Diego Gauto
Prólogo “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Ninguém podia entrar nela, não, porque na casa não tinha chão.” Pode parecer apenas uma música infantil, mas os paralelos com a realidade é que fazem nosso imaginário se desenvolver, e na maturidade entendemos que o lúdico é apenas o prenúncio do que nos espera na vida adulta. São os desafios do dia-a-dia, das coisas simples que se tornam complexas apenas pelo fato de agora envolverem muito mais do que nosso restrito mundo egoísta e nossos colegas imaginários, que mostram que precisamos ser responsáveis. Perdemos o “direito” à casa engraçada e temos de construir chão, paredes, teto. Nos permitimos entrar. E sair. Para viver, precisamos de todo o restante: água, luz, gás. E vivemos e deixamos um legado.
Reconstruindo a Casa Na década de 80, após crises e mais crises, a casa não tinha teto, não tinha nada. Tinha algum chão… Foram várias casas, um condomínio, por assim dizer. Mas, de fato, ninguém entrava nele, não. Havia o receio, não sem fundamento, de que depois não se pudesse sair. Ainda, o pouco de paredes e afins que se erguiam não pareciam sólidos e a qualquer momento poderiam ruir. Viviam ali apenas as famílias que ali sempre estiveram. Enfrentavam falta de água, de luz, de gás. Era praticamente impossível viver; apenas se sobrevivia. Em princípios da década de 90, um novo síndico foi eleito e este contratou um engenheiro hidráulico para resolver o problema do bem mais escasso: a água. Se chamava Rolando. Insumo básico para a vida, com ele o restante poderia ser alcançado através de trabalho e um ambiente propício para o mesmo. Rolando e sua equipe construíram todo um novo sistema de encanamento que reestabelecia o fluxo de água para dentro do condomínio, buscava atender às demandas das famílias da forma mais eficiente possível. Como todo bom projeto, mesmo atingindo seus objetivos (ele atingiu: a água passou a fluir para dentro do condomínio de forma mais eficaz, as famílias passaram a desperdiçar menos água, a economizar inclusive, e a saída era garantida), conforme o condomínio crescia, reformas eram necessárias. Partes estruturais do projeto tinham de ser adaptadas para que o sistema hidráulico pudesse se expandir adequadamente.
Troca de Síndico e a Indulgência Passados alguns anos, o síndico já havia sido reeleito uma vez e não conseguiu eleger seu sucessor na contenda seguinte. Crises na rua impactaram o condomínio, água faltou, mas o sistema de encanamentos funcionava, se mostrou robusto e aguentou o “tranco”. O novo síndico, apesar da desconfiança dos moradores da rua, e de alguns dos condôminos, se mostrou hábil em manter as conquistas do síndico anterior, inclusive o sistema de encanamentos, e avançar nas melhorias que o local ainda precisava. E conseguiu, mesmo trocando o engenheiro hidráulico. Entretanto, sem muitas explicações, evitou aperfeiçoar o sistema de encanamentos, optando apenas por fazer manutenção. Mas as reformas continuavam sendo necessárias para que o sistema aguentasse melhor as pressões que surgiam, com o aumento do uso da água e a maior fluidez com que ela surgia. As reformas ajudariam as pessoas a fazer melhor uso da água, seja para se divertirem ou para produzirem mais. Pouco se fez para as reformas, assim como a poupança para as mesmas foram diminuindo ao longo do tempo. Diz-se que era preciso organizar o condomínio para aprovar tais reformas e reservar recursos para sua execução, o que poderia custar a popularidade do síndico. E isso ele não queria, pois a vida do condomínio melhorava, no geral, a cada dia. As crises na rua praticamente desapareceram e sobrava água fora do condomínio. Os moradores da rua, atraídos pelo progresso vivido pelo condomínio e pelo encanamento que já sobrevivia havia mais de 12 anos passaram a aumentar a quantidade de água que para ele destinavam. Não faltou mais água no condomínio. Seus moradores, felizes, cederam à indulgência e foram, ao longo do tempo, preferindo “gastar” a água sobressalente. Construíram piscinas, tomaram banhos de mangueira em abundância, lavaram suas calçadas com sprays de alta pressão sem se preocuparem. O síndico, depois de reeleito uma vez, conseguiu eleger seu sucessor. Uma sucessora. De uma vez conseguiu provar que era capaz do cargo (teve um período exitoso) e que seu legado falava por si só, desconsiderando o trabalho do síndico anterior, que ergueu pilares e paredes inabaláveis até aquele momento, mesmo com uma crise na rua, que fez com que o condomínio fosse levemente abalado, sofrido apenas uma “marolinha”.
A Nova Síndica e a Leniência A nova síndica assumiu com fama de gestora, daquela que colocaria a casa em ordem e faria as reformas. Para engenheiro hidráulico contratou um rapaz que já vinha trabalhando na gestão anterior. Não era reconhecido como um grande engenheiro, mas todos sabiam que ele entendia de canos. Aparte de sua gestão confusa do condomínio, as coisas continuavam bem para os moradores. Não faltava água e as famílias estavam felizes com os banhos longos, piscinas e mangueiras. A demanda aumentava e o engenheiro contratado, o Seu Guiga, sempre procurava resolver os problemas de uma falta de água aqui ou acolá via algum reparo. Puxava-se um cano, construía-se uma emenda, fazia-se uma gambiarra. Às vezes a água saía mais em um lado do condomínio do que no outro, o que deixava os moradores chateados. E para resolver o problema, instalava-se um registro aqui e outro lá. Havia tantos registros e reparos que contratava-se pessoas para operá-los manualmente e seguia-se a vida. Aos poucos as contas do condomínio iam piorando. Além das pessoas contratadas, os novos registros haviam sido instalados sem pensar no encanamento como um todo e os desequilíbrios de água aumentavam. Vazamentos começaram a acontecer e perdia-se muita água, que ia pelo ralo. Goteiras apareciam e o Seu Guiga colocava um balde sob as mesmas. Parecia sempre que o problema estava resolvido, mas as goteiras se proliferaram. Os baldes também não paravam de encher e agora eram necessárias pessoas para trocarem os baldes. Alguns moradores pediam as reformas. Parecia óbvio que não diminuir o gasto de água para que as paredes pudessem ser abertas, os encanamentos planejados novamente e refeitos significava um aumento do custo com a manutenção de um sistema em declínio. E como fazer se já não havia sido feita uma poupança para estas reformas? Ademais, os condôminos estavam felizes em suas piscinas, alheios à contratação de uma consultoria e uma equipe especializada em troca e rotação de baldes para as goteiras, que já eram tantas que o processo precisava ser “otimizado”. Cada vez mais a administração gastava mais com pessoal, deixando pouca atenção aos investimentos necessários para assegurar o futuro das novas gerações de moradores. Os registros antigos também estavam sucumbindo e infiltrações começaram a surgir, Era um problema de reparo. Cada vez mais ficava evidente para aqueles que prestavam atenção que o Seu Guiga não estava vendo o problema que estava surgindo! Será que as paredes e os pilares não ruirão se as infiltrações e goteiras não forem efetivamente arrumadas? A leniência da autoridade hidráulica tomou conta da administração sindical. Ao fim de 3 anos os problemas futuros estavam prontos para se tornarem presentes. E parte deles se tornou. De fato, o condomínio não conseguia mais crescer. Apesar de todos estarem trabalhando, muitos estarem contentes com a vida ali, o futuro não se apresentava como melhor. Como se estivessem em uma catarse, os condôminos, mesmo prevendo dias piores, não faziam poupança nem tampouco pareciam convencidos de que queriam as mudanças que meses atrás haviam pedido (houve um grande protesto algum tempo antes, quando saíram às ruas do condomínio pedindo melhores serviços). Eleições estavam previstas para o período adiante e a síndica atual era candidata. Mesmo que evidentemente necessárias as reformas, neste momento, o medo de incomodar os moradores felizes, que só olhavam para suas piscinas em dias de Sol, pareceu ser maior do que o risco de colocar as paredes, pilares e, por que não, o condomínio todo em perigo. Mantiveram-se os incentivos ao consumo exagerado de água, aumentando os desequilíbrios, os vazamentos, as goteiras. E continuavam crescendo os gastos com a burocracia para fazer isso tudo rodar. Seu Guiga não se mostrava um engenheiro hidráulico hábil. Parecia mais um encanador simplista, que somente corria atrás de resolver problemas à medida em que eles ocorriam. Ele não se preocupava se a solução era só mais um reparo descompromissado com a estrutura do sistema como um todo; o importante era manter a água da piscina daquelas famílias que nunca antes na história do condomínio tiveram um lugar ao Sol. Só que parte dos moradores clamam pelas reformas, atentos aos perigos que as infiltrações e goteiras significam para o futuro daquele lugar. Se as paredes ruírem, a reconstrução será muito pior, se não impossível.
O Encanador e o Engenheiro Hidráulico A Eleição Sindical pegou fogo, ainda mais quando um dos candidatos acabou tendo de abandonar a corrida por problemas pessoais. Os problemas com a água eram tão graves que boa parte da campanha foi pautada por esta questão. A certa altura, o Sr. Teves, concorrente ao posto de síndico, deixou claro que ele contrataria um engenheiro hidráulico para o cargo do Seu Guiga, caso vencesse. Chegou a dizer quem seria esse engenheiro. Seria o Sr. Braga. O Sr. Braga é notório conhecedor dos mais diversos sistemas de encanamento, sendo que já teria até sido convidado para ser chefe de um dos mais importantes sistemas de encanamentos do mundo, o TED. Em sua carreira, explorou trabalhar não só em condomínios, mas também nas ruas da cidade, conhecendo diversos tipos de encanamentos, seus fornecedores e, mais importante, se relacionando e aprendendo com outros engenheiros que não basta ter um sistema de encanamentos e um encanador que verifique as infiltrações, resolva os vazamentos eventuais com baldes e faça as tradicionais gambiarras. Sua visão holística busca resolver os desequilíbrios pensando o sistema como um todo, evitando os desperdícios, os vazamentos, atendendo as demandas, dando liberdade para que os condôminos façam suas escolhas livremente. Acuada, a síndica percebeu que não havia mais como esconder os insucessos de sua gestão. Em tom de discurso, prometeu, se reeleita, trocar o encanador em seu novo mandato. “Mandato novo, equipe nova”, disse ela. Naturalmente, Seu Guiga se retraiu. Passou uns dias meio sumido. Afinal, era o primeiro encanador demitido em exercício da história do condomínio. Quiçá da rua toda.
[caption id="attachment_2036" align="aligncenter" width="470"] Qualquer semelhança é mera coincidência… Foto: Agravo Blog[/caption]O Encontro Em meio a campanha, um debate foi realizado entre o Engenheiro Hidráulico Braga e o Encanador Guiga. Em discussão o que havia acontecido nestes últimos anos, que transformaram o sistema hidráulico em algo totalmente ultrapassado, sem sentido e cheio de desperdícios e como fazer as reformas necessárias. De um lado, o Sr. Braga se mantinha calmo e inabalável. Sabia que o problema precisava ser olhado com carinho e com muito cuidado, tendo a solução em uma ampla reforma que traria equilíbrio e confiança novamente ao sistema como um todo. Sem dúvida, isso tiraria muitos condôminos da atual zona de conforto. Provavelmente, para que a reforma fosse bem sucedida, muitas piscinas precisariam ter seu uso limitado por algum tempo e alguma restrição seria necessária para que os registros fossem readequados e as goteiras e infiltrações consertadas. Na outra ponta da mesa, Seu Guiga argumentava que o problema era externo ao condomínio. Haveria muita pressão externa, não havia como controlar os desequilíbrios internos e todos teriam de esperar as condições lá fora melhorarem para que o condomínio voltasse a se desenvolver. O Sr. Braga argumentava que se os ajustes tivessem sido feitos no passado, hoje os problemas não existiriam ou seriam muito menores. Mas, Seu Guiga, hábil encanador, contava todas as gambiarras que havia feito e como elas surtiram efeito. De fato, as gambiarras tinham algum resultado: os baldes e seus complexos sistemas burocráticos de revezamento não faziam com que as casas ficassem inundadas, os encanamentos que atravessam as salas e quartos sem respeitar paredes levavam água para onde havia necessidade e os registros estavam funcionando, mesmo que sob muita pressão. Aparentemente, tudo parecia funcionar: as pessoas estavam felizes. O que o Sr. Braga não conseguia demonstrar era que o sistema estava em grande perigo: os registros sucumbiriam a qualquer momento, as infiltrações corroeriam as paredes, as quais poderiam cair, e o sistema de revezamento de baldes um dia ia falhar. Então, todos se veriam, de repente, inundados, sem paredes e, paradoxalmente, sem água. Seu Guiga clamava vitória, mesmo com a derrota quase escancarada a sua frente. Seu Braga lamentava e aguardava. Os condôminos estavam indecisos. A corrida sindical parecia empatada.
Moral da História O enxadrista russo Garry Kasparov, considerado por especialistas o maior jogador de xadrez de todos os tempos, era um notório estrategista, como o jogo de xadrez requer. Dizia ele que “Perder pode lhe persuadir a mudar o que não precisa ser mudado, e vencer pode lhe convencer de que tudo está bem, mesmo que você esteja à beira do desastre.”. À beira do abismo, a única forma de seguir adiante é dar um passo atrás.
Epílogo Economia é uma palavra que vem do grego “oikos”, que significa “casa”, e “nomos”, que significa “lei”, “norma”. Portanto, espera-se que a gestão da economia esteja diretamente ligada à forma como se determinam as leis que ditam os rumos da casa. Todos, assim espera-se, aprendem economia em algum momento de suas vidas, sendo em última análise, o planeta Terra nossa maior casa alcançável (deixemos o Universo fora desta discussão…). Sendo a Terra é um mundo finito, deve-se ter em mente, então, que os recursos disponíveis para serem geridos são limitados. Os recursos são escassos. A boa gestão econômica passará pelos predicados de eficiência e eficácia, de acordo com recursos escassos. Não bastará apenas atender às demandas dos agentes (eficácia), mas os resultados de longo prazo têm de ser duradouros e adequados (eficiência). A não consecução deste objetivo significa ineficiência e, portanto, insucesso. Quando o insucesso é momentâneo há que se ponderar. Mas, quando ele se torna recorrente, o castelo de cartas da retórica desaba. E, muitas vezes, de forma repentina. Problema sério é que não raro se tem a impressão que o insucesso é um sucesso. Frequentemente se contrata um encanador para evitar que a goteira de casa se transforme em inundação da sala e ele, com um balde, “resolve” o problema. Fica-se a impressão de que o problema foi endereçado e a solução está dada. Entretanto, o balde enche e troca-se o balde. Mas, o real problema está apenas sendo adiado. Resta saber se haverá tempo para resolvê-lo ou as paredes ruíram antes que algo possa ser feito.
Diego Gauto é economista formado pela FEA-USP, com pós-graduação pela Fundação Dom Cabral em Banking e estudou International Business Management na European School of Economics, em Roma, Itália. Membro-Diretor do Departamento de Economia da FIESP, é sócio sênior da Tailor Consulting, trabalhou em Operações Estruturadas no Citibank, ABN-Amro, Santander e foi superintendente adjunto de Mercado de Capitais no Banif BI e superintendente de Mercado de Capitais no Banco Bracce.
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Triste realidade. Mas para mudarmos para melhor este cenário atual, o que podemos fazer?