Nobel 1996: James A. Mirrlees e William Vickrey | por Caio Paes Leme Lorecchio

Impostos e Leilões: O Legado de Mirrlees e Vickrey à Economia dos Incentivos

“(…) for their fundamental contributions to the economic theory  of incentives under asymmetric information” (The Sveriges Riksbank Prize in Economic Sciences in Memory of Alfred Nobel, 1996.)

Você provavelmente tem uma fatia da sua renda do trabalho recolhida todo mês pela Receita Federal. E quanto você ganha afeta progressivamente quanto você é tributado. Sistemas tributários progressivos evocam certa ideia de justiça distributiva. Afinal, as pessoas mais pobres devem gastar uma parcela maior da renda com bens de subsistência, ao passo que pessoas mais ricas devem gastar uma parcela maior com consumo frívolo. Ademais, os recursos coletados via tributação financiam programas de seguridade social, que beneficiam os mais pobres. Entretanto, um sistema progressivo que desconte bastante rendas mais altas pode ser ineficiente, caso as pessoas que ganhem muito dinheiro sejam também as muito produtivas. Isto porque a tributação excessiva pode desencorajá-las a prover o esforço adicional necessário para obter a mesma renda sem o imposto[1]. Nesse caso, é possível que a renda total disponível para redistribuição diminua, penalizando indiretamente os mais pobres. Qual grau de progressividade seria desejável em um sistema tributário? É possível que esse sistema concilie equidade e eficiência?

Você provavelmente também observa o resultado de um leilão várias vezes ao dia. Quando você realiza uma busca no Google, a plataforma identifica palavras e expressões para as quais existem anunciantes dispostos a pagar por algumas posições na lista de links que você observa. Cada anunciante comunica à plataforma o máximo que gostaria de pagar por possíveis cliques no link anunciado. O algoritmo do Google então usa esse valor máximo de cada anunciante, combinado com uma medida de qualidade de cada anúncio, para determinar os vencedores[2]. Microsoft, Yahoo! e Facebook determinam os lances vencedores de forma similar. Entretanto, o que cada vencedor do leilão paga difere entre as plataformas. Em algumas delas, o vencedor com o maior lance pega a posição mais visível, mas paga o lance do vencedor com o segundo maior lance; o vencedor com o segundo maior lance pega o segundo anúncio mais visível, mas paga o lance do vencedor com o terceiro maior lance e por aí vai. Em outras, para cada lance vencedor, o algoritmo computa, 1) descartando esse lance, a soma do que seriam os lances vencedores; 2) mantendo esse lance, a soma dos outros lances vencedores. O anunciante responsável por esse lance vencedor paga então a diferença entre as somas descritas cada vez que alguém clica no anúncio. Por que as plataformas empregam esses mecanismos complexos?

Surpreendentemente, uma única teoria econômica ajuda a responder as questões mencionadas: a teoria dos incentivos quando há assimetria de informações. Eu sei; ela tem um nome bonito, mas se você é leigo em Economia, não tem ideia sobre o que ela é. Muito menos ouviu falar sobre James Mirrlees e Wiliam Vickrey, dois laureados com o Prêmio Nobel de Economia, em 1996, pelas contribuições pioneiras à teoria. Mas, tal como é mais fácil compreender o frio pelas propriedades do seu oposto, é mais didático explicar a teoria dos incentivos – e o legado de Mirrlees e Vickrey – explicando primeiro onde ela não se aplica.

A maioria das pessoas associa teoria econômica ao estudo da interação entre preços, demanda e oferta de bens e serviços. Se ainda há no imaginário popular a crença de que a mão invisível do mercado sempre traz bem-estar à sociedade, parte disso tem a ver com a revolução no pensamento econômico nas primeiras décadas do período pós-guerra. Nessa época, a teoria do equilíbrio geral provou que, quando muitos compradores e vendedores auto-interessados interagem em um mercado competitivo, o preço de equilíbrio que resulta dessa interação agrega todas as informações privadas dos participantes. Não que essa teoria econômica não reconheça que um produtor sabe mais sobre a qualidade do seu produto que um comprador, por exemplo. Nem que um trabalhador não sabe mais sobre a sua produtividade que um empregador[3]. Mas sim que, em mercados competitivos, as informações privadas pouco importam.

A teoria do equilíbrio geral também provou que todo equilíbrio de mercado competitivo é eficiente, no sentido de ser impossível melhorar a situação de alguém sem prejudicar a situação de outrem[4]. Ainda, qualquer que seja a alocação eficiente de consumo e lucros entre os agentes econômicos que julguemos ser socialmente desejável, um mercado competitivo pode atingi-la, desde que seja possível transferir recursos prévia e apropriadamente[5]. As implicações desses resultados são poderosas. Primeiro, por meio de taxações e transferências de renda, um governo pode promover bem-estar social sem abrir mão da eficiência. Isso acontece porque a redistribuição de recursos não afeta as decisões de consumo e produção dos agentes, pelo menos não sob as hipóteses que regem a teoria do equilíbrio geral. Segundo, para promover bem-estar social, esse mesmo governo não precisa se preocupar com informações privadas dos cidadãos. O quão progressiva a taxação deve ser do ponto de vista social, isso depende, dentre outras coisas, do peso social que o governo dá a cada faixa de renda.

Em suma, não há espaço para se falar de informação estratégica – assimétrica ou não – se temos razões para supor que pessoas interagem por meio de mercados competitivos. Mas nem todas as interações econômicas ocorrem em mercados perfeitamente competitivos. Quando você vai à feira, por exemplo, é bem provável que barganhe com um vendedor de tomates o preço abaixo daquele observado na plaquinha da barraca. Você sabe a sua disposição a pagar por uma dúzia de tomates; o vendedor não. Você gostaria de convencê-lo que a sua disposição a pagar é menor que do que realmente é; ele tem como objetivo extrair de você o valor correto dessa informação privada. Quando um empregador monitora o trabalho de um empregado, esse empregado gostaria de demonstrar uma produtividade alta, esforçando-se bastante em uma tarefa; maior até que a sua real produtividade. Para o empregador, tão logo ele identifique os trabalhadores com baixa produtividade, melhor.

A teoria econômica dos incentivos quando há assimetria de informações versa basicamente sobre interações entre poucos agentes, sendo que alguns deles têm informações privadas e incentivos para não revelá-las. As partes não informadas propõem então um contrato ou qualquer outro mecanismo que dê incentivos corretos para que partes informadas ou revelem corretamente o que sabem, ou tomem decisões benéficas para as partes não-informadas. Claro, as partes informadas precisam querer participar desses contratos ou mecanismos[6].

Um leilão é um exemplo de mecanismo. Um vendedor quer colocar um produto unitário à venda, mas desconfia que consumidores têm disposições a pagar muito diferentes. Como só há uma unidade, ele gostaria de vender para o consumidor com a maior disposição. Mas ele não sabe quem é esse consumidor. Ele pode colocar um preço fixo próximo ao que ele acredita ser a disposição média; assim, é provável que ele venda ao primeiro consumidor que aparecer em sua loja. Ou ele pode organizar um leilão e permitir que os interessados comuniquem quanto estariam dispostos a pagar pelo bem. Se os lances corresponderem de fato à disposição a pagar de cada licitante, ele consegue identificar a venda que maximiza sua receita. Mas há incentivos para que os licitantes não revelem a disposição privada; afinal, o consumidor que mais se dispõe a pagar só precisa oferecer um pouco mais que o segundo consumidor mais disposto.

Um sistema tributário também é um mecanismo, ainda que não tão óbvio. Um governo institui um imposto sobre os rendimentos laborais dos cidadãos. Mas os cidadãos diferem na habilidade de converter horas trabalhadas em resultados para empregadores; e os empregadores gostariam de remunerar os trabalhadores mais produtivos. Se o governo pudesse observar perfeitamente a produtividade dos trabalhadores, e quisesse maximizar o bem-estar social, ele poderia taxar sobretudo os mais habilidosos e transferir recursos para os menos habilidosos[7]. Mas o governo não pode e os cidadãos sabem disso. A depender da progressividade do imposto em função do rendimento observável, os mais habilidosos têm incentivos para se passarem por menos habilidosos, produzindo menos mas retendo mais do valor da produção para eles mesmos, após a dedução tributária. Tudo mais constante, o resultado social é uma renda nacional menor para ser redistribuída; algo ineficiente.

William Vickrey, em 1945, foi um dos primeiros economistas a apontar o potencial conflito entre eficiência e equidade que um sistema tributário poderia causar. A formalização do argumento só viria em 1971, quase 30 anos depois, com um artigo de James Mirrlees. Durante esse tempo, a teoria do equilíbrio geral dominava as discussões da comunidade acadêmica – e ditava a elaboração de políticas tributárias. Vickrey também foi o primeiro a sistematizar o problema dos incentivos em leilões, em 1961 e 1962.

Nas próximas seções, explicarei as contribuições teóricas desses economistas para o desenho ótimo de sistemas tributários e de leilões. Responderei às perguntas iniciais sobre taxação progressiva e leilões lucrativos à luz da teoria dos incentivos que os dois economistas ajudaram a desenvolver. Mas saiba que o legado de Mirrlees e Vickrey ultrapassa esses dois tópicos. Mirrlees expandiu a compreensão e a aplicação da teoria econômica dos incentivos para o estudo de sistemas previdenciários (1978; 1985) e a análise custo-benefício de políticas públicas (1974; 1990), por exemplo. Vickrey estudou e incentivou o uso de tarifas dinâmicas em metrôs, estradas ou centros urbanos, como forma de evitar congestionamentos (1955). Cidades como Nova Iorque e Londres aplicam políticas públicas baseadas nos estudos de Vickrey sobre preços de congestionamento.

1.Impostos

Economistas – sobretudo teóricos – recorrem a modelos para descrever ou prever comportamentos sociais. Modelos econômicos são como fábulas(Cartwright, 2010; Rubinstein, 2012) que desenvolvem narrativas a partir de metáforas para apresentar alguma lição[8]. Ao longo da história do pensamento econômico, existem duas metáforas que permeiam as análises do problema da taxação ótima. A primeira é dos agentes maximizadores de utilidade, isto é, cidadãos que fazem escolhas conscientes (racionais) em busca de maior satisfação pessoal (utilidade). A segunda é a do planejador central, isto é, um governo ou instituição que faz escolhas conscientes em busca da satisfação de alguma agregação de pessoas.

A fábula econômica dominante das primeiras décadas do século XX era a seguinte. Um planejador central observa as rendas do trabalho de cada agente. Essas rendas dão utilidade aos agentes, pois permitem que eles comprem aquilo que lhes deem satisfação. Mais renda equivale a mais utilidade, mas a utilidade de pequenos incrementos na renda (chamamos isso de utilidade marginal) é menor quando o nível de renda já é alto. O planejador valoriza o bem-estar de cada agente da mesma forma e procura implementar um sistema tributário que maximize a soma das utilidades individuais. A lição tirada é que o planejador deveria escolher um sistema que igualasse as utilidades marginais dos agentes após a redistribuição. Caso ele tenha razões para supor que agentes tenham a mesma função utilidade, o sistema tributário ótimo deveria buscar a igualdade de renda, taxando pesadamente os mais ricos.

Nesse modelo, não há conflito entre eficiência e equidade no problema de taxação ótima de renda. Desde que o planejador central conheça as preferências dos agentes e encare a renda total a ser redistribuída como algo fora de seu controle, é possível pensar em um esquema tributário que iguale utilidades marginais, não desperdice recursos e seja socialmente desejável. A questão fundamental é  quanta informação um planejador central realmente tem sobre os agentes. Vickrey foi um dos primeiros a estudar essa questão e evidenciar quais conflitos de interesse surgem daí. Para ele, a escolha do sistema redistributivo deveria impactar a própria quantidade total de riquezas que o planejador central teria para distribuir. Dessa forma, as rendas individuais que o planejador teria para redistribuição mudam de acordo com a sua escolha de política pública. Em 1945, Vickrey escreveria que

It is generally considered that if individual incomes were made substantially independent of individual effort, production would suffer and there would be less to divide among the population. […] The question of the ideal distribution of income, and hence of the proper progression of the tax system, becomes a matter of compromise between equality and incentives”. (Vickrey, 1945; p. 330.)

Nesse mesmo artigo, ele formulou a base de um novo modelo que só ganharia a devida atenção em 1971. A renda dos agentes vêm da remuneração pelo esforço. O planejador central pode até observar as rendas individuais, mas não o esforço; sobretudo, a conversão do esforço em renda – a produtividade. O máximo que o planejador consegue observar é alguma distribuição de produtividades entre a população. Como os agentes escolhem quanto esforço fazem e como o planejador taxa o valor produtivo do esforço, a escolha tributária afeta a decisão individual de esforço – e a renda total a ser redistribuída.

Havia um problema:  o conhecimento matemático para obter resultados mais substantivos do modelo não existia na época. E o artigo de Vickrey não recebeu a atenção devida, em parte também porque a teoria do equilíbrio geral dominou a discussão acadêmica dos anos 60 [9]. Associada a ela, a ideia de que informação assimétrica sobre os pagadores de impostos – e problemas de incentivos advindos daí – não atrapalham seriamente a execução de políticas tributárias dos governos. A taxação das grandes rendas era o norte principal dos governos americanos entre as décadas de 50 e 60, por exemplo, variando entre 70% e 90% para as faixas mais altas (Piketty and Saez, 2007).

Mirrlees, em 1971, formalizou a intuição de Vickrey sobre o problema de taxação ótima com assimetria de informações. Mais ainda, a formalização permitiu obter novas lições. Um planejador central observa as rendas do trabalho de cada agente. As rendas dão utilidade aos agentes porque permitem o consumo do que lhes dão prazer. Mas para obter renda, os agentes precisam trocar horas de lazer – algo satisfatório – por horas de trabalho – algo dispendioso. Ademais, os agentes diferem na conversão das horas trabalhadas em renda (produtividade) e essa informação é privada[10]. Dada qualquer política tributária imposta, os agentes escolhem quanto trabalhar e consumir para maximizar suas utilidades. Portanto, a política imposta influencia a renda total a ser redistribuída.

Suponha primeiro que não há nenhum esquema de redistribuição atuando sobre uma economia. Se o planejador central soubesse a produtividade de cada agente, saberia o consumo e o lazer ótimos para cada nível de produtividade. Ele poderia então ordenar que cada um produzisse uma certa quantidade em troca de um certo consumo, caso o agente produza o recomendado. A escolha recomendada de consumo e renda deveria equalizar as utilidades marginais no consumo, se o objetivo do planejador é o bem-estar social. Como os mais produtivos contribuem mais para a renda total, deveriam ser os mais taxados. Isso é formalmente similar a um esquema de taxação progressivo, da mesma forma que discutimos anteriormente.

Mas o planejador não pode observar produtividade. E se ele anunciasse uma política tributária tal como se ele conhecesse a produtividade de cada agente, os mais produtivos teriam incentivos para burlar o sistema, trabalhando menos mas retendo mais da renda após a dedução do imposto[11]. O planejador central teria menos renda total para redistribuir do que ele esperava. Como consequência, o bem-estar social que ele buscasse atingir com a política seria inviável.

A lição crucial é que, no fim das contas (com o perdão do trocadilho), os incentivos importam ao orçamento público. E porque importam, o objetivo não deve ser igualar taxas marginais de utilidade entre os agentes. É preciso que os agentes mais habilidosos (geralmente os que têm maior renda) sejam taxados marginalmente menos[12]; tenham utilidades marginais um pouco mais altas, para que recursos potenciais não sejam perdidos[13]. Isso implica que há um conflito entre eficiência e equidade na escolha da política tributária.

Como seria então a política tributária ótima? A resposta a essa pergunta depende da distribuição de produtividades e da utilidade dos agentes. E infelizmente essas coisas não são fáceis de estimar na população. Mas algumas recomendações são válidas para uma diversidade de cenários. Primeiro, a política tributária deve ser simples para faixas médias de renda. Por simples, quero dizer o imposto cobrado deve crescer com a renda observada de forma linear (ou próxima disso) longe das caudas da distribuição de renda antes do desconto tributário. Isso é surpreendente, já que taxação linear é uma política relativamente fácil de implementar. Segundo, ainda que o imposto médio para as faixas de renda alta deva ser alto, os incrementos tributários nessas faixas devem ser quase nulo[14]. Terceiro, subsídios – impostos negativos – aos agentes nas faixas mais baixas de renda não são apenas socialmente desejáveis, mas também necessários para a eficiência da política tributária[15].

2.Leilões

Quando falamos de leilões, geralmente a seguinte cena vem à mente. Vários compradores apinham-se em uma sala, de frente para o bem anunciado e para o leiloeiro. Ele determina um lance mínimo inicial e logo alguém dá um lance maior. No início, os lances ainda estão baixos e vários compradores estão disputando o bem. Mas os lances vão ficando maiores e mais compradores vão abrindo mão de continuar na disputa. Até que restam apenas dois competidores. Não há mais razão para alguém deles dar um lance muito maior que o preço em ordem (considerando o valor incremental mínimo definido pelo leiloeiro). Afinal, mesmo que um comprador seja o que mais queira o bem, ele só precisa descobrir o quanto o outro está disposto a pagar e oferecer um pouco a mais. O processo segue com incrementos pequenos de lance até que um dos compradores silencia. O leiloeiro então bate o martelo e o bem vai para o último comprador a cobrir a oferta.

Leilões não são invenções modernas. Existem relatos de leilões na Babilônia do século 500 A.C., por exemplo. E diversos formatos foram usados ao longo dos anos. O mais comum é o descrito acima: aberto – licitantes observam os lances uns dos outros – e ascendente – os lances vão aumentando e os concorrentes precisam cobrir a oferta se quiserem se manter na competição. Esse formato é conhecido como leilão inglês, talvez porque registros históricos da Inglaterra do século XVIII descrevem a prática desse formato no país. Outro formato comum é o leilão descendente – o leiloeiro vai reduzindo o preço até que um dos licitantes anuncia a disposição a pagar pelo valor anunciado. Esse formato é conhecido como leilão holandês, porque que era usado na Holanda do século XVII. Ademais, o leilão de flores de Amsterdã segue esse formato até hoje[16]. Existem ainda leilões fechados – os lances são feitos simultaneamente e nenhum licitante sabe o lance do outro. A maioria dos leilões de concessão opera dessa maneira.

Entretanto, antes dos artigos de Vickrey de 1961 e 1962, havia pouco interesse acadêmico por esses mecanismos[17]. Nesses artigos, Vickrey estabeleceu a base da teoria econômica dos leilões, que é uma sub-área da teoria dos incentivos na presença de assimetria de informações. Ele foi responsável por interpretar um leilão como um problema de alocação de um bem escasso entre agentes heterogêneos. A fonte da heterogeneidade entre eles estaria no valor que cada um dá ao bem. Mesmo que um planejador central tenha poder para determinar para quem e como o bem será alocado, a escolha dele depende da informação que ele solicita aos agentes, já que ele não conhece os valores individuais que cada agente dá ao bem. Os agentes têm consciência da ignorância do planejador, portanto têm incentivos para manipular a informação privada em favor próprio.

Nos leilões, um único bem precisa ser alocado entre vários compradores. O planejador central – o leiloeiro – gostaria de alocar o bem ao comprador que tenha a maior disposição a pagar. Dito de outra forma, o leiloeiro gostaria que o leilão fosse eficiente. Isso seria mais fácil se o leiloeiro pudesse garantir que todos os compradores dessem um lance exatamente igual às disposições privadas a pagar. Vickrey provou a existência de um leilão fechado que atinge eficiência e dá os incentivos corretos para que os compradores não mintam: o leilão de segundo preço. Em leilões de segundo preço, o vencedor paga o equivalente ao segundo maior lance. O motivo pelo qual esse leilão acerta nos incentivos é que ele replica para leilões fechados a observação feita no primeiro parágrafo sobre leilões ingleses. Isto é, o vencedor só precisa oferecer um pouco mais que o segundo licitante com maior disposição a pagar.

Aqui vai a intuição desse resultado. Suponha que um comprador dê um lance abaixo da sua real disposição a pagar em um leilão fechado. Lembre-se que ele não sabe a disposição a pagar dos outros licitantes. Ao mentir, ele corre o risco de um segundo competidor oferecer um valor maior, porém ainda abaixo da disposição a pagar do primeiro. Nesse caso, o comprador mentiroso não leva o bem pra casa. Ele poderia ter dado esse mesmo lance do seu competidor e ter ao menos uma chance de arrematar o bem por um valor menor que a sua disposição a pagar[18].

Suponha agora que esse comprador mentiroso dê um lance acima da sua disposição real a pagar. Ele corre o risco de algum outro competidor dar um lance abaixo do seu, mas acima da sua real disposição a pagar. Nesse caso, ele até arremata o produto, mas incorre em prejuízo, já que o preço pago é o lance do segundo maior competidor. Melhor seria se ele desse um lance igual à sua disposição a pagar, já que pelo menos evitaria uma vitória amarga.

No leilão fechado de segundo preço, portanto, a melhor coisa que cada licitante pode fazer é dar lances iguais às reais disposições a pagar. Quando o leiloeiro observa os lances, já não há mais assimetria de informações. Mas seria esse leilão o formato que dá mais receita para o leiloeiro? Afinal, o leiloeiro recebe o valor do segundo maior lance. Comparando o leilão de segundo preço com o leilão inglês por exemplo, os dois resultam no mesmo lucro esperado. Isto porque no leilão inglês, o último licitante a fazer uma oferta só precisa que ela seja igual ou um pouco maior que o penúltimo licitante[19]. O leiloeiro então recebe o valor esperado da segunda maior disposição a pagar. Comparando o leilão holandês com o leilão fechado de primeiro preço, os dois também resultam na mesma receita esperada[20], ainda que não necessariamente os compradores deem lances iguais às disposições a pagar. E – sob algumas condições[21], Vickrey mostrou que o leilão de segundo preço dá ao leiloeiro a mesma receita esperada que o leilão de primeiro preço. Portanto, todos esses formatos têm o mesmo resultado para o leiloeiro. Essa lição ficaria posteriormente conhecida como teorema de equivalência de receitas.

A teoria dos leilões discutida até aqui lida com um único bem. Mas existem vários outros tipos de leilão que lidam com a alocação de múltiplos bens. A venda de anúncios publicitários nas plataformas digitais é um exemplo de leilão múltiplo: os bens são as posições reservadas à publicidade nos resultados de busca. A plataforma precisa escolher uma forma de alocar as posições com base nas disposições a pagar por cliques reportadas. Dois formatos de leilão são comuns: o leilão generalizado de segundo preço (GSP, sigla em inglês) e o leilão de Vickrey-Clarke-Groves (VCG). Microsoft, Yahoo! e Google usam ou já usaram o primeiro formato. Facebook usa o segundo formato. Os dois derivam das contribuições de Vickrey à teoria econômica dos leilões.

O leilão GSP tem as seguintes regras básicas. Compradores dão um único lance pela palavra ou frase ofertada para vínculo pago. O comprador com o maior lance (ou o maior valor de uma função do lance) recebe a primeira posição disponível e paga o valor do segundo maior lance; o segundo maior lance recebe a segunda posição e paga o valor do terceiro maior lance e por aí vai. Ainda que esse mecanismo pareça generalizar o leilão de segundo preço de Vickrey, Edelman et al. (2007) mostram que a estratégia em que os compradores falam a real disposição a pagar não é ótima.

O leilão VCG é mais complexo. Para cada licitante, o algoritmo primeiro computa os maiores lances, ponderados por medidas de qualidade do anúncio. Assim como no leilão GSP, esses serão os vencedores. Mas para cada vencedor, o algoritmo computa a diferença entre 1) soma dos lances vencedores caso esse vencedor seja removido do leilão e 2) a soma dos outros lances vencedores, considerando esse lance vencedor. Esse será o valor pago por clique. A intuição é que os vencedores pagam os custos que seus lances causam aos outros competidores. Tal como no leilão de segundo preço para um único bem, nesse mecanismo a melhor estratégia para os compradores é anunciar a real disposição a pagar. A base para esse resultado foi primeiramente discutida no artigo de Vickrey de 1961.

Qual desses leilões múltiplos gera a maior receita esperada para as plataformas? Novamente, sob algumas hipóteses técnicas, o teorema de equivalência é válido nesse contexto (Garg and Narahari, 2009). Mas uma série de dilemas práticos torna a escolha entre o GSP e o VCG um problema difícil. Por um lado, no leilão VCG, a melhor estratégia é falar a verdade, portanto a escolha do lance de cada anunciante é mais fácil. Por outro lado, as regras do leilão VCG são mais difíceis de explicar aos participantes, o que pode gerar desconfiança dos participantes para com a plataforma. Ademais, quando as condições técnicas de equivalência não existem, o leilão GSP pode gerar maior arrecadação à plataforma (Edelman et al., 2007).

Caio Paes Leme Lorecchio

Escola de Economia de S ̃ao Paulo – FGV, e-mail: [email protected].

Notas

[1] Ou desencorajá-las a reportar os rendimentos reais. Ao reportar rendas mais baixas, as pessoas mais ricas teriam menos da sua riqueza taxada, o que ainda implica em renda total menor a ser redistribuída.

[2] O lance a ser considerado então é o produto do valor máximo anunciado pela medida de qualidade do anúncio. Você pode checar como essa medida de qualidade é computada aqui.

[3] O mercado de trabalho é de fato um mercado, onde se compra e se vende horas trabalhadas, tendo o salário como preço.

[4] Talvez você já tenha ouvido falar desse resultado como o primeiro teorema do bem-estar.

[5] Este resultado também é conhecido como o segundo teorema do bem-estar.

[6] Em economês, é uma sub-área da teoria dos jogos de informação incompleta na qual um principal (parte desinformada) têm a possibilidade de desenhar as regras do jogo, sob a restrição de que os agentes (parte informada) precisam querer participar.

[7] Nessa narrativa simples, tenha sempre em mente que estou desconsiderando outras questões – não menos importantes – que afetam a distribuição observada de salários. Ao meu ver, a contribuição de Mirrlees e Vickrey para o problema de taxação ótima deve ser encarada mais como uma formalização do porquê incentivos devem importar aos formuladores de política pública, menos como um receituário do que deva ser a política tributária.

[8] Não há demérito em tratar teorias econômicas como fábulas e hipóteses como metáforas. Na realidade, o pensamento científico é notadamente metafórico (Lakoff and Johnson, 2008). Economistas usam as lições que os modelos econômicos trazem para raciocinar sobre uma realidade, para expandir nosso conhecimento sobre algum fenômeno ou para clarificar os pontos de discórdia com outras narrativas. E podemos testar as lições de alguns modelos. Gilboa et al. (2014) é uma boa referência para o valor epistemológico dos modelos econômicos.

[9] Especificamente, o ingrediente que faltava era o princípio de Pontryagin (Pontryagin et al., 1962). Arrow e Debreu (1954; 1959) foram responsáveis por desenvolver a teoria moderna do equilíbrio geral.

[10] Novamente, é importante dizer que a narrativa é silenciosa acerca de outras questões igualmente importantes que afetam a distribuição observada de renda. O próprio Mirrlees alerta ao longo do artigo que os resultados ali eram ainda muito preliminares para que se pensasse em aplicações imediatas.

[11] Como o governo não observa as horas efetivamente trabalhadas nesse modelo, tipos mais produtivos podem escolher trabalhar menos e produzir o suficiente para se passarem por tipos menos produtivos. Esses tipos terão menor renda produzida, mas terão menos da renda descontada pelo planejador, de acordo com a sua política ingênua de tributação.

[12] Isto não significa que, dada rendas mais altas, o imposto aplicado deve ser menor, mas que o incremento tributário deve ser menor para rendas mais altas. O modelo advoga impostos altos para os mais ricos, mas o incremento tributário por renda adicional já alta deve ser baixo.

[13] Na teoria dos incentivos, essa utilidade marginal extra ficou conhecida como renda informacional.

[14] A intuição é a seguinte. Um agente mais habilidoso precisa receber incentivos para se esforçar um pouco mais e não tentar imitar agentes menos habilidosos. Mas se um segundo agente um pouco mais habilidoso tiver um imposto marginal maior, ele pode querer se passar pelo primeiro.

[15] Para os leitores economistas, cabe ressaltar que o ferramental que Mirrlees usou para resolver o problema da taxação ótima contribuiu para o avanço da teoria dos incentivos. Em termos matemáticos, esse é um problema complicado de otimização, porque têm várias restrições a se considerar. Mirrlees reduziu a complexidade do problema ao 1) reformulá-lo como uma recomendação de renda e consumo ao agentes, sujeita à restrição que eles a acatem (conhecido posteriormente como princípio da revelação) e 2) demonstrar condições necessárias e suficientes para se trabalhar com uma única restrição de participação (conhecido posteriormente como first-order approach).

[16] Cassady (1967) é uma ótima referência sobre história dos leilões.

[17] Friedman (1956) investigou leilões fechados de primeiro preço, entretanto, ainda que sob uma ótica diferente.

[18] Pense que, caso haja empate entre os dois maiores licitantes, a escolha do vencedor é aleatória.

[19] Assumindo que os licitantes são livres para dar incrementos de lance tão pequenos quanto queiram, claro.

[20] No leilão holandês, cada licitante, dado cada disposição privada a pagar, precisa pensar antes do leilão começar qual será o valor mínimo a partir do qual ele está disposto a arrematar o bem, caso ninguém tenha arrematado ainda. O vencedor então é o que tem o máximo desses valores mínimos. Dito de outra forma, quem tem de fato a maior disposição a pagar. No leilão fechado de primeiro preço, quem der o maior lance também leva. Não há razões para que um comprador dê um lance acima da sua disposição a pagar; afinal, ele pode incorrer em prejuízo. O vencedor pode dar um lance abaixo da sua disposição a pagar, entretanto.

[21] Maschler, Solan e Zamir (2013, cap. 12) é uma boa referência sobre o teorema de equivalência e as condições necessárias.

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