<![CDATA[Terraço Econômico | Alipio Ferreira Cantisani
Era uma vez um homem meio bêbado que perdeu sua chave na rua. Ele se pôs debaixo de um poste de luz, bem de noite, procurando-a na parte iluminada do asfalto. Um transeunte caridoso perguntou: “o que o senhor está fazendo?” “Procurando minha chave”. “Você a perdeu por aqui?” “Na verdade não, mas é só aqui que tem luz pra eu procurar”.
A parábola é uma crítica graciosa à atividade científica: na ânsia de resolver problemas verdadeiros, os cientistas restringem seu olhar onde há um pouquinho de luz. Podem até encontrar algumas respostas plausíveis, mas o problema é que estão olhando para o lugar errado. O economista Angus Deaton explica que uma máquina Rube Goldberg pode fazer com que uma pipa voando aponte um lápis. O observador desavisado poderia achar que toda a vez que uma pipa voa um lápis é apontado, mas seria mais prudente ele desconfiar de suas próprias observações, por mais sistemáticas e convincentes que elas sejam.
A carreira de Angus Deaton e suas contribuições seminais à economia parecem derivar dessa desconfiança básica com relação a métodos de observar a realidade e a qualidade dessas observações. O comitê do prêmio Nobel de economia, ao justificar o prêmio conferido a Angus Deaton neste ano, destacou três áreas em que o economista deu profundas contribuições: análise de funções de demanda, teoria do consumo e desenvolvimento econômico. Nessas três áreas, os principais trabalhos de Deaton consistiram em propor soluções admitidamente imperfeitas a problemas de estimação e coleta de dados extremamente defeituosos.
Um problema que perseguiu Deaton por toda a vida foi a questão da agregação. Economistas estão tipicamente interessados em entender fenômenos sociais como consumo, pobreza ou crescimento. Ninguém faz um PhD em economia para entender como cuidar de suas finanças pessoais, mas sim para entender como uma economia se desenvolve! Porém, ao comparar os dados agregados de consumo com os pressupostos teóricos sobre o comportamento do indivíduo, certo desconforto pairava entre os economistas: até que ponto era possível testar as hipóteses sobre o comportamento individual a partir de dados que refletem efeitos das ações de milhões? Entre outros que enfrentaram a questão, Angus Deaton permitiu à ciência econômica entender e superar o problema da agregação.
Um dos domínios em que enfrentou esse tema foi na teoria do consumidor. Combinando rigor teórico com um saudável ceticismo empírico, Angus Deaton percebeu que se as teorias aceitas à época (anos 1980) sobre o comportamento do consumidor fossem levadas a sério, elas prediriam comportamentos altamente instáveis de gastos em consumo, com variações muito maiores do que as variações observadas da própria renda. No entanto, os dados agregados de renda e consumo sugeriam justamente o contrário: o consumo era muito mais estável.
Esse padrão – de que o volume agregado de consumo é mais estável do que o a renda total de uma economia – era uma observação consistente e internacional. A aparente contradição com as predições teóricas engendrou o que ficou conhecido como o Paradoxo de Deaton. Mas tal como ocorreria com diversos dos interessantes resultados de seus estudos, Deaton não se daria por satisfeito por ter desdito a teoria: antes disso, Deaton perscrutava a fraqueza de seu método de observar a realidade. Na verdade, percebeu ele, dados agregados de consumo naturalmente mostrariam um volume estável, já que variações de renda entre indivíduos se compensam numa economia: uns perdem e outros ganham. Olhar dados agregados era simplesmente uma via equivocada para compreender o comportamento do consumidor.
Isso é ciência em sua melhor forma. Angus Deaton pode não ser aquele tipo de cientista que descobre a penicilina ou a cura do câncer. Mas é o cientista que inventou o AIDS. “O quê?!” Isso mesmo, Almost Ideal Demand System é o método de estimação de demanda que ele e seu coautor John Muellbauer conceberam para resolver diversos problemas de tratamento de dados, dentre eles a delicada questão da agregação. O modelo não é perfeito, como o próprio nome sugere, mas dá para o gasto: quase quarenta anos depois de sua criação, até hoje é uma ferramenta amplamente utilizada para avaliação de efeitos de aumentos de preços ou impostos sobre bem-estar social.
Seu pragmatismo metodológico e gosto por novidades o levaram a descobrir que é possível fazer análises desagregadas de padrões de consumo ao longo do tempo, sem precisar usar o histórico de um mesmo indivíduo ao longo de diversos períodos. Isto quer dizer que o governo pode coletar dados de amostras aleatórias de famílias a cada ano, sem precisar acompanhar sempre a mesma família, e mesmo assim análises robustas podem ser realizadas. O interessante é que uma razão pela qual esse procedimento é desejável são os defeitos da alternativa: os altos riscos de execução defeituosa de um programa rigoroso que acompanhasse as mesmas famílias por vários anos viciariam a análise de maneira muito mais perniciosa.
Por outro lado, seu rigor metodológico e desconfiança com relação a métodos tornou-o um crítico ferrenho de ferramentas modernas de avaliação de políticas, tais como os chamados randomized control trials (RTC). Esse tipo de estudo, cuja lógica foi explicada no Terraço Econômico[1] alguns meses atrás, caiu no gosto de muitos pesquisadores porque permite estimar a magnitude das transformações observadas numa população estudada que foi efetivamente causada por uma intervenção de política pública. Assim, se no escopo de um estudo de RTC a taxa de desnutrição de uma população caiu 10% em relação a outra, é possível atribuir esse efeito inteiramente à política pública implementada. Porém, Angus Deaton entende que apesar de seu rigor estatístico, esses estudos são reféns de sua necessariamente pequena escala. O contexto sempre importa, e um instrumento de precisão cirúrgica pode sugerir resultados extremamente robustos, porém específicos para o caso analisado.
Precisão ou generalidade? Este parece ser o dilema sobre o qual Angus Deaton tentou se equilibrar. Conforme descobriu em seu trabalho, o ótimo é inimigo do bom: às vezes é melhor se contentar com um método consistente cujos defeitos são bem conhecidos do que tentar aplicar um método ideal que também exija circunstâncias ideais. Esses insights também guiaram Deaton na elaboração de seus conselhos ao Banco Mundial sobre como realizar pesquisas de pobreza em países subdesenvolvidos, que tipo de dados coletar e como interpretá-los. Suas impressões digitais marcam o trabalho de inúmeros homens e mulheres ativos na pesquisa e implementação de pesquisa em desenvolvimento econômico.
Talvez o pragmatismo metodológico e o rigor teórico que acompanharam Angus Deaton datem da época em que, jovem estudante na universidade de Cambridge, decidiu que queria ser um filósofo da ciência. Foi desaconselhado pelos seus professores, o que lhe causou certa frustração e o lançou num período um pouco vadio de muita bebida e ócio. Segundo relata em texto autobiográfico, o seu desleixo provavelmente teria magoado o pai, um humilde trabalhador escocês que se alfabetizou tardiamente e batalhou para garantir ao jovem Angus uma educação exemplar. Deaton eventualmente encaminhou-se para a economia, um pouco por acaso e um pouco atraído, assim como tantos jovens estudantes até os dias de hoje, pela combinação que a disciplina oferece entre matemática e ciências humanas. O filho do operário se tornou eventualmente Dwight Eisenhower Professor da prestigiosa Universidade Princeton, nos Estados Unidos, e foi premiado no dia 12 de outubro de 2015 com o Prêmio Nobel em Ciências Econômicas. Papai deve estar orgulhoso.
É urgentíssima a necessidade de re-estruturação da “Teoria Geral do Equilíbrio”, sobretudo, quando se conhece desde Granger (1962) que o “transplante metodológico” das ciências exatas, não pode explicar o “nivelamento de subsistência” e muito menos suprimir o “Equilíbrio Não-Cooperativo”.