Com a crise, uma nova classe emerge na Europa: o Novo Pobre, e as expectativas da população quanto ao futuro da zona do euro estão cada vez mais pessimistas.
Lara Siqueira Oliveira | Especial para o Terraço Econômico
Nós brasileiros – com todo o histórico de hiperinflação dos anos 80 e 90, com a consequente implantação do Plano Real em 1994 seguida pela mudança de política monetária (de metas cambiais para metas de inflação em 1999), passando pela chamada ‘âncora verde’ e toda nossa luta constante contra o descolamento do preço da moeda – vivemos em um contexto onde a inflação é sempre a vilã, a indesejada.
Já na Europa pós-crise observamos o cenário oposto: um ínfimo aumento na taxa de inflação já é sinal de esperança do governo para recuperação da economia. Mas, ao que parece, essa esperança não está sendo compartilhada pela população. Dados do último trimestre mostram que inflação permanece preocupantemente baixa (-1%) estando distante dos limites aceitáveis (2%) definidos pelo European Central Bank (Banco Central Europeu – BCE). Mesmo o banco central tendo tomado medidas para aquecer a atividade econômica europeia, baixando as taxas de juros e anunciando um plano bancário para estimular empréstimos para o setor privado (Quantitative Easing) criando dinheiro para comprar mais ativos financeiros, as pesquisas mostram um quadro de deflação pela frente.
Vários são os fatores componentes do pacote da pressão deflacionária, como baixo ritmo de crescimento, políticas de austeridade, reformas estruturais, desvalorização do euro, mas um fator em especial tem se destacado em relação aos outros quanto às suas externalidades: as altas taxas de desemprego. O Banco Mundial alertou, há poucos dias, para crise global de emprego, indicando a necessidade de mais 600 milhões de empregos até 2030, e isto apenas para equiparar crescimento populacional e demanda de trabalho, segundo estudo divulgado em reunião ministerial do G20. Dentre as preocupações destacam-se a desigualdade de renda crescente em vários países do G20, a escassez de empregos e a qualidade destes empregos.
Um problema que surge desta constatação é o evento macroeconômico que a notícia pode gerar, com impacto imediato pelo aumento das taxas de juros e enfraquecimento das economias emergentes, em vez da progressiva solução dos problemas conforme as peculiaridades locais, o que também foi constatado pelos ministros das finanças do G20 e governadores dos bancos centrais reunidos em Sydney. Mas vamos a outros fatos antes de tirar conclusões somente por este aspecto.
A média de desemprego para a zona do euro gira em torno de 12% da população, com picos atingindo 50% na Espanha e Grécia, contra os 5.1% na Alemanha. O principal integrante desta estatística é o jovem graduating, que está se formando na universidade, pronto para entrar no mercado de trabalho (labour Market). A esses jovens foi designada uma nova classe econômica: The New Poors (Os Novos Pobres) que, para os padrões de vida europeus, possui privações críticas. Acredita-se que a emergência dessa nova classe é um dos efeitos colaterais mais preocupantes da crise.
Na Espanha, Portugal e Grécia houve um aumento dramático do desemprego entre os jovens. Pessoas que normalmente nunca se considerariam pobres estão tendo que recorrer ao suporte de instituições de caridade e não há previsão de melhora deste quadro pelo menos até 2019. Isto significa que uma geração inteira se vê sob a perspectiva de pobreza na velhice, visão que a Europa pré-crise nunca imaginara ter um dia. “O que estamos vendo é a crescente desigualdade e o aparecimento de toda uma classe de Novos Pobres”, disse Artur Benedyktowicz, supervisor da política social da Caritas*, em entrevista para The Guardian, “e esses dados não se encontram nos órgãos de estatística, pois, na maior parte das vezes, essas pessoas tem vergonha de pedir ajuda porque não estão acostumadas a isso.”
A pesquisa realizada pela OCDE (Organização de Cooperação Econômica e Desenvolvimento) sobre o aumento da desigualdade entre jovens e pobres no sul europeu mudou o discurso oficial de que a Europa está se recuperando e escancarou o surgimento de massa expressiva de Novos Pobres nos sete países mais atingidos pelas políticas de austeridade: Grécia, Chipre, Irlanda, Itália, Portugal, Romênia e Espanha. Os jovens entre 18 a 25 anos foram os mais afetados no período de 2007 a 2011: uma redução de renda de 1% ao ano, comparado ao aumento de 0.9% da renda das pessoas com idade superior a 65 anos.
Em contraste com a problemática Eurozone, a Grã-Bretanha, que mantém sua própria moeda, está cada vez melhor, com a economia se aquecendo com a redução eficiente da sua taxa de desemprego. No entanto, a recuperação frágil da zona do euro, com crescimento do PIB estagnado no último trimestre, é puxada para trás por sua performance social. A desigualdade entre os países membros da Zona do Euro é seu maior desafio. Encontrar solução ótima comum para Grécia e Alemanha é impossível. A questão é: o que acudir primeiro? Por onde começar?
Políticas de austeridade, apesar de necessárias, são fardos muito mais pesados para os países de economias menores do que para os de economias mais consolidadas, alguns quase chegaram à beira do colapso, como ocorreu com o sistema bancário do Chipre em março passado. Entretanto, optar por políticas de crescimento também não está funcionando, visto que o Índice de Confiança da EU só decaiu nos últimos meses (102,2 em julho, para 100,6 do último mês) o que só ajuda a afugentar investidores. A ideia do “One size fits all”** com certeza não serve para a União Europeia neste caso.
Um, dentre vários sinais da perda da capacidade de produção de riquezas e geração de empregos, é a da chamada “cidadania por investimento”. A UE tem resistido e repudiado as sucessivas reduções de exigências para obtenção de cidadania em Chipre ou Malta, como exemplo. Cada vez mais é exigido investimento menor para obter cidadania por esta via, e isto causou muitos prejuízos e milionários russos em Chipre, com a bancarrota do sistema financeiro em 2013. Os EUA também oferecem visto de residência permanente do tipo EB-5 para os que investirem US$ 500 mil e criarem dez postos de trabalho.
Estes vistos e formas de obtenção de cidadania são aqui referidos apenas para demonstrar que a geração de empregos não é preocupação nova, mas se a tal ponto foi necessário ir, negociando empregos por cidadania, então as economias deverão ter boas ferramentas para gerar, manter e qualificar tantos empregos quantos forem demandados pelo crescimento populacional. Sem isto haverá caos social. A estabilidade das economias, com aporte ou fuga de investidores, dependerá da sua capacidade de atendimento paulatino desta demanda sem desorganização das instituições. A estabilidade política e a capacidade de manter a ordem interna, sem rupturas institucionais, acabam por definir quem será visto como porto seguro ou como ponto de rápida ancoragem.
Inserindo a conjuntura europeia no contexto global podemos fazer comparações que há 10 anos não eram possíveis. O Novo Pobre da UE com o “pobre tradicional” que estamos acostumados a ver passar fome nas ruas. Os Novos Pobres do primeiro mundo são um tanto quanto peculiares: eles nasceram e cresceram bem, tiveram educação de ponta, acesso à saúde, qualidade de vida [pelo menos até a crise]. Mas não são essas as características mais importantes que os diferem dos pobres ‘tradicionais’.
Não se trata aqui da definição conceitual de pobreza e nem se nega a situação real de dificuldade dos europeus da nova classe. A referência aqui é a algo muito mais profundo: a consciência da pessoa como cidadã. A imagem de guetos pode ser parecida, mas a consciência de quem vive neles não. O cidadão da união europeia tem, em geral, nível de consciência e exigência maior. A altura do degrau entre o desempregado e o realizado é maior, se a medida é feita para quem vive no chamado primeiro mundo. Ele grita mais alto e mais cedo. Já no ambiente dos emergentes o conformismo tende a ser maior se faltar qualidade, mas não o emprego. É… Ver-se pobre no terceiro milênio ainda é melhor que ser pobre no terceiro mundo.
*Caritas: Caritas Internacional (Caritas Internationalis) é uma confederação de 162 organizações humanitárias que atua em mais de 200 países. Coletiva e individualmente a sua missão é trabalhar para os pobres e oprimidos. *One size fits all: (um tamanho serve para todos) jargão utilizado quando se formou a união europeia para se referir à adoção do euro como moeda única por 18 países.