Bélgica, século XVII. Achille estava nervoso. Estava prestes a comprar 40 tulipas pelo vultuoso valor de 100.000 Florins. Era o equivalente ao salário (anual) de mais de 650 funcionários de construção civil. Por 40 tulipas…
Mas vou interromper esta história pra falar da NUbank, já já voltamos nela. Primeiro vamos ao
Histórico
Em 21 de novembro de 2016 escrevi um artigo de alerta sobre a situação financeira da NUbank. Foram 113.695 visualizações, 5.337 likes e 421 comentários. Por que eu escrevi este artigo? Quem me conhece sabe que eu sou um crítico ao modelo atual de Venture Capital, onde as chamadas “startups” queimam dinheiro que não geram.
A NUbank pode quebrar?
A resposta simples para esta pergunta é: qualquer empresa pode quebrar, mas no caso da NUbank, há particularidades que valem a pena ser exploradas.. Explico cada uma das considerações abaixo, e no final chego à minha conclusão. Pra começar, quero deixar claro que sou fã de carteirinha da NUbank , e que indico a todos que conheço o cartão.
Este era um caso pior que o de uma startup normal. Diferentemente de uma empresa de tecnologia (NÃO é o caso da NUbank), eles se meteram em concessão de crédito. Na minha visão, a velocidade com a qual a empresa queimava caixa era preocupante (mas normal para quem está crescendo e concede crédito), e em determinado momento o dinheiro acabaria.
Mas, para minha surpresa, no dia 7 de dezembro a empresa recebeu novo fôlego:
Nubank conquista mais US$ 80 mi em nova rodada de investimento
São Paulo – A startup brasileira Nubank , que tem um dos cartões de crédito mais cobiçados do momento, atraiu novamente os olhares de investidores e conquistou mais uma rodada de aportes. Desta vez, o valor do investimento série D é de US$ 80 milhões (aproximadamente R$ 276 milhões, pela cotação atual) – o maior dos aportes já recebidos pela startup.
Ainda em dezembro, mais uma volta na montanha russa roxa. Uma das fundadoras deu uma entrevista no mínimo complicada…
Nubank pode fechar as portas se BC confirmar mudanças | VEJA.com
Um dos emissores de cartão de crédito que mais crescem no país, o Nubank ameaça fechar as portas se o Banco Central confirmar, nesta terça-feira, 20, uma mudança drástica no prazo de pagamento das vendas aos lojistas.
Imagino o que passou pela cabeça dos investidores recém admitidos ao ler algo assim…
Mas, com o dinheiro novo recebido em dezembro, estaria a empresa segura agora? Não é a opinião de quem escreve este artigo.
Dia 20 de abril de 2017 a NUbank publicou seu balanço. Por ter sido publicado no Diário Oficial, a informação é pública. Qualquer um pode acessar o site abaixo e procurar pela empresa NU PAGAMENTOS (razão social da NUbank)
http://balancos.imprensaoficial.com.br/Condiario.asp
A NUbank ainda deu entrevista ao Valor Econômico no mesmo dia. A chamada da notícia ameniza o resultado catastrófico do ano (inicia com “focado em crescimento”). Parece um bom trabalho de uma ótima assessoria de imprensa.
Focado em crescimento, Nubank tem prejuízo de R$ 122 milhões em 2016
O badalado Nubank, emissor de cartões que não cobra anuidade e organiza os gastos dos clientes num aplicativo de celular, registrou prejuízo líquido de R$ 122 milhões no ano passado. Em 2015, o prejuízo havia sido de R$ 32,7 milhões.
E neste contexto começa meu artigo, e minha leitura da situação financeira da NUbank. Voltamos ao início do texto.
A NUbank pode quebrar? – Parte 2: Tulipas e cartões de crédito
Bélgica, século XVII. Achille estava nervoso. Estava prestes a comprar 40 tulipas pelo vultuoso valor de 100.000 Florins. Era o equivalente ao salário (anual) de mais de 650 funcionários de construção civil. Por 40 tulipas…
Mas Achille estava certo de que o investimento compensaria. Provavelmente seria possível dobrar o capital investido em pouquíssimo tempo, e estava profundadmente arrependido porque há poucas semanas atrás o mesmo lote custara 40.000 Florins.
Em meados da década de 1630 a tulipa (flor da família das liláceas) começou a ser importada e vendida no país. Os bulbos de tulipas já eram cultivados na Pérsia desde o século X, mas só sete séculos depois foi chegar aos países baixos.
Estas flores encantaram os belgas e moradores dos demais países baixos. Nenhuma flor tinha tanta saturação de cores em suas pétalas. E o início do processo de importação tornava-as escassas. O resultado é o que o mercado sempre faz, preços altos pela alta demanda e baixa oferta. Os preços escalaram a valores absurdos, uma tulipa chegou a custar o equivalente a 25 mil toneladas de manteiga.
Aos que tiverem interesse em ouvir mais sobre esta história (chamada Mania das Tulipas ou Tulip Mania), recomendo o livro abaixo:
Livro: Ilusoes Populares e a Loucura das Massas – Charles Mackay | Estante Virtual
Compre Ilusoes Populares e a Loucura das Massas, de Charles Mackay, no maior acervo de livros do Brasil. As mais variadas edições, novas, seminovas e usadas pelo melhor preço.
De volta ao artigo, onde tulipas e cartões de crédito se encontram mesmo? Seria porque as Tulipas são da família das Liláceas e esse cartão é roxo? Absolutamente não.
Da mesma forma que ocorreu com as tulipas, os investidores da NUbank (e de várias outras startups) colocam dinheiro na empresa esperando que alguém pague mais caro por ela, sem se importar com o fato de que a empresa provavelmente nunca terá capacidade de devolver sozinha o dinheiro investido.
É possível ver todas as rodadas de captação feitas pelo NUbank pelo site do Crunchbase, cujo link encontra-se abaixo:
Nubank | crunchbase
Nubank provides financial services in Brazil.
Até o momento foram US$ 234.3 milhões captados, ou cerca de R$ 738 milhões se usarmos o câmbio de hoje. Deste valor em dólares, US$ 56 milhões vieram na forma de dívida, e os demais US$ 178 milhões vieram na forma de capital, aportado pelos fundos que hoje são sócios da empresa.
A título comparativo, o Google recebeu (em toda a sua história) US$ 36 milhões (de acordo com o mesmo site, Crunchbase).
Aos números da Nubank em 2016
Sobre o resultado
Como reportado pelo Valor Econômico, o prejuízo contábil foi de fato R$ 122 milhões.
Mas existem “entrelinhas” relevantes entre a receita e o lucro. Talvez a mais relevante seja o “Ativo Fiscal Diferido”, no valor de aproximadamente R$ 73 milhões. Quando uma empresa gera prejuízo, fiscalmente este valor pode ser compensado nos períodos seguintes, desde que limitado a 30% do lucro futuro corrente. Há também diferenças temporárias, ou seja, valores que tem um comportamento temporariamente diferente entre os registros contábeis e fiscais. Contabilmente é possível ativar estes valores, desde que você consiga convencer os auditores (no caso, a KPMG) de que terá lucro no futuro, e registrar essa “receita” correspondente. Significa que o prejuízo real registrado pela NUbank foi de R$ 195 milhões.
Falando em KPMG, um estudo deles recentemente classificou a NUbank como uma das startups mais inovadoras do mundo:
3 startups brasileiras estão entre as mais inovadoras do mundo
São Paulo – Você conhece as startups GuiaBolso, Nubank e VivaReal? Se você quer empreender, deveria: elas são as três empresas brasileiras mais inovadoras ao transformar a relação das pessoas com o dinheiro. É o que dizem a empresa de contabilidade KPMG e a investidora em fintechs H2 Ventures, que elaboraram um ranking chamado “Fintech 100”, com as empresas de tecnologia financeira mais inovadoras de 22 países.
Não é um evento em que se questionaria independência. Eu questiono mesmo é o resultado do estudo.
Voltando ao prejuízo, consta também outra conta relevante, a Provisão para Perda do valor Recuperável, que é o nome bonito para Calote dos Clientes. Neste caso, estamos falando que no ano o calote foi de R$ 125,769 milhões, maior que a própria receita da NUbank.
Como eu expliquei no primeiro artigo, quando você gasta R$ 100 na padaria usando o seu cartão de crédito, cerca de R$ 3 seriam a receita da NUbank (aproximadamente) e os demais R$ 97 passam a ser uma dívida da NUbank com a padaria, enquanto você como cliente deve os R$ 100 para a NUbank. Quando a inadimplência ultrapassa os 3% que você tem direito como emissora/administradora do cartão, o negócio passa a ser deficitário em sua raíz. Não é que a operação gera dinheiro insuficiente para pagar as despesas, é que a operação em si dá prejuízo.
Como contrapor este argumento? Dizendo que você cobra juros altos no rotativo. E claramente a NUbank teve um crescimento bastante grande de receita financeira; dos aproximados R$ 100 milhões em receita financeira, R$ 36 milhões foram juros de rotativo. Essa receita do rotativo é bonita no resultado, mas costumeiramente estes clientes inadimplentes tem dificuldade em repagar a empresa (ou ao menos o valor integral cobrado), e aí este valor torna-se perda novamente.
Sobre a dívida e juros:
A NUbank começou a ter endividamento em abril de 2016, com a operação montada com o Goldman Sachs
Nubank obtém R$ 200 milhões com Goldman Sachs
A emissora de cartões de crédito Nubank fechou uma captação da ordem de R$ 200 milhões em duas linhas de crédito com o Goldman Sachs. Os recursos serão usados para financiar os recebíveis de clientes da startup em operações realizadas no Brasil e no exterior.
Ao fim do ano, constava ainda cerca de R$ 192 mihões em obrigações por empréstimos e financiamentos no balanço da empresa. A má notícia é que este valor está totalmente alocado no passivo circulante, o que significa que deve vencer todo durante o ano de 2017, ou que já há algum covenant quebrado (covenant são condições impostas pelo banco que devem ser respeitadas pela empresa; caso não respeitadas, a dívida torna-se exigível imediatamente e/ou em curto prazo).
Além do dinheiro do Goldman, a NUbank também montou um FIDC (fundo de investimento em direitos creditórios) em parceria com a Empirica Investimentos e Socopa Corretora. A Empírica não divulga a existência do fundo em seu site, apesar de divulgar outros fundos, mas nos materiais institucionais ele consta, é possível encontrá-los no Google:
Link: https://orama-media.s3.amazonaws.com/app_img/manager/document/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_Institucional_Emp%C3%ADrica_2016_Janeiro16.pdf
Na CVM também é possível consultar dados do FIDC NUbank. Basta acessar http://sistemas.cvm.gov.br/ , Consulta a Fundos, Fundos de Investimento, procurar pelo nome Nubank e digitar o Captcha da tela. É possível ver regulamento, balancetes disponiveis, informativos, atas e todos os documentos normalmente disponibilizados por fundos na CVM por força de norma.
No informativo de março de 2017, constava uma carteira de crédito de R$ 320 milhões no FIDC. Não é uma dívida, mas é um recebível que a NUbank repassou para o FIDC, estaria no seu balanço (se não houvesse o FIDC) e gera juros/despesa financeira. Uma das informações interessantes que consta na CVM é o prazo da carteira repassada ao fundo:
Há uma concentração importante (2/3 da carteira) entre 6 meses a 1 ano de prazo. Não são recebíveis de curtissimo prazo, são recebíveis cujo desconto custa caro, juros de 6 meses a 1 ano.
Tudo isso pra mostrar que as despesas financeiras da NUbank aumentaram quase 35 vezes em 2016:
E o caixa?
Na teoria a empresa tem bastante caixa. São mais de R$ 500 milhões, em boa parte provenientes do aporte de dezembro (de US$ 80 milhões) e do empréstimo do Goldman Sachs, que permanece no balanço. Então por que o “na teoria”? Porque “bastante” é relativo, depende de quanto tempo você leva para gastar o dinheiro que tem. A operação registrou um prejuízo considerável, já exposto. Nem todo ele tem efeito caixa, mas significa dinheiro que foi ou vai embora, e não volta. A operação também consumiu quase R$ 72 milhões apenas no descompasso entre o contas a pagar a lojistas e o contas a receber de clientes. Significa novamente que crescer consome caixa.
O caixa de R$ 500 milhões não é tão grande levando em consideração que a dívida de R$ 192 milhões precisa ser paga em 2017, que o prejuízo bate os R$ 100 milhões e que o capital de giro consome outros R$ 70 milhões. Sem contar despesas financeiras e investimentos em imobilizado.
Depois de fazer toda a minha análise, de defronto com mais uma reportagem rasa como um pires, infelizmente de uma revista que eu costumava respeitar:
Nubank segue no vermelho – e no rumo
Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play Para ler reportagens antecipadamente, assine EXAME Hoje. A análise dos balanços de não é uma ciência exata. Prejuízo pode ser ruim, mas também pode ser indício de investimentos vigorosos.
Agora que eu sei que a Exame considera que seguir no vermelho é seguir no rumo, vou pensar duas vezes antes de ler alguma matéria deles com fins educativos.
Agora,
Por que eu não acredito na continuidade da NUbank da forma como está hoje?
1 – Esse não é um negócio de tecnologia, é um negócio de concessão de crédito. E neste âmbito de crédito, concorrer com gente grande como Itaú e Bradesco faz necessário diferenciais competitivos exclusivos
2 – Há pouca coisa proprietária relevante no negócio. O Bradesco já lançou a Digio (concorrente da NUbank) junto com o Banco do Brasil, o Santander tem o cartão Santander Free e o Itaú lançou um aplicativo de cartões adotando os conceitos visuais da NUbank.
3 – Algumas decisões de gestão são danosas financeiramente ao negócio. Não ter anuidade significa ter menos receita; cobrar juros mais barato significa ter menos receita; atender melhor o cliente significa ter custos mais altos (não estou julgando se o cliente deve ser ou não bem atendido, só constatando que isso custa mais caro); ter um ambiente bacana, bons beneficios aos funcionários também. Então a idéia do ponto de vista financeiro é ter menos receita, mais custo e competir com grandes bancos na concessão de crédito e cobrança.
4 – Cultura. Uma vez criada a cultura da empresa que prioriza crescimento em detrimento de lucro, essa cultura vai permear as pessoas e torna-se difícil se tornar uma empresa de resultados da noite para o dia.
Tem saída então?
Sempre tem. A palavra chave é austeridade. Uma empresa de pequeno porte (como a NUbank) não precisa ter uma folha de pagamento de R$ 56 milhões por ano. Também não precisa gastar outros R$ 41 milhões por ano em despesas administrativas.
Partindo do princípio que neste ritmo o caixa dura um ano a um ano e meio, a empresa poderia realizar cortes relevantes de forma que a margem gerada até este prazo tivesse capacidade de pagar as próprias contas.
O segundo caminho é receber mais investimento, e mais investimento. Depender disso pra sobreviver é preocupante. Em tempos de crise, investidores pisam no freio; e para uma empresa que vive a base de caixa de investidores, isso pode ser fatal. Todos sabemos que é muito difícil cumprir projeções, e o próximo investidor depende do cumprimento de projeções (ou do desconhecimento dele de que as anteriores não foram cumpridas).
O terceiro caminho é ser vendido. Alguém que pague caro agora, e que realize os cortes posteriormente. Há ainda empresas estrangeiras que teriam capacidade de fazer dinheiro com a base de clientes da NUbank. Não é um caminho fácil, os clientes da NUbank são um pouco mimados, acostumados a ter o melhor atendimento e não pagar nada por isso. Mas eventualmente dá pra tirar algum dinheiro passando no cartão deles.
Gosto de histórias empreendedoras, e independente do fim desta história, a NUbank já mudou o Brasil, e a forma como os emissores de cartão se relacionam com seus clientes. Parabéns aos empreendedores, e fica meu alerta de que ainda é possível virar o navio! (mas não esperem demais).
Eduardo Carone – Sócio e fundador da Nexto Investments
Originalmente publicado no LinkedIn