os infectados, sintomáticos ou não. Quem quiser ser “ridículo” não estará fazendo mal a ninguém, pode reduzir a chance de se infectar e faz um grande serviço ao coletivo caso esteja infectado.
Some-se à retórica antimáscara o estranho argumento comportamental de que o uso da máscara induziria um comportamento imprudente de seu portador. Não é um argumento inválido. Da mesma forma, o uso de cintos de segurança incita motoristas a acelerar mais. Porém, quem hoje é contra a obrigação de usar cinto de segurança? Mesmo se a máscara induz o indivíduo a ser marginalmente mais descuidado ao tocar objetos ou sua face, ela contém drasticamente o vetor principal de contaminação do vírus. Quem aposta no argumento comportamental deve urgentemente apresentar a prova empírica de que o uso de máscaras agrava a epidemia.
O mais contundente argumento é o da escassez: não há máscaras para todo mundo. A escassez de máscaras pode deixar os usuários prioritários – doentes e profissionais da saúde – desequipados desse instrumento essencial, e essa situação que deve ser evitada a todo custo. Mas o problema da escassez é essencialmente econômico, e felizmente pode ser contornado. Primeira solução: reduzir a qualidade. Não é preciso uma máscara de hospital para proteger a face e bloquear o voo assassino do vírus. Máscaras de pano, artesanais e simples também cumprem esse singelo e poderoso papel. Segundo, para fazer máscaras chegarem a todos, é preciso facilitar o comércio de máscaras. A regulação de preços ou a proibição do comércio pode satisfazer os anseios morais de alguns, mas agrava o problema de escassez. Deixem vender e revender em comércios e plataformas, pois produto mofando num quarto escuro não interessa a ninguém. Terceiro, o governo também tem em mãos opções mais intervencionistas, como requisicionar estoques, forçar empresas a fabricarem e lojas a venderem máscaras. É o que se faz numa “economia de guerra”.
Assim como o confinamento só funciona se uma porção expressiva da população se confinar, o uso de máscaras só pode ser efetivo se todos forem obrigados a adotá-lo. O uso generalizado de máscaras, por idoso e jovem, saudável ou infectado, pode parecer uma medida extrema e custosa. Mas o custo econômico de bilhões de máscaras empalidece frente à perspectiva de um confinamento prolongado. O uso generalizado de máscaras permitiria às pessoas retornar pouco a pouco a suas atividades, numa saída controlada e gradual do confinamento, e ao mesmo tempo conter o avanço do vírus. Usaríamos máscaras para fazer compras, caminhar em parques, pegar transporte público e trabalhar. A vida seria retomada e protegida.
O grau exato da eficácia do uso generalizado das máscaras deve ser avaliado pelos especialistas, que aconselharão os governos mundo afora sobre a duração do confinamento e como sair dele. São eles que nos dirão qual é o R0, tempo de incubação, tratamentos e as políticas de contenção da doença. Mas mesmo entre especialistas, o argumento antimáscara já esmoreceu. Sem negar que o impacto de proteção facial pode ser pequeno num indivíduo não infectado, é difícil ignorar o impacto agregado de uma proteção generalizada na população. Na China, Hong Kong, Japão e Coreia do Sul, o uso de máscaras é extremamente difundido. A República Tcheca e a Austria já adotaram a obrigação do uso de máscaras em espaços públicos, autorizando máscaras feitas de pano e costuradas à mão, e autoridades americanas já deram sinais nesse sentido. O ridículo agora é não seguir esse exemplo.