Nobel 2002: Daniel Kahneman | por Gabriel Brasil 

Reforçando a tão ensejada multidisciplinariedade da ciência econômica, em 2002 o laureado do prêmio Nobel de economia foi um psicólogo – ao menos em se considerando seu treinamento formal original. Daniel Kahneman, israelense nascido em 1934, se graduou com um major em psicologia e um minor em matemática pela Hebrew University, de Jerusalém, e depois concluiu seu PhD em psicologia pela University of California, Berkley, nos Estados Unidos. Entre as décadas de 1970 e 2000, se dedicou a explorar temas que o ajudaram a desenvolver o ainda incipiente campo da economia comportamental – da qual se tornou seu principal expoente ao lado de nomes como Richard Thaler e Amos Tversky, este sendo seu principal parceiro de pesquisa. 

Por suas provocações robustas e disruptivas com relação às premissas associadas à racionalidade dos agentes, a economia comportamental se tornou, desde então, um campo com implicações diretas e significativas em outras áreas da economia, incluindo macroeconomia e finanças. Os trabalhos de Kahneman, especificamente, jogaram luz aos múltiplos vieses e subjetividades dos processos de decisão que fazem parte da economia, reforçando a – muitas vezes surpreendente – irracionalidade invisível que permeia o nosso cotidiano.

A Teoria da Perspectiva

Especificamente, o prêmio Nobel foi concedido a Kahneman em reconhecimento da relevância da sua Teoria da Perspectiva. Como demonstrado por ele e por Tversky através de múltiplos e consistentes experimentos, nem sempre os agentes econômicos agem de forma a maximizar sua utilidade – ainda que não façam ideia disso. No geral, seu comportamento está em boa medida sujeito a subjetividades que dependem de perspectivas multivariadas. Por exemplo, os autores mostram como que, no geral, perdas financeiras exercem impactos emocionais maiores às pessoas em comparação a ganhos financeiros equivalentes – por mais contra-intuitivo que isso soe sob uma perspectiva utilitarista. Essa teoria explica, entre outros comportamentos, o fenômeno da aversão ao risco – trazendo, por exemplo, distorções irracionais nos processos de decisão de investimentos, sejam eles financeiros ou não.  

Segundo o próprio Kahneman, sua principal epifania para o desenvolvimento desta pesquisa veio de um episódio do tempo em que trabalhava para o exército israelense. Ao participar de um treinamento para paraquedistas, Kahneman fez uma palestra sobre o papel de incentivos e punições na performance das pessoas – ensinando que, em geral, recompensas são mais efetivas do que as reprimendas. Foi confrontado, então, por um instrutor sênior presente no treinamento, que disse que, pela sua experiência, o contrário parecia muito mais crível – em geral, ao serem punidos após uma performance ruim, seus cadetes apresentavam resultados claramente melhores nas próximas tentativas. Foi aí que Kahneman identificou a forma como um fenômeno estatístico hoje em dia bem documentado – o da regressão à média – exercia um efeito psicológico significativo na forma como as pessoas percebiam a dinâmica de incentivos à qual estavam imersas. Mesmo diantes de uma amostra e uma frequência significativa de certos eventos – como no caso do instrutor sênior com seus alunos paraquedistas – incorremos em vieses cognitivos sistemáticos prejudiciais às nossas decisões que oriundam da nossa racionalidade limitada diante de certos contextos. 

Rápido e Devagar

Um best-seller tanto para economistas e não-economistas, o principal livro de Kahneman é um marco monumental na compreensão e divulgação da economia comportamental. Thinking, fast and slow, no inglês original, traz um compilado poderoso dos achados de Kahneman e Tversky com foco em discutir o que os autores chamam de “dois sistemas” – os frameworks distintos através dos quais tomamos decisões na nossa vida cotidiana. Por um lado, através do “Sistema 1 – rápido”, somos capazes de fazer deduções rápidas e automáticas – mas nem sempre consistentes, transitivas e racionais. Estas ficam, em tese, a cargo do nosso “Sistema 2 – devagar”, que é através do qual exercemos nossa capacidade analítica e fazemos inferências elaboradas sobre a realidade. Tal divisão – considerada fictícia, porém útil, por Kahneman – nos permite compreender as particularidades da mente humana, e, em particular, suas inconsistências provenientes do conflito entre os dois sistemas. 

Um exemplo trazido no livro que se tornou famoso é o chamado “Problema de Linda”, que ilustra bem tal panorama. Participantes do experimento foram apresentados a uma personagem fictícia – Linda – que é caracterizada como solteira, brilhante e que, quando jovem, sempre foi profundamente preocupada com temas como discriminação e justiça social. Na sequência eles deveriam escolher a opção mais provável: (A) Linda era uma atendente de um banco; ou (B) Linda era atendente de um banco e ativa no movimento feminista. A absoluta maioria dos respondentes (brilhantes graduandos da prestigiada Stanford University) selecionou a segunda opção como a mais provável – ainda que isso represente, claro, uma agressão brutal às leis da probabilidade (dado que, afinal, a chance de Linda ser bancária está contida na probabilidade de ela ser bancária E membra ativa do movimento feminista). Esse experimento – que é complementado e endossado por muitos outros, igualmente lúdicos e intrigantes, conduzidos por Kahneman – é uma ilustração didática e provocativa dos vieses comportamentais e de narrativa aos quais estamos expostos, ensejados pela nossa utilização automática do nosso precipitado “Sistema 1”. 

Legado

Desde Kahneman, a economia comportamental tem se tornado crucial para cientistas sociais no entendimento de fenômenos multivariados – que vão desde falhas de mercado a frustrações financeiras pessoais. A forma de se enxergar a economia neo-clássica, muito associada a premissas de racionalidade estrita, em particular, provavelmente nunca mais foi a mesma. Implicações em policy também têm se tornado cada vez mais relevantes – em particular na esteira da Nudge Theory, um conceito propagado principalmente por Thaler (influenciado diretamente por Kahneman) que, com base em princípios da economia comportamental, favorece o desenvolvimento de mecanismos de arquitetura da escolha com impacto potencial significativo em hábitos (por exemplo de consumo) sem que precise ser materializada em uma regulação hostil. É inequívoca, em muitos sentidos, a relevância das contribuições de Kahneman para o nosso tempo. Acima de tudo, seu trabalho nos reforça a importância de sermos céticos acerca das nossas próprias convicções – o que, desde Sócrates, é um valor muito caro à ciência e à filosofia. 

Tão multidisciplinar como sua própria presença no hall de laureados do Nobel de economia, o sólido trabalho de Kahneman é uma contribuição disruptiva, elegante e certamente duradoura para a ciência econômica. Amigável para economistas e não-economistas, é hoje uma leitura obrigatória para curiosos em geral. 

Gabriel Brasil 

É economista pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestre em economia política internacional pela Universidade de São Paulo. Atualmente trabalha como analista de risco político na consultoria britânica Control Risks. 

Notas

Kahneman, Daniel. “Biographical”. NobelPrize.org. Nobel Media AB 2020. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/2002/kahneman/biographical/

Kahneman, Daniel. “Maps of Bounded Rationality: Psychology for Behavioral Economics.” The American Economic Review 93 (2003): 1449-1475.

Kahneman, Daniel. “Thinking, fast and slow”. Macmillan, 2011.

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