Escrever sobre Friedrich August von Hayek não é tarefa fácil. A primeira coisa que pensei ao ser convidado para falar sobre o ganhador do Prêmio Nobel em Economia em 1974, The Sveriges Riksbank Prize in Economic Sciences in Memory of Alfred Nobel para os preciosistas, foi recursar o convite. A verdade é que no Brasil existem vários economistas mais capacitados do que eu para tratar da obra de Hayek. A Escola Austríaca no Brasil vai bem além dos memes de internet, inclusive com representantes respeitados na academia. Acabei aceitando não por acreditar que sou o mais indicado para contribuir no entendimento da obra de Hayek, mas por ser um admirador de Hayek que não pertence à Escola Austríaca e, portanto, estou em boa posição para mostrar como Hayek é fundamental para a dita economia ortodoxa ou mainstream.
Hayek ganhou o Prêmio Nobel junto com Gunnar Myrdal pela contribuição pioneira para a teoria da moeda e flutuações econômicas e pela análise profunda da interdependência entre os fenômenos sociais, econômicos e as instituições. Só isso já seria suficiente para ocupar muito mais que o espaço que tenho para esse texto, mas é ainda mais complicado. Em 1974 foi confirmado que dois pensadores podem ganhar o Nobel em Economia no mesmo ano por dizerem o oposto um do outro. Talvez a divisão no Nobel com Myrdal tenha aliviado a pressão de receber o Nobel no economista que, no discurso de agradecimento, afirmou não concordar com a existência de um Nobel para Economia porque o prêmio confere ao vencedor uma autoridade que nenhum homem deveria ter.
Hayek nasceu em 1899 em Viena, então capital do Império Austro-Húngaro e importante polo intelectual e acadêmico da Europa. Percebendo o crescimento do totalitarismo na Áustria, refletido na perseguição a vários amigos e colegas judeus, em 1933 Hayek vai para a London School of Economics puxando uma grande lista de intelectuais e acadêmicos que deixaram a Europa Central por conta do nazismo. Na sequência teve passagens de destaque na Universidade Chicago e na Universidade de Freisburg.
O testemunho da ascensão do nazismo na Áustria marca profundamente na obra de Hayek com a preocupação da defesa do indivíduo diante do poder do estado. Não por acaso um dos livros mais conhecidos do autor, “The Road to Serfdom” (publicado originalmente em 1944), apresente um contraponto à tese até hoje muito prestigiada que nazismo e comunismo estão nos extremos oposto do espectro político e defende que o embate político ocorre entre indivíduo e o coletivo (a tribo) e que o liberalismo está em uma ponta e tanto o fascismo como o comunismo estão na outra ponta.. Além de intelectual, Hayek foi um ativista pela causa liberal onde, entre outras ações, destaca-se a fundação da Mont Pelerin Society juntamente com Karl Popper, Ludwing von Mises, Milton Friedman e outros nomes que se destacaram em defesa do liberalismo.
Essa verdadeira obsessão com a defesa do indivíduo perante a tribo explica a diferença entre o pensamento de Hayek e o social-democrata sueco Gunnar Myrdal. O debate que nunca ocorreu, na expressão de Willian Easterly usada no livro “The Tyranny of Experts: Economists, Dictators, and the Forgotten Rights of the Poor”, contrapunha uma visão tecnocrática e uma visão de ordem espontânea para o desenvolvimento econômico. Willian Easterly no livro citado divide esse debate m três pontos principais: lousa em branco vs aprendizado pela história, bem-estar da nação vs bem-estar do indivíduo e desenho consciente vs soluções espontâneas.
O primeiro confronto trata da existência de soluções prontas que podem ser aplicadas a qualquer país ou se as soluções devem ser específicas às condições históricas de cada sociedade, não deixa de ser irônico que os neoliberais da década de 1990 representados pelo consenso de Washington tenham sido acusados de ter uma receita de desenvolvimento pronta para todos os países. O segundo ponto, extremamente caro aos liberais, contrapõe o bem-estar dos indivíduos ao bem-estar da nação ressaltando que nem sempre esses objetivos andam juntos. O terceiro ponto, talvez o mais famoso, coloca a questão se o desenvolvimento resulta de soluções conscientes dadas por especialistas para os diversos problemas ou de soluções não planejadas que indivíduos encontram para os problemas que vão aparecendo.
Como trabalho com crescimento econômico eu fico tentado a usar o resto do espaço para tratar dessas questões, mas isso seria injusto com Hayek e com os leitores interessados na obra de Hayek. Desta forma, passo para outra questão fundamental em Hayek, qual seja, o sistema de preços. Como pode funcionar uma ordem espontânea com milhões de indivíduos tomando decisões que impactam uns ao outros? Como as soluções improvisadas para cada problemas podem formar um quadro de geração de riquezas? A resposta de Hayek para essas perguntas está nos preços. A leitura obrigatória para entender a importância do sistema de preços em um sistema econômico é o artigo “The Use of Knowledge in Society” publicado na American Economic Review em 1945 onde Hayek argumenta que a grande função do sistema de preços é permitir que os indivíduos tomem decisões corretas mesmo possuindo um conhecimento muito pequeno sobre a economia como um todo, ou seja, sistema de preços economiza a necessidade de conhecimentos.
Ao funcionar simultaneamente como informação e mecanismo de incentivos os preços permitem que cada indivíduo possa tomar decisões sem possuir toda a informação sobre custos e preferências que, por exemplo, um economista necessita para calcular preços e quantidades de equilíbrio. Se o padeiro sabe que ganha mais produzindo bolo de chocolate do que bolo de laranja ele tem a informação necessária e o incentivo adequado para produzir mais bolos de chocolate do que de laranja mesmo sem conhecer as funções de utilidade ou a renda de todos os seus possíveis clientes. O papel fundamental do sistema de preços em “organizar” a ordem espontânea faz com que intervenções nesse sistema sejam vistas por Hayek como perigosas e potencialmente desastrosas.
É certo que os temas relativos a preços, informações e incentivos levantados por Hayek tiveram influência decisiva no desenrolar da microeconomia nos anos seguintes, mas é na análise do papel da política monetária no ciclo econômico que a teoria dos preços apareceu com mais destaque na obra do autor. A Teoria Austríaca do Ciclo Econômico (TACE), que teve em Hayek um dos seus principais autores era uma abordagem de oferta e com base no comportamento de firmas e famílias. Muito diferente da abordagem keynesiana com base na demanda agregada que dominou a macroeconomia nos anos 50, 60 e 70, a TACE é uma espécie de avó da macroeconomia com microfundamentos que apareceu na década de 70 passou a dominar a literatura nas décadas de 80 e 90.
Para os interessados recomendo os livros “Prices and Production and Other Works: F.A. Hayek on Money, the Business Cycle, and the Gold Standard” e “The Austrian Theory of the Trade Cycle and Other Essays”. Nesse texto vou me limitar a fazer um pequeno rascunho da teoria dos ciclos com objetivo de completar a cadeia entre ordem espontânea, preços e ciclos bem como fazer pontes com as modernas teorias de ciclo econômico.
Para Hayek a entrada de mais moeda na economia alterava o sistema de preços relativos. Existem várias explicações para esse fenômeno, uma delas consiste em pensar que os primeiros a receberam a nova moeda, talvez os clientes de bancos que terão acesso à nova moeda na forma de empréstimos, comprem os bens que desejam sinalizando para os produtores desse bem um aumento da demanda que não é real. A má alocação de capital e trabalho destinados à produção desses bens ficará clara quando o Banco central parar de colocar moeda na economia acabando com a demanda criada artificialmente.
Uma outra maneira de observar o mesmo fenômeno é pensar que a nova moeda equivale a uma poupança artificial. Um aumento da taxa de poupança está relacionado com maior uso de bens usados na produção em relação a bens destinados a consumo final. Desta forma, o aumento na poupança aumenta o gasto em bens intermediários como proporção do gasto em consumo. Para quem está acostumado a pensar em termos de valor agregado, como é o caso de quase todos os macroeconomistas modernos, esse é um argumento confuso, talvez seja melhor pensar em um aumento do uso de capital por conta da poupança maior. O preço que sinaliza para a mudança nessa proporção é a taxa de juros que fica maior por conta da maior oferta de fundos emprestáveis.
Para Hayek o aumento da moeda em circulação gera um efeito semelhante ao do aumento da poupança, inclusive na queda da taxa de juros, mas com uma diferença fundamental: enquanto o aumento da poupança decorre de uma mudança nas preferências das pessoas o aumento da moeda resulta de uma decisão do governo. Por ser artificial no sentido de não representar o desejo das pessoas a mudança na estrutura de produção causada pelo aumento da moeda e a redução artificial dos juros não é compatível com a estrutura de preferências da sociedade. Tão logo mude a política monetária a locação de fatores induzida pela moeda que entrou na economia deixa de ser ótima, ou seja, uma política monetária expansionista leva a má alocação de capital e trabalho.
Crises econômicas ocorrem por conta da necessidade de liberar capital destinado a uma produção que visava atender a demanda artificial e alocar esse capital nas atividades cuja demanda é consistente com as preferências das pessoas. Esse processo envolve falências, desemprego e o que alguns macroeconomistas chamam de capacidade ociosa. Naturalmente é possível pensar em outras políticas que distorcem preços relativos e induzem a má alocação de capital e trabalho, é o caso de subsídios, direcionamento de crédito por parte de bancos oficiais ou mesmo intervenções diretas por meio de empresas estatais.
O uso de tecnologias e preferências para explicar o ciclo econômico voltou à cena com os modelos de ciclos reais de negócios na linha de Kydland e Prescott, laureados com o Nobel de Economia em 2004. Porém, como o modelo de ciclos reais é um modelo agregado, as alterações na estrutura de produção e a má alocação de fatores saíram de cena e acabaram substituídas por um choque de produtividade aleatório não explicado pelos autores. A questão da má alocação de capital voltou a cena com artigo “Misallocation and Manufacturing TFP in China anda India” publicado no Quarterly Journal of Economics em 2009 e escrito pelo Chang-Tai Hsieh e pelo Peter Klenow. O foco dos autores é explicar diferenças de produtividade, mas, para um leitor de Hayek que trabalhou muito com os modelos de RBC na linha de Kydland e Prescott, é impossível não fazer a ponte entre a má-alocação e produtividade e produtividade e ciclos de negócios. Uma ponte que pode explicar a conclusão do Gonzalo Córdoba e do Timothy Kehoe de que se os efeitos sobre a produtividade das políticas públicas desenhadas para combater uma crise são forem considerados no longo prazo estaremos todos em uma grande depressão.
A contribuição de Hayek se expande para outras áreas como ciências sociais, metodologia científica, psicologia e direito. Mesmo no campo estritamente econômico as contribuições de Hayek vão além do que os limites desse espaço e de meus conhecimentos permitem analisar. As referências que citei nesse texto são um bom começo para os que querem conhecer mais profundamente as questões que aqui levantei bem como outras que deixei. Para além desses tópicos recomendo “Law, Legislation and Liberty” e “The Constitution of Liberty”, os que estão interessados em uma abordagem introdutória podem gostar do livro “The Essential Hayek” escrito por Donald Boudreaux e publicado pelo Fraser Institute. Aqui encerro essa rápida apresentação da obra de Hayek, espero não ter incomodado os que conhecem o autor e ter estimulado a curiosidade de quem não conhecia o trabalho de um dos principais autores da Escola Austríaca.
Roberto Ellery Jr.
Professor do Departamento de Economia da UnB