O acordo comercial União Europeia – Canadá (CETA) sob o prisma do Brexit e Trump

Você no Terraço | por Beni Fisch

Foi uma verdadeira novela. Houve de tudo: mais de sete anos de negociações, reviravoltas de última hora, confronto entre uma pequena região tradicionalmente insular e o resto do bloco europeu inteiro. Houve até a Ministra do Comércio Internacional canadense retornando ao seu país aos prantos após declarar o colapso das negociações. Ao final, porém, houve um final feliz: o acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Canadá – também conhecido como Acordo Econômico e Comercial Global, ou CETA em sua sigla inglesa – foi finalmente ratificado no último dia 30 em Bruxelas.

O acordo é um dos mais ambiciosos tratados de livre comércio já assinados (certamente o mais ambicioso da UE) devido à sua escala e amplitude. Em termos de eliminação de tarifas de importação, o acordo vai mais longe do que qualquer outro até hoje: aproximadamente 99% dos bens comercializados entre as duas partes poderão circular livremente[1], porcentagem maior até que a estabelecida pelo NAFTA.[2] E isso é o de menos. Mais importante do que a eliminação de tarifas alfandegárias (que já vêm caindo mundialmente há um bom tempo entre os países membros da OMC) é a diminuição das barreiras não-tarifárias, ou BNTs. Nessa categoria caem desde barreiras relativamente óbvias, como quotas de importação, subsídios estatais e políticas de conteúdo nacional, até barreiras mais nebulosas, como direitos antidumping e critérios de controle de qualidade, ambiental e trabalhista. E é justamente aí que entre a parte de “comprehensive” do nome Comprehensive Economic and Trade Agreement: ao contrário de acordos comerciais como o NAFTA, que pouco trata destas pautas, o CETA tem como grande mérito não apenas a eliminação de subsídios de exportação (apesar de não tratar de subsídios domésticos), mas também a harmonização de critérios de proteção ambiental, qualidade, etiquetação de produtos, bem como direitos sobre propriedade intelectual.

Para o Canadá, o acordo é de tamanha importância que foi objeto de raro consenso bipartidário: apesar de as negociações terem sido iniciadas em 2007 pelo governo do ex-Primeiro Ministro Stephen Harper, do Partido Conservador, a ratificação do acordo foi tratada como pauta prioritária pelo novo governo de Justin Trudeau, do Partido Liberal, empossado há pouco mais de um ano. E tamanho afinco não é à toa: a UE é o segundo maior parceiro comercial do Canadá (após os EUA), sendo o destino de quase 10% das exportações deste país.[3] E em sendo um mercado pequeno, de apenas 36 milhões de habitantes, a busca pelos 500 milhões de consumidores do bloco europeu torna-se essencial.

Apesar da óbvia importância do tratado ao país norte-americano, a importância do CETA à União Europeia – e ao próprio futuro do projeto europeu – é maior ainda. Pode parecer absurdo: como mostra o gráfico, o Canadá representa uma parcela minúscula do comércio exterior do bloco europeu. Para os europeus, a real importância do tratado não é sua virtude econômica, mas suas sinalizações políticas.

O primeiro motivo disto é o recente voto pela saída do Reino Unido da União Europeia – o chamado “Brexit”. Apesar de a imigração ter sido apontada como o principal fator por trás do surpreendente resultado do referendo, várias das principais figuras por trás da campanha pela saída do bloco usavam como argumento o fato de, sob as regras da UE, o Reino Unido não ter o poder de assinar seus próprios tratados comerciais, ficando atrelado à burocracia de Bruxelas. E, de fato, não tardou até que uma destas figuras – Liam Fox, atual Ministro do Comércio Internacional – apontasse as dificuldades na aprovação do CETA como prova de que a decisão britânica foi acertada.[4]

[caption id="attachment_8325" align="aligncenter" width="580"]Comércio total de mercadorias da UE, em US$ trilhões. Fonte: The Economist. Comércio total de mercadorias da UE, em US$ trilhões. Fonte: The Economist.[/caption]

O impasse ao qual o ministro britânico se referia foi o fato de a Valônia – a parte francófona da Bélgica, de cerca de 3 milhões de habitantes – ter apresentado objeções de última hora ao acordo. O sistema federal belga, dividido em linhas étnicas e linguísticas, exige que todas as cinco regiões do país dêem seu aval para que o governo central possa assinar tratados comerciais. As regras europeias, por sua vez, exigem que todos os 28 países do bloco (futuramente 27, após a saída do Reino Unido) ratifiquem de forma unânime tais tratados para que estes sejam aprovados. O impasse se deu quando a legislatura da Valônia, controlada pelo Partido Socialista, se negou a dar seu aval após levantar objeções aos possíveis impactos da abertura comercial em seu setor agrícola amplamente protegido (especialmente seus produtores de leite), além de mostrar preocupação com o mecanismo de resolução de disputas entre investidores e Estados, um dos itens mais contestados do acordo (e uma questão digna de um texto inteiro a parte).[5]

O desfecho feliz deste impasse, após negociações de última hora levarem o parlamento da Valônia a mudar de ideia, foi crucial para o bloco europeu. Após o aparente colapso das negociações no final de outubro, a Ministra de Comércio Internacional canadense, Chrystia Freeland, havia afirmado que “atualmente a União Europeia não é capaz de assinar um acordo internacional mesmo com um país de valores tão europeus como o Canadá”.[6] Uma eventual confirmação desta percepção teria sido desastrosa para Bruxelas – em particular para a Comissionária de Comércio da UE, Cecilia Malström – que frequentemente citam as vantagens de se pertencer a um bloco grande dentro do contexto de um mundo cada vez mais focado em tratados bilaterais, dado o longo impasse na rodada multilateral de Doha, da OMC.[7]

No curto prazo, a aprovação do CETA tende a prejudicar o discurso daqueles que, dentro do Reino Unido, advogam por uma “hard Brexit” – ou seja, uma retirada completa do país do bloco europeu, incluindo a saída do mercado único (cuja participação acarreta a perda de autoridade nacional sobre tratados comerciais). Para os britânicos e europeus que desejam manter uma relação estreita apesar da saída britânica, isso pode representar um passo na direção de uma solução “à la Noruega” – ou seja, uma saída da UE, porém com permanência dentro do mercado único, acarretando todos os seus benefícios e responsabilidades. Já no longo prazo, o acordo pode representar a própria sobrevivência do projeto europeu, ao demonstrar que, apesar dos pesares, a participação no bloco ainda apresenta um saldo positivo. Em um contexto de crescente influência de partidos de cunho populista e nacionalista continente afora, essa afirmação pode ser crucial.

Por último, mas não menos importante, há a questão da surpreendente eleição de Donald Trump à Casa Branca. Na Europa, uma parcela grande da oposição ao CETA se deu não necessariamente ao acordo em si (um acordo com um mercado tão pequeno como o Canadá é dificilmente capaz de gerar tanta animosidade), mas sim aos precedentes que este poderia criar para outro tratado muito mais importante, atualmente em negociação: o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, mais conhecido pela sigla inglesa TTIP, entre a UE e os EUA. Em particular, o mecanismo de resolução de disputas entre investidores e Estados, estabelecido pelo CETA e replicado de forma quase idêntica nos rascunhos de texto do TTIP, é visto por muitos como uma ameaça à democracia europeia, ao permitir que poderosas multinacionais americanas entrem com ações contra Estados soberanos.

Até recentemente, a Casa Branca de Barack Obama vinha se empenhando fortemente pela aprovação do TTIP, enquanto a maior reticência ocorria do lado europeu. As fortes tendências protecionistas do Presidente-Eleito Donald Trump tendem a reverter este quadro. Neste contexto, o sucesso do acordo EU-Canadá é essencial para todos aqueles que prezam por uma ordem mundial aberta, que acreditam na inegável riqueza gerada pelo livre comércio, e que temem as consequências de uma crescente tendência isolacionista pelo mundo. Ao demonstrar para o lado europeu que suas preocupações são amplamente infundadas, o CETA pode apaziguar as objeções deste lado ao acordo com os EUA. Do lado americano, é difícil vislumbrar uma guinada de posição de Trump ao longo dos próximos quatro anos. Mas visto que o acordo UE-Canadá demorou mais de sete anos até ser finalmente ratificado, um atraso de mais quatro anos no TTIP (supondo que um novo presidente mais favorável ao livre comércio seja eleito em 2020) pode ser um pequeno preço a pagar por um retorno a um mundo mais aberto e próspero.

Beni Fisch, formado em ciência política e história pela Universidade McGill, e  mestre em Economia Política Internacional pela LSE

Notas

[1] http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2014/december/tradoc_152982.pdf

[2] http://business.financialpost.com/fp-comment/ceta-offers-more-far-reaching-tariff-elimination-than-nafta

[3] http://www.economist.com/news/europe/21702231-one-brussels-biggest-trade-deals-looks-uncertain-after-brexit-fear-maple-menace

[4] http://www.express.co.uk/news/politics/725484/Brexit-News-Liam-Fox-EU-Canada-CETA-Britain-right-to-leave-free-trade

[5] https://www.theguardian.com/world/2016/oct/27/belgium-reaches-deal-with-wallonia-over-eu-canada-trade-agreement

[6] http://www.bbc.com/news/world-europe-37731955

[7] https://www.ft.com/content/450bea68-9d9f-11e6-86d5-4e36b35c3550

Beni Fisch

Formado pela Universidade McGill, no Canadá, onde fez graduação dupla em Ciência Política e História, seguiu seus estudos acadêmicos no Reino Unido, onde se formou Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics and Political Science. Trabalhou na área comercial e econômica do Consulado Britânico, e se envolveu com o braço de consultoria econômica da LSE durante sua passagem em Londres. Atualmente trabalha no departamento de comércio internacional da União Europeia. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2016 e 2018.
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